O ABADE DUNCANIUS - Conto Clássico de Terror - Heinrich Zschokke
O ABADE DUNCANIUS
Heinrich Zschokke
(1771 – 1848)
No
final do século XIII, viam-se ainda em Liebenthal (Silésia) as ruínas de um
mosteiro consagrado a São Florêncio do qual ninguém, sobretudo durante a noite,
se aproximava sem sobressalto e terror. O grande Alberto, em seu livro De decretis mulierum et naturae, oferece
um desenho destas ruínas e as designa sob o nome de Igreja do Cavalo Branco (Albi
equi ecclesia). Também estava Alberto sob a invocação de São Florêncio. Assim
ele narra a sua história:
Vivia
em Liebenthal, em 1158, certo abade chamado Duncanius, que regia os monges
confiados à sua autoridade com tanta prudência e discrição que logo adquiriu em
toda a região circunvizinha um grande renome de santidade. Nas grandes atribulações da vida, todos
recorriam a ele, e não menos acudiam os fiéis à sua igreja por ele que pelas
relíquias de São Florêncio, que eram conservadas na sacristia, com grande
veneração, guardadas em uma grande urna de prata maciça. Tão considerável chegou a ser com o tempo a afluência
dos peregrinos, que foi preciso erigir tendas de campanha e choças de madeira
nos arredores da abadia para acolher tantos devotos.
Certa
noite, acabados os últimos ofícios, quando se dispunha o abade a voltar à sua
cela para nela desfrutar o descanso tão necessário depois dos ativos trabalhos
apostólicos a que se havia entregue durante todo o dia, viu, na nave solitária,
um peregrino que, apesar dos esforços que faziam os irmãos leigos para
persuadi-lo a retirar-se, se obstinava em permanecer na igreja, sob o pretexto
de que albergava segredos importantes, dos quais somente o abade poderia ser
depositário. Como tal peregrino
aparentava ser apenas algum pobre vassalo desprotegido e desamparado, quiseram
os religiosos lançá-los fora à força. Mas ele se abraçou a uma das delgadas colunas
da igreja e não houve forças bastantes a tirá-lo dali. Vendo isto, disse o abade
Duncanius aos irmãos que deixassem em paz aquele desconhecido que o procurava.
—
Que queres de mim, irmão? — disse-lhe. —
E porque, como os demais peregrinos, não procuraste o arbítrio da confissão, e
somente agora recorres a mim?
—
Eu não sou teu irmão. E jamais me confesso. E não me deixo ver mais que uma
noite.
—
Eu me compadeço de ti, sem maldizer-te. Todavia, haverá coisa no mundo mais
diga de maldição do que um pecador que preserva o pecado?
—
Não sei o que querem dizer estas palavras idiotas: bem-dizer e maldizer.
Outra palavra eu conheço que vale mais que estas duas, e é esta: poder.
Eu a ensinarei a ti, se quiseres.
—
O que queres dizer?
–
Escuta! Para que me compreendas, será preciso que eu me despoje desta ridícula
forma para mostrar, diante de teus olhos, com a coroa na cabeça, as asas nos
ombros, com a gadanha na mão? Pois veja!
E
em vez de um mendigo, viu Duncanius em pé, à sua frente, um espírito infernal.
Seu primeiro impulso foi fugir, fazendo o sinal da cruz ao inimigo do gênero
humano. Mas o anjo maldito lhe deteve o braço.
—
Insensato! — disse-lhe. — Não desperdices, por tua vida, a felicidade que a ti
se apresenta! De que te tem servido até
agora teus ridículos acatamentos a um Deus ingrato? Tuas noites passadas de
joelhos sobre as geladas lousas de uma cela, as privações dos jejuns, os
tormentos da mortificação, teu sangue vertido pelas aguçadas pontas da
disciplina, a cruel aspereza do cilício. Diz-me: de que te tem valido? Nem
mesmo para consumar um pequeno milagre. Nem mesmo para afugentar-me! Porque, de um ano para cá, não me afastei uma
polegada de tua cela. Sempre estive ali,
ao teu lado, perturbando as tuas humildes súplicas, agulhando os teus sentidos
com tentações, privando-te de repouso durante a noite, privando-te de descanso
durante o dia... Eis, aqui, o que te tem valido o teu Deus! E eu... eu te ofereço o dom sublime de
transtornar, ao teu alvedrio, a ordem da natureza! À tua voz se erguerão os
mortos do pó dos sepulcros. À tua voz
bramirá a tempestade. Terás impérios, exércitos, poderio. Teu cavalo relinchará
caracolando em meio a um campo de batalha. Entre as nobres castelãs e suas mais
belas aias tudo será rivalidade sem fim para agradar-te, para obter um olhar
teu. E acreditas que te peço em troca a tua alma, não é mesmo? Não. Nada te
peço. Mas tu me pareces um homem por demais eminente para continuar nesta vida
miserável, e é por isto que venho a ti. Pelejando contigo, soube apreciar o teu
valor... Toma este livro. Faz uso dos segredos, de uma força mágica que ele te
revelará, e lança fora este hábito para nunca mais voltares a vê-los.
O
demônio desapareceu e o abade achou um livro vermelho a seus pés.
A
princípio, não quis tocar nele. Mas, pouco a pouco, foi tomando ânimo. Então, deteve-o
nas mãos e leu. De pronto, os caracteres começaram a brilhar como fogo naquelas
páginas malditas. À medida que Duncanius pronunciava as palavras mágicas, mil
estranhas e fantásticas figuras revoluteavam em meio à densa escuridão do
templo, e lhe mostravam castelos, armaduras, coroas, belas damas, combates, e,
enfim, todas as coisas sobre as quais lhe falara o falso peregrino. E, ao mesmo tempo, uma multidão de espíritos
malignos se prosternava aos pés do monge, dizendo-lhe:
—
Manda, manda, porque somos teus escravos, porque obedeceremos a um sinal de tua
mão, a um movimento de tua cabeça, à mais sutil indicação de teus olhos.
–
Afinal de contas – disse a si mesmo Duncianus –, nada me foi prometido, e nada
mais faço que usar de um poder, mas sem aventurar o mínimo que seja a salvação
de minha alma. Disponhamos dele ao nosso
alvedrio, e sirvamo-nos do livro mágico para a maior glória de Deus. Assim,
será o demônio vítima de seus sacrifícios e o tentado triunfará sobre o
tentador.
E
depois acresceu, em voz alta:
–
Espíritos dos castelos e das edificações, em nome de vosso rei e das temíveis
palavras que irei hoje pronunciar, acabai de construir a ala da abadia que, por
falta de dinheiro, está sem conclusão há dois anos e meio.
Ao
ouvir esta ordem, os demônios puseram-se em pé, dando gritos de alegria.
Ouviu-se um surdo rumor, e a ala da abadia apareceu acabada, brilhante com suas
airosas ogivas de mármore, com suas esbeltas colunas de elegância, e de vitrais
pintados de mil cores. Na fachada,
via-se a imagem de um cavalo branco e, em caracteres gravados em pedras, lia-se
a seguinte legenda:
“Este monumento foi concluído a partir de uma
palavra do abade Duncanius”
A
novidade de tão grande milagre se estendeu nas asas da fama por todos os países
imediatos, e mesmo por toda a Europa. Duncanius, venerado como um santo, logo
sentiu que a vaidade penetrava o seu coração. Mal podia reprimir a expressão de
tristeza quando casualmente era menos numerosa a afluência dos fiéis que o
procuravam para pedir sua intersecção junto a Deus, ou mesmo uma palavra de sua
boca para curá-los dos males que os afligiam. E, ao mesmo tempo, se algum
príncipe ou alguma dama de ilustre berço chegavam à abadia com numerosa
comitiva de pajens e escudeiros, brilhava a alegria em seus olhos, e palpitava
de orgulho o seu coração.
Todavia,
nunca se atrevera a recorrer novamente ao poder do livro mágico.
Aconteceu
que, num certo dia, um grande senhor vizinho, muito poderoso, marchou com um
numeroso número de pessoas a Liebenthal, para pôr em a cidade em sítio. Teve o
abade, conforme impunham os costumes da época, de montar a cavalo, vestir-se de
armadura e guerrear contra o inimigo à frente de seus vassalos de São
Florêncio.
Na
época a que se referem os acontecimentos narrados por Alberto, o Grande, os
eclesiásticos iam à guerra. Este costume durou até o reinado de Luís XII.
Apesar
dos prodígios de coragem, os habitantes de Liebenhtal foram rechaçados em uma
investida que intentaram. Fugiam covardemente dispersos quando Duncanius apeou
de seu palafrém. O abade atravessou os
fugitivos com a sua espada e fez outro tanto com os cavalos dos mais
aterrorizados desertores. E gritou,
brandindo o seu machado:
—
Morte ao primeiro que fugir!
Ao
ver aquela ação heroica, ao ouvir aquela voz tremenda, detiveram-se os
fugitivos e começaram novamente a combater.
Mas novamente lhes foi contrária a fortuna.
Desesperado,
o abade se recorda então do livro mágico. Tira-o do peito. Lê as palavras que
ele contém e, ferido o inimigo de súbito terror, dispersa-se e se entrega sem
defesa ao furor dos habitantes de Liebenthal, atônitos em presença daquele novo
milagre de Duncanius.
Os
vencedores levaram em triunfo o abade à cidade, bendizendo-o e repetindo o seu
nome como o de um santo.
Logo
chegou a ser Duncanius mais poderoso que todos os príncipes e senhores daquele
rincão. Rodeou-se o culpado abade de todo faustos e de grandeza. Entregou-se à
torrente de suas paixões, e não pôs freio algum aos seus desejos e nem ao poder
de satisfazê-los que lhe conferia o livro mágico.
Quinze
anos depois da visita feita a Duncanius pelo misterioso peregrino, entregava-se
o abade, em seu esplêndido palácio, a mil projetos de ambições, quando uma
terrível voz gritou aos seus ouvidos:
—
Chegou a tua hora! Segue-me, porque me
pertences.
—
O que dizes? Eu, Duncanius, pertencer a ti? Não, não! Porque jamais firmei nem
consenti no pacto que me propuseste.
—
Esta é, efetivamente, a verdade. Mas, graças a esse livro, e aos desejos que em
ti nasceram, hás reduzido a nada os sete pecados capitais. Cometeste crimes,
perdeste a tua alma para toda a eternidade.
Insensato! Achavas que te poderias servir do poder do demônio, e não
pertencer ao demônio algum dia? Vem, porque tu me pertences!
E,
agarrando-o com os seus poderosos braços, levou-o consigo aos abismos. No mesmo
instante, despencou um raio sobre a abadia. Dela, restaram não mais que ruínas,
sobre às quais dançavam, à noite, com horrível algazarra, os espíritos
infernais. E daquelas ruínas ninguém poderia, sem pavor, se aproximar.
Entretanto,
muito anos depois, alguns monges da ordem de São Bento obtiveram para si o
terreno da antiga abadia de São Florêncio e nele construíram uma igreja da qual
ainda restavam resquícios em 1640.
Versão
em português de Paulo Soriano a partir da tradução espanhola de Eugenio de
Ochoa (1815 — 1872).
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