EGO TE ABSOLVO - Conto Clássico Cruel - Oscar Wilde
EGO TE ABSOLVO
Oscar Wilde
(1854 – 1900)
I
Sob
suas boinas azuis, enegrecidas pela pólvora e manchadas pelo pó das estradas,
os soldados de Miralles[1]
têm a fisionomia de bandidos, com suas peles cor de fuligem, e barbas e cabelos
desgrenhados. Arrastam-se há cinco longas semanas pelas estradas, quase sem
dormir, quase sem descansar, trocando tiros a qualquer momento, com uma raiva
crescente.
Não
se impuseram aos bandidos liberais? Dom Carlos[2]
prometera-lhes, todavia, que, depois dos esforços de Estella[3],
a Espanha seria sua. Têm todos eles sede de vingança e de sangue, e a alegria
de vertê-lo é o que os mantêm de pé, por mais cansados e rendidos que se encontrem.
Bascos,
navarros e catalães, filhos de desterrados que morreram de fome e de miséria em
terras estrangeiras, sentem uma raiva feroz daqueles soldados que com eles
disputam os caminhos da meseta de Castela — a via dos palácios nos quais
juraram restabelecer o legítimo rei —, para então repartir, sobre os degraus do
trono restaurado, os cargos do reino e as riquezas dos vencidos.
Entre
esses montanheses e os homens dos novos partidos não há apenas rancores
políticos: existem, sobretudo, e antes de tudo, velhas contas de assassinatos
impunes, saques não ressarcidos, incêndios sem desforra. Por isso, quando um
soldado de Concha[4] cai-lhes nas mãos, infeliz
dele! Paga por todos os demais, pelos que se lhes escaparam às mãos.
— Irmão, você tem que morrer! — dizem ao
capturado, arrojando-o contra uma pedra.
O
homem inicia um sinal da cruz e, assim que desce a mão num mui vagaroso amém,
os fuzis, alinhados a dez passos de seu peito, vomitam a morte. A vítima
desmorona como um trapo velho e já não se fala mais disso: do resto encarregam-se
os abutres dos Pirineus. Se o padre Miralles, um homenzinho gorducho e
encurvado, de olhos semicerrados, com a batina arregaçada, desfila ante os
guerrilheiros, pendura ao ombro o fuzil e absorve ou bendiz o moribundo com
rápidos maneios.
Às
vezes, sem desgarrar os olhos da luneta marinha que lhe serve para esquadrinhar
as rochas e as azinheiras mais distantes, o padre toma a confissão do
prisioneiro. Um general é responsável pela vida de sua tropa, diabos!
Liberal,
sim, mas sobretudo católico, o prisioneiro não parece surpreso com o estranho
duplo ofício do sacerdote soldado. É mister que ele, prisioneiro, confesse, eis
que vai ser fuzilado, e é muito natural que o fuzilem, porquanto se deixara
capturar: faria o mesmo se fosse ele o captor. Esta lógica satisfaz por
completo as débeis exigências de seu cérebro de camponês arrancado de seu
torrão para curvar a nuca sob os arreios militares. E, além disso, para que
lutar contra esse fato brutal da morte ameaçadora, imediata e inevitável?
Já
que a morte há que chegar, trata-se apenas de bem fazer a bagagem, e se
apresentar convenientemente, quando for o momento de partir ao além inevitável.
II
Naquela noite, ao pôr do sol, Pedro Careaga achava-se de sentinela
na depressão de Mallorta quando uma mulher, montada em uma mula, tomou o
caminho da trilha de Buenavista. Ele atirou ao acaso, mas foi a mula que caiu.
A mulher avançou até ele, quase sem dar-lhe tempo de recarregar. E quando a
teve em mira, o navarro não pôde decidir-se em atirar. A fêmea era bela e apetecível,
com os seus cabelos negros, que caíam em cascatas até as pernas, seus lábios
rubros e pupilas brilhantes.
Por causa da prisioneira, Pedro Careaga esqueceu-se da causa de
Dom Carlos e da Liberdade. E a mulher, que sentia medo, jurou-lhe que adorava o
“rei neto” Provou a ele que não detestava as carícias recendidas a pólvora de
guerra e que Pedro Careaga era, se não o mais bonito dos mortais, pelo menos o
mais mimoseado dos vencedores: tudo isso entre as massas de pedra da depressão
de Mallorta.
Os braços da prisioneira ainda enlaçavam, como um colar de ouro
moreno, o pescoço curtido de Careaga, quando chegou Joaquín Marínez para rendê-lo.
— Ei, vá com calma! Você
tem que dividi-la comigo, rapaz. As noites são frias. Não é bom dormir sem
agasalho, companheiro. Mas vejo que é um homem precavido: dossel de cabelos, braços
mornos como lenço de pescoço, cobertor de carne suave. Agora é a minha vez,
amigo!
Careaga se levantou e, colocando atrás dele a prisioneira,
respondeu:
— Chegou a sua hora,
patife! Onde reina Careaga, não há outro rei. Se as noites são frias, aqueça-se
contra essa mula, que minha carabina abateu, ou então abata outra para si. O
butim é meu, como Navarra é do rei Carlos, filho de judia!
Joaquín Martinez ajustou o fuzil à face, e já ia atirar, quando a
mulher, com um chute selvagem, desviou o cano e mandou a bala a perder-se nas
nuvens. Martínez atirou fora a arma descarregada e, de uma navalhada em pleno
ventre, levou ao chão a prisioneira de Careaga.
— Ah, canalha! — uivou o
navarro, atirando-se para frente e brandindo a sua carabina.
Mas um novo golpe de navalha cortou em seus lábios o rosário de
insultos. E desmoronou, arrojando uma espuma esbranquiçada pela comissura dos
lábios na poça de sangue que saía do corpo da mulher estripada. Atraído pelo
barulho do tiro, Miralles chegou, seguido de outros tantos homens.
Martínez não tentou negar a contenda.
Com seus olhos quase desprovidos de cílios pelo estalido de um velho
fuzil, o cura bandoleiro abarcou a cena.
— Porcos! — grunhiu com voz rouca. — Vejamos a
fêmea. Uma linda mulher despachada por um golpe sujo de navalha! De que lhe
serviu, inocente narciso? Careaga, pelo menos, sentiu prazer. Bem, rapaz —
disse, dirigindo-se a Martínez, cujos olhos não se despegavam dele —, é muito
bonito isso de querer roubar o butim de um companheiro! E quanto a vocês
outros! Deixem-me tomar a confissão deste pagão. Não precisamos de vocês aqui.
Diga o seu confiteor[5], Martínez, e faça o
ato de constrição.
E,
em seguida, apontando bruscamente o fuzil para o indivíduo, queimou-lhe os
miolos sobre os dois cadáveres.
— Se deixarmos que se faça o que fizeram estes
companheiros — resmungou —, logo o rei Carlos não terá exército nenhum.
Versão em português: Paulo
Soriano.
[1]
Provavelmente
José Miralles (1792-1844). Incorporou-se, em apoio a Carlos Maria de Isidro de
Bourbon, pretendente ao trono espanhol, ao exército de guerrilhas em 1833,
tornando-se líder de uma delas. Foi chefe da cavalaria valenciana e comandante
geral de Valência. Não consta, contudo, que fosse clérigo. Este conto se passa,
portanto, durante a Primeira Guerra Carlista (1833-1840), guerra civil ocorrida
na Espanha, na qual se confrontaram os partidários do pretendente D. Carlos (de
índole absolutista) e os da rainha investida Isabel II (defensores de um regime
liberal).
[2]
Carlos María
Isidro de Bourbon (1788 – 1855), conde de Molina, filho de Carlos IV da Espanha
e irmão do rei Fernando VII. Com a morte deste último, reivindicou com armas a
coroa espanhola, por considerar que antiga lei monárquica (lei sálica) excluía
mulheres da sucessão, defendendo, pois, a ilegitimidade da ascensão de sua
sobrinha Isabel II ao trono espanhol.
[3]
Estella,
cidade de Navarra (em basco: Lizarra), foi, por um longo período, o
quartel-general de Carlos María Isidro de Boubon. Lá, o pretendente ao trono
foi proclamado, pelos rebeldes, rei da Espanha (1833).
[4] Provavelmente Manuel de la Concha (1808-1874), general e político espanhol.
[5] Oração
penitencial mediante a qual o fiel reconhece os pecados e pede o perdão divino.
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