O VAMPIRO DE ANANTIS - Narrativa Clássica de Terror - William of Newburgh


O VAMPIRO DE ANANTIS

William of Newburgh

(1136 – 1198)

 

 

Um outro evento, não diferente do que narrei[1], mas mais pernicioso em seus efeitos, aconteceu no castelo que é chamado de Anantis.

A história eu a ouvi de um monge idoso, que vivia com honra e autoridade naquela região, e que relatou o acontecimento como tendo ocorrido em sua própria presença.

Um certo homem de má conduta, temente de seus inimigos ou da lei, fugiu da província de York e procurou refúgio junto ao senhor do mencionado castelo.

Lá instalado, procurou exercitar-se em coisas condizentes com seu caráter e trabalhou arduamente para aumentar, em vez de corrigir, suas próprias propensões ao mal.

Casou-se com uma mulher que foi a causa de sua ruína, como mais tarde se constatou. Tendo ouvido certos rumores a respeito dela, o ciúme dominou-lhe o espírito. Ansioso por averiguar a veracidade daqueles relatos, disse à esposa que faria uma viagem, da qual não voltaria por alguns dias. Contudo, regressando à noite, foi secretamente introduzido em seu quarto por uma empregada, com quem compactuara. Assim, ocultou-se sobre uma viga suspensa no quarto de sua esposa, para que pudesse constatar, com seus próprios olhos, se algo atentaria contra a honra de seu leito conjugal.

Viu, em seguida, a sua esposa em pleno ato de fornicação com um jovem da vizinhança. Em sua indignação, esquecido de onde estava, caiu pesadamente no chão, perto de onde os cúmplices estavam deitados.

O adúltero, dando um salto, escapou. Mas a esposa, dissimulando astutamente o fato, ocupou-se em erguer gentilmente o marido caído no assoalho.

Um tanto recuperado, pôs-se o marido a repreender a mulher pelo adultério, ameaçando-a de punição.

Ela, todavia, respondeu:

— Explica-te, meu senhor. Estás a falar de maneira incoerente, e isto não deve ser imputado a ti, senão à doença que te perturba.

Estando muito abalado com a queda, e com o corpo muito machucado,  foi atacado por uma enfermidade, de modo que o mencionado padre, que me contou esta história, e que, na ocasião, visitava o marido no piedoso cumprimento de seus deveres eclesiásticos, o admoestou a confessar os seus pecados e a receber a Eucaristia Cristã na forma adequada. Mas, como o marido estava ocupado em pensar sobre o que lhe havia acontecido e sobre o que sua esposa lhe havia dito, adiou o saudável conselho para o dia seguinte, justamente o que ele não veria, pois já estava fadado a abandonar este mundo! Durante a noite, desprovido da graça cristã, e vítima de seus merecidos infortúnios, ele compartilhou o sono profundo da morte.

O marido recebeu, de fato, um enterro cristão, embora dele não fosse digno. Mas as cerimônias cristãs não operaram em seu benefício, já que, por obra de Satanás, o cadáver abandonou o seu túmulo durante a noite, e, perseguido por uma matilha de cães que soltavam latidos horríveis, vagou pelos pátios e ao redor das casas, enquanto todos os homens trancavam as suas portas. E ninguém se aventurava a sair da região, fosse qual fosse o compromisso a que estivesse obrigado, desde o início da noite até o amanhecer, por medo de deparar-se com o monstro andarilho e de ser terrivelmente espancado por ele. Mas essas precauções foram inúteis, pois a atmosfera, envenenada pelos caprichos dessa carcaça imunda, penetrando nas casas, enchia os lares de doenças, que traziam morte às pessoas, por conta do hálito pestilento que emanava do cadáver.

A cidade, que há pouco tempo era populosa, já parecia quase deserta, pois os habitantes, que escaparam da destruição, migravam para outras partes do país, para não morrerem. O homem de cuja boca eu ouvi essas coisas, entristecido pela desolação de sua  paróquia, convocou uma assembleia de homens sábios e religiosos naquele dia sagrado que é chamado de Domingo de Ramos, a fim de que eles pudessem ministrar saudáveis conselhos, úteis diante de  tão grave dilema, e consolar, na medida do possível,  com seus lenitivos, os espíritos da mísera população remanescente.

Tendo feito um discurso aos habitantes, após as cerimônias solenes do dia sagrado terem sido devidamente realizadas, ele convidou seus hóspedes clericais, juntamente com as outras pessoas de honra que estavam presentes, à sua mesa.

Entrementes, quanto o padre e seus convidados banqueteavam, dois jovens irmãos, que haviam perdido o pai para aquela praga, encorajando-se mutuamente, diziam:

— Este monstro já destruiu nosso pai e, também, nos destruirá rapidamente, a menos que tomemos medidas para evitá-lo. Encetemos, portanto, alguma ação corajosa, que irá garantir a nossa própria segurança, e vingar a morte de nosso pai. Nada pode nos deter, pois na casa do padre dá-se um banquete, e toda a cidade está tão silencioso como se fosse um deserto. Vamos desenterrar essa praga funesta e exterminá-la no fogo.

Em seguida, agarrando uma pá de lâmina afiada, e apressando-se para o cemitério, começaram a cavar. Supunham que teriam que cavar mais profundamente quando, de repente, antes que uma boa porção de terra tivesse sido removida, viram aflorar o cadáver, inchado a ponto de formar uma enorme corpulência, com seu semblante demasiadamente túrgido e sufocado de sangue. O sudário em que fora envolvido estava rasgado e reduzido a pedaços. Os jovens, no entanto, incitados pela cólera, não sentiram medo algum, e infligiram um ferimento na carcaça adormecida, da qual fluiu imediatamente uma torrente de sangue, chupado de inúmeras pessoas pelo sanguessuga.  Então, arrastando-o para fora da aldeia, erigiram prestamente uma pira funerária. E, depois de um dos irmãos afirmar que o corpo pestilento não queimaria a menos que seu coração fosse arrancado, o outro abriu o peito do cadáver com repetidos golpes de pá. E, enfiando-lhe a mão, arrancou o coração amaldiçoado.

O coração — rasgado em pedaços — e o corpo foram entregues às chamas.

Informados do que acontecia, os convidados acudiram ao lugar e se permitiram a testemunhar, daí por diante, as circunstâncias.

Quando aquele cão infernal tinha sido assim destruído, a pestilência, que prevalecia entre o povo, cessou, como se o ar, até então corrompido pelas contagiosas andanças do terrível cadáver, houvesse sido purificado pelo fogo que o consumiu.

 

Versão em português de Paulo Soriano, a partir da tradução de Joseph Stevenson (1806 – 1895).



[1] Vide a narrativa “O Cadáver Rdivivo de Melsrose”.


 

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