A TUMBA - Conto Clássico Fúnebre - Guy de Maupassant



A TUMBA

Guy de Maupassant

(1850 – 1893)

Tradução de Paulo Soriano

 

 

Em 17 de julho de 1883, às duas e meia da manhã, o vigia do cemitério de Bélizers, que morava em um pequeno pavilhão nos fundos do campo dos mortos, foi despertado pelos latidos de seu cão, que estava trancado na cozinha.

Acorreu imediatamente, e viu que o animal farejava na soleira da porta, latindo furiosamente, como se algum vagabundo rondasse a vivenda. O vigia Vincent pegou, então, a escopeta e saiu cautelosamente.

O cão correu em direção à alameda do General Bonnet e estacou junto ao mausoléu da senhora Tonloiseau.

Cautelosamente, o vigia avançou. Vislumbrou um débil lume ao lado da alameda Malenvers. Esgueirou-se entre os túmulos e presenciou um abominável ato de profanação.

Um homem havia desenterrado o cadáver de uma jovem mulher, sepultada no dia anterior, e a arrastava para fora da sepultura.

Uma pequena lanterna baça, pousada sobre um monte de terra, alumiava aquela cena repugnante.

O vigia Vincent, tendo-se atirado sobre o desgraçado, dominou-o, atou-lhe as mãos e o conduziu à delegacia de polícia.

Era um jovem advogado da cidade, rico e de boa reputação, que se chamava Courbataille.

Foi julgado. O Ministério Público rememorou os monstruosos atos do sargento Bertrand, açulando o auditório.

Um frenesi de indignação percorreu a multidão. Quando o promotor de justiça se sentou, eclodiram gritos de “Morte! À morte!” O presidente da corte teve uma imensa dificuldade em para restabelecer o silêncio.

Depois disse, em tom grave:

— Acusado, o que tem a dizer em sua defesa?

Coubartaille, que dispensara o auxílio de um advogado, se ergueu. Era um jovem belo, alto, moreno, de feições fidedignas, traços enérgicos e olhar impávido.

Do público vieram os apupos.

Ele não se abalou e começou a falar com a voz um tanto rouca, a princípio baixa, mas que tomou corpo gradualmente:

—Senhor presidente, senhores jurados.

“Tenho muito pouco a dizer. A mulher cuja tumba profanei era a minha amante. Eu a amava.

Eu a amava não com um amor sensual, não com simples ternura de alma e de coração, mas com um amor absoluto, completo, com uma paixão desesperada.

Escutai-me.

Quando eu a vi pela primeira vez, senti, ao contemplá-la, uma estranha sensação. Não foi surpresa ou admiração, não foi o que se chama de amor à primeira vista, mas um sentimento de bem-estar delicioso, como se eu estivesse mergulhado num banho de água cálida. Seus gestos me seduziram, sua voz me fascinou. Ao olhá-la, toda a sua pessoa provocava em mim um prazer infinito. Também me parecia que já a conhecia há muito tempo, que já a tinha visto antes. Ela continha em si algo de mim, algo de meu espírito em seu próprio espírito.

Ela parecia uma espécie de resposta a um apelo lançado por minha alma; uma resposta a esse vago apelo que se propala, continuamente lançado à esperança, durante todo o curso de nossa vida.

Quando a conheci um pouco mais, a ideia de revê-la me causava um transtorno requintado e profundo. O toque de sua mão em minha mão me proporcionava uma delícia até então inimaginável. Seu sorriso derramava em meus olhos uma frenética alegria, dava-me desejos de correr, de dançar, de rolar pelo chão.

Portanto, ela se tornou minha amante

Foi mais do que isso: ela era a minha própria vida. Eu não esperava mais nada na terra, não desejava nada, nada mesmo. Eu não mais aspirava a coisa alguma.

Certa noite, quando saímos para uma caminhada um pouco mais extensa ao longo do rio, a chuva nos surpreendeu. Ela sentia frio.

No dia seguinte, uma inflamação no peito foi constatada. Oito dias depois, ela expirou

Durante as horas de agonia, o assombro e a perplexidade me impediram de bem discernir as coisas, de refletir.

Quando ela morreu, o desespero brutal me surpreendeu de tal forma que eu já não mais tinha pensamento. Eu chorava.

Durante todas as horríveis etapas do enterro, minha dor aguda, furiosa, era ainda uma dor de louco, uma espécie de dor palpável, física.

Depois, quando ela se foi, quando já estava enterrada, meu espírito recobrou, de repente, a lucidez. Passei toda uma série de sofrimentos morais tão apavorantes que até o amor que ela me havia dado era caro a tal preço. Então, uma ideia fixa me subjugou: “Nunca mais a verei novamente!”.

Quando se cogita sobre isto o dia inteiro, a demência exerce o seu domínio. Penseis! Um ser que está lá, um ser único, porque em toda a extensão da terra não existe outro que se assemelhe a ele! Esse ser vos é dado, cria convosco esse misterioso vínculo que se chama amor. Seus olhos semelham mais amplos que o espaço, mais encantadores que o mundo... Esses olhos claros onde sorri a ternura. Esse ser vos ama. Quando ele vos fala, sua voz derrama uma torrente de felicidade.

E, de súbito, este ser desaparece! Penseis! Não apenas desaparece para vós, mas para sempre. Está morto. Compreendeis esta palavra? Jamais, jamais, jamais, em lugar algum, esse ser voltará a existir. Esses olhos jamais verão novamente; jamais essa voz, jamais uma voz semelhante, entre todas as vozes humanas, pronunciará da mesma forma uma só das palavras que ele pronunciava.

Jamais voltará a nascer um semblante como o seu. Nunca! Nunca! Guardam-se os moldes das estátuas; conservam-se as fôrmas que permitem reconstituir os objetos com os mesmos contornos e as mesmas cores. Mas esse corpo e essa face nunca voltarão a reaparecer sobre a terra. Entretanto, nascerão milhares de criaturas, milhões, bilhões, e muito mais ainda, e entre todas as mulheres futuras essa não voltará a renascer. É possível? Enlouquecemos, quando pensamos nisso.

Ela viveu apenas vinte anos, não mais. E desapareceu para sempre, para sempre! Ela pensava, sorria, amava-me. Nada mais. As moscas que morrem no outono valem tanto quanto nós na criação. Nada mais! E eu sabia que seu corpo, seu corpo fresco, tépido, tão suave, tão branco, tão belo, iria apodrecer no fundo de um ataúde sob a terra. E a sua alma, seu pensamento, seu amor, onde estariam?

Não a verei novamente! Não a verei novamente! Atormentava-me a ideia de que, embora o seu corpo se decompusesse, eu poderia ainda reconhecê-la. Eu queria vê-la novamente!

Saí com uma pá, uma lanterna e um martelo. Saltei o muro do cemitério. Encontrei o buraco de sua cova: ainda não o haviam tapado completamente.

Expus o caixão. E levantei a tampa. Um odor abominável, o hálito infame da putrefação subiu até o meu rosto. Oh, o seu leito perfumado de lírios!

Entretanto, abri o ataúde, e dentro dele mergulhei minha lanterna acesa. Eu a vi. Ela tinha o rosto azulado, intumescido, pavoroso. De sua boca fluía um líquido negro.

Ela! Era ela! Um horror dominou-me. Mas estirei o braço e peguei seu cabelo para aproximar de mim aquela face monstruosa!

Foi então que me prenderam.

Por toda noite eu guardei, como quem conserva o perfume de uma mulher depois de um abraço amoroso, o aroma imundo daquela podridão, o aroma de minha amada!

Fazei de mim o que quiserdes.”

Um estranho silêncio pairava sobre a sala. Todos pareciam aguardar algo mais. Os jurados se retiraram para deliberar. Quando voltaram após alguns minutos, o acusado demonstrava nada temer, e parecia mesmo que lhe faltava a capacidade de pensar.

O presidente, com as fórmulas de praxe, anunciou que os jurados o declaravam inocente.

Ele não fez um gesto, e o público aplaudiu. 

 

Conto publicado originariamente no Gil Blas, edição de 29 de julho de 1883, com sob o pseudônimo de Maufrigneuse.

Comentários

  1. Amei esse conto, o que eu mais gostei. Lindo.

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    1. Obrigado, Marcy, pelo comentário. Realmente, é um belo conto!

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  2. Muito interessante. Nunca tinha lido Guy de Maupassant. Gostei da narrativa dele. Surpreendente.

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