O INIMIGO - Conto Clássico de Horror - Anton Tchekhov
O INIMIGO
Anton Tchekhov
(1860 —
1904)
É noite. Cantarolando, a
pequena babá Varka, uma garotinha de treze anos, embala o bebê no berço, com uma voz quase inaudível:
“Dorme, dorme, meu bebê,
pois eu canto para você.”
Uma lamparina verde está acesa diante de um sacro
ícone. Algumas fraldas e grandes calças pretas penduram-se a um varal. A
lamparina, junto a um ícone, projeta no teto um grande círculo verde, e as
fraldas e as calças lançam grandes sombras negras sobre a estufa, sobre o berço
e sobre Varka. Quando a lâmpada treme, o círculo verde e as sombras ganham vida
e se agitam, como se impelidos pelo vento. O ambiente é abafado: cheira sopa a
de repolho e a couro de botas.
O menino chora. Está rouco e exausto de tanto chorar e não há
como saber quando ele irá parar de gritar. E Varka está morta de sono. Seus
olhos estão grudados, a cabeça caída, o pescoço dolorido. Apesar de todos os
seus esforços, não consegue mover as pálpebras e os lábios. Sente que seu rosto secou e ficou rígido, e que a sua cabeça tornou-se tão pequena quanto a de um alfinete.
— Dorme, dorme, meu bebê — ela cantarola —, que eu
faço mingauzinho para você...
Um grilo canta da estufa. No quarto contíguo, roncam o mestre e o aprendiz Afanazy. O berço range lastimosamente. Todos esses sons se noturnos se misturam numa música adormecedora, agradável de se ouvir da cama. Mas Varka não pode se deitar, e a música a exaspera, pois lhe dá sono. Mas ela não deve dormir. Se adormecer — Deus nos livre! — os patrões a matam.
A luz da lamparina treme. O círculo verde do teto e
as sombras se agitam ante os olhos semicerrados de Varka, em cujo cérebro
semiadormecido afloram visões nebulosa. Nelas, ela vê correr pelo céu nuvens
negras, que choram aos gritos, como criancinhas recém-nascidas. Mas o vento não
tarda a varrê-las, e Varka vislumbra um longo caminho cheio de lama, pelo qual
transitam, em fila interminável, carroças, pessoas com sacos nas costas e
sombras que vão e vêm. Num e noutro lado do caminho, envoltos na névoa
inclemente, estão os bosques. De súbito, os caminhantes deitam-se na lama.
― Por que vocês fazem isso? ― indaga-lhes Varka.
― Para dormir! ― respondem. ― Nós queremos dormir.
E domem doce e profundamente.
Gralhas e corvos, pousados nos fios telegráficos,
se empenham em acordá-los.
— Dorme, dorme meu bebê... ― cantarola Varka, que
agora está numa cabana escura e abafada.
Seu falecido pai, Yefim Stepanov, rola no chão,
convulsionado pela dor. Como ele diz, “suas estranhas estouram”. A dor é tão
violenta que ele não consegue pronunciar uma só palavra. Ofega e range os
dentes, produzindo um barulho de tambor.
― Ram-ram-ram-ram...
A mãe de Varka, Pelageya, corre à casa senhorial
para avisar que Yefim está morrendo. Mas, por que ela se demora tanto? Faz
muito tempo que partiu e já deveria estar de volta.
Varka, encostada à estufa, ouve os lamentos e o
ranger dos dentes de seu pai. E, agora, pessoas aproximam-se da cabana. Os
senhores enviaram um jovem médico para assistir o moribundo. O médico entra.
Não se vê o médico na escuridão, mas é possível ouvi-lo tossir e abrir a porta.
― Acendam uma vela! ― diz ele.
― Ram-ram-ram — responde Yefim, travando os dentes.
Pelageya Varka vai e vem pelo quarto, procurando
fósforos. Por um minuto, reina o silêncio. O médico tira um fósforo do bolso e
o acende.
― Espere um instante, senhor doutor! ― diz a mãe.
Sai correndo e logo volta com um toco de vela.
As faces do moribundo estão roxas, seus olhos
brilham. Seu olhar, dotado de uma estranha atenção, parece traspassar o médico
e as paredes, enxergando através eles.
― Como está, rapaz? ― pergunta o médico,
inclinando-se sobre o doente. ― Faz muito tempo que está enfermo, não?
― Estou morrendo, excelência! ― Yefim responde com
grande esforço. —Não ficarei entre os vivos.
― Não diga tolices. Vamos curá-lo.
― Obrigado, excelência. Mas sei perfeitamente que
não há cura... Quando a morte bate à porta, é inútil lutar contra ela...
O médico examina detidamente o enfermo e declara:
― Não posso fazer nada. É preciso levá-lo ao
hospital para que o operem. Mas sem perda de tempo. Mesmo que seja muito tarde,
não importa. Darei um bilhete de recomendação para o médico e ele o atenderá.
Mas vá imediatamente, sem perda de tempo!
― Mas, senhor doutor, como iremos? ― pergunta a
mãe. ― Não temos cavalo.
― Não importa. Pedirei aos seus senhores que mandem
um.
O médico parte, a vela se apaga e de novo se ouve o
ranger de dentes do moribundo.
― Ram-ram-ram...
Meia hora depois, uma carroça para diante da casa.
Os senhores o mandaram para levar Yefim ao hospital. Aos poucos, o carro se
afasta, conduzindo o enfermo. Por fim, a noite acaba e sai o sol. A manhã é
bela e clara. Varka fica sozinha em casa. A mãe fora ao hospital visitar o
marido.
Ouve-se um menino chorar. Ouve-se, também, uma
canção:
“Dorme, dorme, meu bebê...”
Parece-lhe que é a sua voz que balbucia o acalanto.
Sua mãe não tarda a voltar. Ela persigna-se e diz:
― Acabaram de operá-lo. Mas morreu! Que Deus o
tenha em sua glória. O médico disse que foi tarde demais. Que ele deveria ter
sido operado há muito tempo.
Varka sai da casa e corre ao bosque. Mas, de
repente, sente um tapa na nuca. Acorda, e vê com horror a patroa. Ela grita:
― Ah, sem-vergonha! O menino chorando e você
dormindo!
Dá-lhe um puxão de orelhas. Ela sacode a cabeça
como para afugentar o sono irresistível e começa de novo a balançar o berço,
cantarolando com a voz afogada. O círculo verde do teto e as sombras continuam
a produzir um efeito adormecedor em Varka que, mal sai a patroa, volta a
dormir. E começa outra vez a sonhar.
Vislumbra novamente o caminho enlameado. Uma
infinidade de pessoas jaz adormecida na terra. Varka quer deitar-se também. Mas
sua mãe, que caminha ao seu lado, não deixa. Ambas se dirigem à cidade em busca
de trabalho.
― Uma esmolinha, pelo amor de Deus! ― implora a mãe
aos caminhantes. ― Tenham piedade de nós, bons cristãos!
― Dê-me o menino! ― grita de repente uma voz que
lhe é muito familiar. ― Você dormiu novamente, menina sem-vergonha!
Varka se levanta bruscamente, olha em torno de si,
e se dá conta da realidade. Não há caminho nem caminhantes, nem sua mãe está
junto a ela. Só vê a sua patroa, que veio amamentar a criança.
Enquanto o menino mama, Varka, de pé, espera que
acabe. O ar começa a azular nas vidraças, o círculo verde do teto e as sombras
vão esmaecendo. A noite cede o passo à manhã.
― Tome o menino! ― ordena poucos minutos depois a
patroa, abotoando a camisa. ― Sempre está chorando. Não sei o que há com ele.
Varka pega o menino, deita-o no berço e começa
outra vez a embalá-lo. O círculo verde e as sombras, menos perceptíveis a cada
instante, já não mais exercem qualquer influência sobre o seu cérebro. Todavia,
continua a sonhar. Sua necessidade de dormir é imperiosa, irresistível. Apoia a
cabeça na beira do berço, e balouça o corpo, seguindo o ritmo do berço, para
ficar desperta. Mas os olhos se fecham e ela sente na testa um peso de chumbo.
― Varka, acenda a estufa! ― grita a patroa do outro
lado da porta.
É dia. É preciso recomeçar o trabalho.
Varka deixa o berço e vai pôr lenha no alpendre.
Anima-se um pouco. É mais fácil resistir ao sono andando do que sentada. Leva a
lenha e acende a estufa. A névoa que envolvia o seu cérebro aos poucos se
dissipa.
―Varka, prepare o samovar! ― grita a patroa.
Varka começa a acender as lascas, mas a sua patroa
a interrompe com uma nova ordem:
― Varka, limpe as botas do patrão!
Varka, enquanto limpa as botas, sentada no chão,
imagina como seria delicioso meter a cabeça naqueles grandes calçados para
dormir um pouquinho. De súbito, a bota que ela limpava cresce, infla-se, enche
todo o cômodo. Varka solta a escova e põe-se a dormir. Mas faz um novo esforço,
sacode a cabeça e abre os olhos o quanto pode para evitar que os trastes ao seu
redor continuem movendo-se e crescendo.
― Varka, lave a escada! ― ordena, aos gritos, a
patroa. ― Está tão suja que, quando um paroquiano a sobe, eu morro de vergonha.
Varka lava a escada, varre os quartos, acende
depois outra estufa, corre várias vezes à mercearia. Tantos são os seus
afazeres que não tem um momento livre. O que lhe exige maior esforço é
manter-se em pé, imóvel, ante a mesa da cozinha, descascando batatas. A cabeça
se inclina, sem que ela possa evitar, até a mesa. As batatas adquirem formas
fantásticas. Sua mão já não pode segurar a faca. Entretanto, é preciso não se
deixar vencer pelo sono, pois ali está a patroa gorda, malévola, ralhadora. Há
momentos em que a pobre menina é acometida por uma violenta tentação de
deitar-se no chão e dormir, dormir, dormir...
Varka, vendo como as trevas enlutam as janelas,
aperta as têmporas, que lhe parecem de madeira, e sorri de modo estúpido, sem
nenhum motivo. As trevas envolvem seus olhos e fazem renascer em sua alma a
esperança de poder dormir.
Naquela noite, há visita em casa.
― Varka, acenda o samovar ― grita a patroa.
O samovar é muito pequeno e, para que todos possam
tomar chá, é preciso acendê-lo cinco vezes. Depois, Varka, em pé, espera
ordens, os olhos fixos nos visitantes.
― Varka, sirva vodca! Varka, onde está o
saca-rolhas? Varka, limpe um arenque!
Por fim, as visitas se vão. Apagam-se as luzes. Os
patrões se deitam.
― Varka, vá ninar o menino! ― esta é a última
ordem.
O grilo canta na estufa. O círculo verde no teto e
as sombras voltam a agitar-se ante os olhos semicerrados de Varka, e preenchem
o seu cérebro de névoa.
“Dorme, dorme, lindo menino...” ― cantarola a pobre
mocinha com a voz sonolenta...
O menino berra tanto que está a um passo de
sufocar.
Varka, meio adormecida, sonha com o caminho
enlameado, com os caminhantes, com sua mãe, com o seu pai moribundo. Não pode
dar-se conta do que passa a seu redor. Só sabe que há algo que a paralisa, pesa
sobre ela, que a impede de viver. Abre os olhos, tratando de inquirir que
força, que potência é essa, e não chega a conclusão alguma.
Esgotada, olha o círculo verde, as sombras. Nesse
momento ouve o menino gritar e pensa:
“Esse é o inimigo que me impede de viver.”
“O inimigo é o menino.”
Varka põe-se a rir. Como não lhe havia ocorrido
antes uma ideia tão simples? Completamente absorvida por tal ideia, levanta-se,
sorridente, dá alguns passos pelo quarto. Pensar no que vai fazer para logo em
seguida libertar-se do menino inimigo a enche de prazer. Ela o matará! E então
poderá dormir, dormir o tempo que quiser!
Rindo, piscando os olhos e ameçando a mançha verde com os dedos, aproxima-se sorrateiramente do berço e se inclina sobre o menino. Depois de estrangular a criancinha, ela se deita rapidamente no chão, ri de alegria por poder dormir e, quase imediatamente, mergulha num sono profundo, como se estivesse morta...
Versão em português de Paulo Soriano.
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