O FANTASMA DO MENINO ACORRENTADO - Narrativa Clássica Sobrenatural - Catherine Crowe

 



O FANTASMA DO MENINO ACORRENTADO

Catherine Crowe

(1803 – 1876)

Tradução de Paulo Soriano

 

 

A seguinte carta, que é deveras interessante, escrita por um membro de uma família inglesa muito distinta, oferece a sua própria explicação ao incidente:

 

"Como você expressa o desejo de saber que grau de crédito deve ser atribuído a um conto deturpado,  publicado, após um lapso de trinta a quarenta anos, como uma 'história de fantasmas comprovada', narrarei os fatos tais como deles me recordo, e que me vieram à mente por incitação de uma filha de Sir William A. C—.

Enviou-me ela o livro em que é narrada a história, pedindo-me que lhe dissesse se nela havia algum fundamento, já que mal podia acreditar na narrativa, pois ela nunca ouvira minha mãe aludir ao incidente. Quando li a narrativa, fiquei surpreso. Evidentemente, o argumento não fora obtido junto a alguém da família, ou, mesmo, a qualquer pessoa que, à época, estava conosco. No entanto, embora cheios de erros de nomes etc., alguns detalhes chegavam tão perto da verdade que me intrigam. Os fatos são os seguintes:

Acompanhado por Sir James, minha mãe e meu irmão Charles, viajei para o estrangeiro no final do ano de 1786. Depois experimentarmos vários lugares diferentes, decidimos nos estabelecer em Lille, onde boas pessoas nos acolheram e obtivemos cartas de apresentação para várias das melhores famílias francesas. Lá, Sir James nos deixou e, depois de passarmos alguns dias num alojamento desconfortável, alugamos uma casa de família bela e espaçosa, da qual gostamos muito, e cujo aluguel era consideravelmente módico, mesmo para aquela parte do mundo.

Cerca de três semanas depois de instalados em nossa nova residência, fui com minha mãe a um banco com o propósito de entregar a nossa carta de crédito de Sir Robert Herries, e sacar algum dinheiro. Como a quantia nos foi entregue em pesadas moedas de cinco francos, logo nos demos conta de que não podíamos carregá-las e, portanto, pedimos ao banqueiro que as enviasse à nossa residência.

Quando dissemos que vivíamos na Place du Lion D'or, o banqueiro pareceu surpreso e observou que lá não havia qualquer vivenda que nos fosse adequada, 'exceto, de fato,' ele acrescentou, 'aquela que está há muito tempo desabitada, por causa de uma aparição que lá se manifesta'.

Apesar de dizê-lo muito seriamente, com um tom de voz deveras natural, rimos e nos divertimos com a ideia de um fantasma. Mas, ao mesmo tempo, imploramos a ele que não mencionasse o assunto aos nossos serviçais, para que eles não se deixassem seduzir por fantasias, e minha mãe e eu resolvemos manter entre nós aquele assunto.

— Suponho que seja o fantasma — disse minha mãe, rindo — que nos desperta, com tanta frequência, andando sobre o teto.

Na verdade, tínhamos sido acordados várias noites por passos pesados, que supúnhamos produzidos por um dos criados. Dentre estes, contavam-se três ingleses e quatro franceses; e, entre as criadas, cinco eram inglesas, sendo francesas as demais. Todos os ingleses — homens e mulheres —, finda a nossa viagem, voltaram conosco para a Inglaterra.

Uma ou duas noites depois, novamente acordada pelos passos, minha mãe perguntou a Creswell:

— Quem está dormindo no quarto que fica acima de nós?

— Ninguém, minha senhora — respondeu ela. — Lá em cima fica um sótão grande e vazio. 

Numa manhã, cerca de sete a dez dias depois desse incidente, Creswell apresentou-se à minha mãe, dizendo-lhe que todos os empregados franceses falavam em ir embora, porque havia um fantasma na casa. Acrescentou que parecia haver uma estranha história ligada ao local, que se dizia, juntamente com alguma outra propriedade, ter pertencido a um garoto, cujo tutor, que também era seu tio, dispensava-lhe um cruel tratamento, confinando-o numa jaula de ferro. E como a criança desapareceu posteriormente, conjecturou-se que havia sido assassinado. Esse tio, depois de herdar a propriedade, deixou a casa repentinamente e a vendeu ao pai do homem de quem a havíamos alugado. Desde então, embora locada várias vezes, ninguém permanecia na casa mais de uma ou duas semanas e, por um tempo considerável, não tivera inquilino algum.

—E você realmente acredita em todas essas tolices, Creswell? —disse minha mãe.

— Bem, não sei, minha senhora. — respondeu ela. —Mas há uma jaula de ferro no sótão, acima do seu quarto. Por favor, a senhora poderia vê-la comigo?

É evidente que nos levantamos para acompanhá-la. E como, naquele momento, estava conosco um velho oficial, com sua Croix de St. Louis, nós o convidamos para nos acompanhar. Então, subimos juntos ao sótão.  

Encontramos, como Creswell dissera, um grande sótão vazio, com paredes de tijolos aparentes. Em um de seus cantos ficava a jaula de ferro, semelhante àquelas em que prendem animais selvagens, malgrado mais alta. Tinha cerca de quatro pés quadrados e oito de altura, e havia uma argola de ferro no fundo da parede, à qual se prendia uma velha corrente enferrujada, com uma coleira metálica presa na extremidade.

Confesso que senti calafrios ao pensar na possibilidade de algum ser humano ter vivido naquela jaula! E nosso velho amigo expressou tanto horror quanto nós, garantindo-nos que, certamente, aquele cárcere fora realmente criado para cumprir alguma terrível finalidade. Como, no entanto, não acreditávamos em fantasmas, concordamos em que os ruídos deveriam proceder de alguém interessado em manter a casa vazia; e, como era muito desagradável imaginar que houvesse meios secretos de entrar-se nela à noite, resolvemos, o mais rápido possível, procurar outra residência, sem, contudo, participar a ninguém o nosso propósito.

Certa manhã, cerca de dez dias depois dessa resolução, minha mãe, observando que Creswell, quando viera vesti-la, parecia extremamente pálida e doente, perguntou se algo de errado lhe sucedia.

— Realmente, minha senhora — ela respondeu —, nós estamos morrendo de medo. Não podemos, eu e a Sra. Marsh, dormir de novo no quarto em que estamos agora.

—Bem — respondeu minha mãe —, durmam as duas, então, no quartinho disponível ao lado do nosso. Mas o que as assustou?

— Alguém, minha senhora, entrou em nosso quarto à noite. Vimos a figura, mas cobrimos nossas cabeças com as roupas de cama e ficamos deitadas, com um medo terrível, até amanhecer.

Ouvindo isto, não pude deixar de rir. Mas Creswell desatou a chorar. Vendo como ela estava nervosa, nós a confortamos, dizendo que tínhamos ouvido falar de uma boa casa, que nos calharia bem, e que logo deveríamos abandonar nossa atual habitação.

Algumas noites depois, minha mãe pediu a mim e a Charles que fôssemos ao seu quarto buscar o seu bastidor, para que ela pudesse preparar as suas tarefas para o dia seguinte.

Depois do jantar, subíamos as escadas, à luz de uma lamparina, que estava sempre acesa, quando vimos erigir-se, à nossa frente, uma figura e magra e esguia, com os cabelos escorridos nas costas e com um robe solto e empoeirado. Concluímos prontamente que era minha irmã Hannah e gritamos:

—Não adianta, Hannah. Você não pode nos assustar!

Então, a figura se encolheu num recesso na parede. Mas, como não havia ninguém lá quando passamos, concluímos que Hannah havia conseguido, de algum modo, evadir-se pela escada dos fundos.

Quando contamos isto à minha mãe, ela disse:

— Tudo isto é muito estranho, pois Hannah foi para a cama com dor de cabeça antes de vocês subirem as escadas.

Seguindo ao quarto de Hannah, lá a encontramos dormindo profundamente. E Alice, que lá se ocupava de seus afazeres, nos garantiu que a nossa irmã estava deitada há mais de uma hora.

Creswell ficou extremamente pálida quanto lhe contamos o ocorrido. Exclamou que a figura descrita era exatamente aquela que ela e Marsh viram em seu quarto.

Por essa época, meu irmão Harry veio passar alguns dias conosco. Reservamos a ele um quarto cujo acesso ser dava por dois outros lances de escadas, no extremo oposto da casa.

Uma ou duas manhãs depois de sua chegada, quando desceu para o café da manhã, perguntou, aborrecido, à minha mãe se ela achava que ele fora dormir embriagado a ponto de não conseguir apagar a própria vela, já que ela mandara dois malandros franceses para vigiá-lo.

Minha mãe lhe assegurou que jamais lhe passara pela cabeça fazer algo assim. Mas ele persistiu na acusação, acrescentando:

— Ontem à noite, saí da cama e abri a porta. E, à luz da Lua, que se infiltrava pela claraboia, vi o sujeito, com suas vestes soltas, no pé da escada. Se eu não estivesse em camisas, teria ido atrás dele e tomaria satisfações por ter vindo me vigiar.

Porque conseguíramos alugar outra residência, pertencente a um senhor que ia passar uma temporada na Itália, já nos preparávamos para deixar aquela casa. Mas, poucos dias antes de nossa mudança, contamos aquelas circunstâncias ao Sr. e à Sra. Atkyns — velhos amigos nossos da Inglaterra, que nos visitavam —, frisando como era extremamente desagradável viver em uma casa na qual alguém encontra meios de invadi-la. Não pudéramos, contudo, descobrir naquela conduta outro intento senão o de nos assustar deliberadamente. Acrescentamos que ninguém podia dormir no quarto do qual Marsh e Creswell foram obrigadas a abdicar.

Ouvindo isto, a Sra. Atkyns riu muito e disse que gostaria imensamente de dormir naquele quarto, se minha mãe o permitisse, acrescentando que, com seu pequeno terrier, ela não teria medo de qualquer fantasma que viesse a aparecer.

Como minha mãe não tinha, é claro, objeções a que a sua amiga realizasse aquela fantasia, pediu à Sra. Atkyns que fosse com o marido buscar as roupas de dormir, antes que se fechassem os portões da cidade, já que eles residiam numa área semirrural.  O Sr. Atkyns sorriu e disse que a esposa era muito corajosa. Mas não criou dificuldades e foi apanhar os vestuários em casa.

 À noite, a Sra. Atkyns retirou-se com o cãozinho para o quarto designado, aparentemente sem a menor apreensão, enquanto nós nos recolhemos aos nossos.

Quando a Sra. Atkyns desceu na manhã seguinte, ficamos imediatamente impressionados ao ver que ela parecia muito doente. Quando perguntamos se ela também sentira medo, respondeu-nos que fora acordada durante a noite por algo se movendo em seu quarto. Disse que, à luz da lamparina, pôde ver mais claramente uma figura, e que o cãozinho, que era impetuoso e avançava em tudo, permaneceu imóvel, embora ela tivesse se esforçado para fazê-lo reagir à aparição. Vimos, claramente, que ela estava muito alarmada. E quando veio o Sr. Atkyns, empenhando-se por dissipar-lhe aquela impressão, persuadindo-a de que tudo não passara de um sonho, ela ficou deveras irritada. Não podíamos deixar de pensar que ela realmente tinha visto algo. E minha mãe disse, após a partida da Sra. Atkyns, que, embora não conseguisse acreditar que a aparição fosse realmente um fantasma, sinceramente desejava deixar aquela casa sem ver a figura, já que esta tinha a virtude de apavorar as pessoas.

Faltavam três dias para a nossa mudança. Eu tinha feito um longo passeio e, estando cansado, adormeci no instante em que me deitei. Mas, no meio da noite, fui subitamente acordado, não sei dizer por que motivo, pois os passos sobre o teto, a que nos acostumamos, não nos incomodavam mais. Bem, eu acordei. Estava deitado com o rosto voltado para minha mãe, que dormia ao meu lado, e, como costumo fazer ao acordar, me virei para o outro lado, onde, por causa do calor, o cortinado da cama estava aberto de lado a lado.

Foi quando eu vi, junto a uma cômoda, que ficava entre mim e a janela, uma figura magra e esguia, com as vestes soltas e empoeiradas. Tinha uma mão apoiada nas gavetas, e o rosto voltado para mim. Eu a vi claramente, sob a diáfana luminosidade noturna. Vi um semblante juvenil, comprido, delgado e pálido, dotado de uma — oh! — tão melancólica expressão, que jamais se apagará da minha memória! Eu estava, evidentemente, muito assustado. Mas o meu grande temor consistia em que a minha mãe acordasse e visse aquela aparição. Virei minha cabeça, lentamente, para minha mãe e ouvi-a respirando em bom som, o que denotava um sono profundo. Nesse momento, o relógio na escada bateu quatro horas. Atrevo-me a dizer que se passou quase uma hora até que eu me aventurasse a olhar a figura novamente. Mas, quando criei coragem para volver os olhos em direção às gavetas, nada havia ali. No entanto, não tinha ouvido o menor som, embora aplicasse os ouvidos com a maior acuidade.

Como você pode supor, não preguei mais os olhos e fiquei feliz quando Creswell bateu à porta, como fazia todas as manhãs, pois sempre a trancávamos por dentro, e era meu dever pular da cama e deixá-la entrar. Mas, nesta ocasião, em vez de fazê-lo, gritei:

—Entre. A porta não está trancada.

Ela respondeu que aporta estava, sim, trancada. Assim, fui obrigado a levantar-me e franquear-lhe a entrada ao quarto, como de costume.

Quando contei à minha mãe o que havia acontecido, ela ficou muito grata por não a ter acordado e elogiou minha resolução; mas como ela sempre esteve em primeiro lugar entre as minhas atenções, isto não era de se admirar. Ela, entretanto, resolveu não arriscar mais uma noite naquela casa. Saímos, pois, naquele mesmo dia, depois de realizar, com a ajuda dos criados, uma busca minuciosa, a fim de verificar se havia algum meio possível de entrar nos quartos além das vias normais de acesso. A nossa busca, contudo, foi debalde: nada pôde ser descoberto.

Eu creio, pelos erros na indicação dos nomes etc., que o editor das Histórias de Fantasmas Comprovadas deve ter obtido o argumento a partir do relato dos habitantes de Lille.”

Considerando o número de pessoas que estavam na casa, o destemor da família e sua relutância em acreditar no que se chama de sobrenatural, juntamente com o grande interesse que o proprietário daquela grande e bela residência deve ter tido em desvendar a farsa subjacente —  se é que houve uma —,  acho difícil encontrar qualquer outra explicação para esta estranha história, senão a de que o espírito triste e desiludido daquele pobre menino maltratado,  e provavelmente assassinado, jamais se desvinculou de suas relações terrenas. O pesar impingido pelas suas esperanças frustradas e direitos violados mantinham-no preso ao mundo material.


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