OS CANIBAIS - Conto Clássico de Horror - Álvaro do Carvalhal
OS CANIBAIS
Álvaro do Carvalhal
(1844 – 1868)
CAPÍTULO
1
Disse
a crítica pela boca de Boileau:
Rien
n’est beau que le vrai,
e não tardou que as
fábulas, arabescos exóticos e exageros, oriundos principalmente dos tempos
heroicos, perdessem toda a soberania dantes exercida na ampla esfera das boas
letras. Os Prometeus, os Hércules, os Teseus e as Esfinges, se não
desapareceram em pó, lançados aos quatro ventos, é porque era necessário que se
conservassem os padrões que deviam guiar o filósofo através dos labirintos do
passado. Por isso lá estão firmes ainda em seus pedestais de pedrarias, mas
ofuscados pela luz brilhante que só vem da verdade.
Todavia
não deixarei eu de confessar o amor, que sempre tive por contos de fadas, para
que se não estranhem algumas murmurações, acaso fugitivas, no ato de me
sacrificar às exigências desta geração pretensiosa.
Sacrifico-me.
Mas, como não sou dado a transcendências, pois abomino tanto a incógnita dos
matemáticos, como a Dulcineia dos Quixotes, abro sobre os joelhos uma crônica,
que casualmente me veio à mão, e, aproveitando os cabedais da minha escolha,
deixarei deste modo de ser constrangido a inventar, no que iria grande perigo
de volver costas à verdade.
O
meu conto é amador do sangue azul; adora a aristocracia. E o leitor há de
peregrinar comigo pela alta sociedade; hei de levá-lo a um ou dois bailes, e
despertar-lhe o interesse com mistérios, amores e ciúmes dos que se armazenam
por esses romances de armar ao efeito. Ora ouça, que eu princípio moldando-me
pela velha costumeira:
A
abóbada azul do céu alumiava com milhões de estrelas os coruchéus, obeliscos e
arcadas da decrépita arquitetura da cidade. Estava sereníssima a noite. Porém a
atmosfera fazia lembrar os gelos da Sibéria. Para contraste brotava na sala do
baile uma primavera aberta e resplendente. A vertigem das valsas despargia
alentos que se iam transformando em insânias de febre.
Quem
não sabe o que é um baile? E, todavia, sinto-me tentado a descrevê-lo, sem
desconhecer que nisso irá falta de modéstia, e trabalho verdadeiramente ocioso.
Mil poetas, no exagero de aprimorados versos, têm sabido pintá-lo, sem omissão
de algum dos matizes, que o abrilhantam. Melhor será, portanto, que o leitor
veja a descrição do meu baile em qualquer poema artisticamente fantasioso,
porque nisto de descrições não há sair do mesmo terreno. Senão, aqui lhe dou os
traços de um aligeirado esboço!
Flores
das mais odorantes em gigantescos jarrões de esmaltada porcelana; a arte a
revelar-se por toda a parte, na moldura dos espelhos, nos painéis, nos tetos
dourados; emanações balsâmicas a exalarem-se por esses recintos encantados; ao
longe uma música voluptuosa, não sei de que maestro inspirado; e, sobressaindo
a tudo, pares animados de muita vida e muito amor, abandonando-se à
efervescência das danças, correndo agora numa iriada mistura de cores, para
ligeiros se separarem logo debaixo dos olhos curiosos dos que se contentam em
ver, esteados com certo ar estudado ao mármore das colunatas, ou recostados nas
voluptuosas otomanas.
O
sol majestoso dum formoso dia de Verão não se projeta mais radiante sobre as
asas e sobre as pétalas, ricamente variegadas de mil borboletas e de mil
flores, do que aqueles centenares de sóis artificiais, dardejados dos cristais
reluzentes, sobre as vestes suntuosas, que as damas arrastavam pelos aveludados
tapetes.
Como
nas libações em honra do esperto Baco, em que sacerdotes e sacerdotisas entram
mornos, ou mesmo arrefecidos, para depois, ao empunharem a vigésima taça do
licor fervente, deixarem rebrilhar os olhos e desgrenhar os cabelos no “evoé!”
do entusiasmo, assim no baile tinha a ebriedade dos prazeres despertado
adormecidos sentimentos.
Avultava,
contudo, ali uma vista desassossegada e inquieta, que, sobretudo, feria alguns
observadores, que nem curavam de ocultar o frenesi, que os assoberbava.
Histórias
do coração por certo.
Margarida
é uma das mulheres fatais, que atraem irresistivelmente. Solteira, homem, que
por desgraça a fitou, quer ser um Romeu; casada, não faltariam Werthers, que
rebentassem o crânio para lhe merecer uma saudade.
No
cortejo brilhante não faltava desde o primeiro titular, ao brasileiro sem
títulos, coisa rara em sublunares regiões. Ela era o ídolo acatado de todos os
crentes.
Mas
para que estará no baile tão triste e distraída? Pousa melancolicamente a
cabeça no ombro do par, e nem lhe percebe as palavras amorosas, naquela rêverie
feminil, que é para o homem, que ama, um inferno de torturas.
Soam
onze horas. Ela treme, e relanceia pela última vez os olhos para a porta da
entrada. Depois, desfalecida, desprende um suspiro, e deixa-se arrastar como
insensível no revolutear das mazurcas.
Por
este tempo, numa sala apartada, fumavam dois cavalheiros. Um apoiava-se com
esquisito dandismo no friso de um fogão, rematado em florões caprichosos; o
outro, prostrado numa cadeira, e com as pernas comodamente cruzadas em frente
das brasas vivas. Alimentavam diálogo medido e monótono.
—
Tenho esperanças, dizia com certo orgulho o que se conservava de pé, puxando
das nascentes guias do bigode.
—
Vaidade, D. João! retorquia o outro. Sou veterano nessas campanhas. Glorio-me
de ter rasgado com esta mão véus do mais sagrado pudor; e, contudo, Margarida…
—
Margarida é mulher.
—
Pois sim, mas quem te assegura a vitória?
—
Tudo, responde o denominado D. João, um tanto ofendido pela dúvida do
interlocutor. Pequenos favores concedidos, um volver de olhos…
—
Ilusões do amor-próprio. Olha, podes dar-me crédito, a taça da ambrósia, que
apaga sedes de amor, não há de ela levar-ta aos lábios. Margarida é das poucas
mulheres, que têm só um coração, para ser dado uma vez só.
—
Donde te vem tanta sabedoria acerca da mulher?
—
Quando me não sobrasse experiência própria, tinha aí Balzac.
—
Ah! e sorriu desdenhoso. Ainda assim, continuou: posso eu obter…
—
O que é doutro, decerto que não.
—
Então Margarida?…
—
Ama.
—
A ti, barão?
—
Não, por minha miséria.
—
Pois a quem?
—
Ao visconde de…
Interrompeu-o
uma voz, que anunciava:
—
O senhor visconde de Aveleda!
Os
dois amigos estremeceram e precipitaram-se para a porta. A dança
interrompera-se. Os cavalheiros agrupavam-se à entrada do salão. As damas
ficaram turbadas e indecisas. Margarida virou o rosto jubiloso para um espelho,
e, contente de si, abandonou-se sobre as almofadas duma otomana, escondendo por
detrás do leque o rosto purpureado.
Que
será?
Corrido
um reposteiro, viu-se despontar no limiar da porta um homem estranho. Era
desses homens que se não descrevem e que devem de ser o desespero dos Van Dicks
e dos Ticianos. Tanto poderíamos dar-lhe trinta, como quarenta anos de idade.
Subia na estatura acima do regular; e no rosto pálido, mais simpático pela
barba negra, curta e fina, que o moldurava, deixava adivinhar uma longa
peregrinação de amarguras. Era a perfeita realização dum tipo ideal e
misterioso, como os concebia Byron. E misteriosa era a história da sua vida.
Dos mil extravagantes boatos, que corriam como para lhe aumentar o prestígio,
só se sabia ao certo que viera da América, e que era benquisto dos doutos e dos
sensatos.
Avançou
pausado e grave pelo meio da multidão fascinada. Mas naquele movimento
notava-se um esforço dissimulado; parecia um movimento mecânico, automático. E
seus passos soavam no pavimento, a despeito dos finos tapetes, com
extraordinário ruído. O impetuoso D. João, o moço apaixonado, que o leitor
acaba de conhecer, fixava-o de olhar ardente. Tinha diante de si o homem que
soubera arrancar-lhe a mais querida das suas esperanças. Passou-lhe na mente um
lampejo de raiva: aventurou-se a roçar por ele, indiscreto e temerário. Mas
naqueles membros pareceu-lhe encontrar, pelo tato, a inércia do granito.
Fixou-o mais, e recuou repassado de um irresistível pânico.
Julgara
ver a estátua irônica do comendador.
CAPÍTULO
2
Uma
história qualquer, que se extraiu duma crônica, deve ter necessariamente em
vista, ou a propagação de acontecimentos memoráveis perdidos na variedade de
muitos fatos, ou a manifestação característica dos costumes dum povo numa época
marcada. Colocar o fato no local, que lhe é próprio, é sem dúvida a primeira
obrigação, que em ambos os casos compete ao narrador. Não o desconheço. Porém
de melhor grado me sujeitara eu ao rabujar da crítica, do que a fixar a ação do
meu conto neste ou naquele país, visto ignorar a qual pertença, por uma omissão
desgraçada no importante manuscrito que tenho ao lado.
Amo
a fidelidade. E nessas simples palavras deixo a explicação da minha abstinência
no emprego de cores locais.
Contudo,
tornava-se preciso que a cena se passasse em alguma parte.
Refleti,
com a madureza, que o caso pedia, e por fim, vencido da necessidade, quase me
resolvi a levar os meus heróis para o Japão, onde qualquer sombra do
extraordinário seria menos notada por sobrenatural; pois, quanto mais ao longe
se veem as coisas, tanto mais elas avultam, medidas pela imaginação, pródiga
ordinariamente em ouropéis e garridices de todos os feitios. Demais, o abuso
que por esse lado fizesse de boa-fé do leitor não conseguiria empalidecer o
merecimento à obra, porque sem ser patente nela o cunho dos estudos
trabalhados, que abrem as portas das academias, lá lhe ficava a parte moral
digna de se germanar a esses contos, luxo da infância, justamente denominados —
tesouro de meninos.
Oscilava
neste plano quando me veio desviar do intento a lembrança desastrada de que
vivemos em tempos civilizados, tempos em que Antônio José cedeu lugar à alta
comédia, no período áureo da circunspecta casaca e do chapéu alto.
Mal
me serviria, portanto, o Japão. Filho da época, irei com ela. Fora mesmo
atentado buscar modelo nos grotescos desasados do velho Portugal, quanto mais
retroceder a ponto de me valer das roupagens cômicas dos japoneses.
Enfim,
quebro o fio às divagações para me devotar à história, que o merece. Escolha o
leitor a capricho o local da ação, que daí lavo eu minhas mãos, contanto que se
não ausente do país em que sejam lidos Dumas e Kock, e onde abundem seminários,
escândalos e sotainas.
Suponha
o baile — se lhe apraz, mesmo por comodidade ou propriedade — suponha-o em
Lisboa, na faustosa habitação duma Ninon de Lenclos contemporânea. Lá deixamos
o vulto simpático do visconde de Aveleda, perturbando a harmonia da festa com a
surpresa da sua aparição. Agora vamos encontrá-lo no meio do luxuoso bulício,
oprimido de profunda melancolia; melancolia essa que parecia refletir-se em
todos os semblantes, como se o dele fosse um espelho animado. Tal era a vaga
expressão das nobres feições do visconde, que deixava perceber o quer que fosse
de semelhante às forças atrativas e repulsivas do magnetismo. As damas
sentiam-se fascinadas, os elegantes receosos e agastados, desse agastamento —
antes mau humor — que provém da humilhação; porque os humilhava a simples
presença daquele homem, que no dizer deles mais era um mito que outra coisa.
Pouco
se lhe dava ao visconde do efeito que produzia. Não se erguera ainda da cadeira
em que se havia deixado cair, e, afora algumas palavras delicadas, ou gestos a
que o obrigava a cortesia, di-lo-iam insensível estátua.
—
Falaste-lhe? perguntava Margarida com vivo interesse, designando-o a uma sua
amiga, a quem saíra ao encontro.
—
Agora mesmo.
—
Então?
—
Ai, menina! Não sei dizer-te o que sinto. Nunca encontrei homem assim. Se
soubesses como a expressão corria suave daqueles lábios, como o seu sorriso era
triste… Não me enganaste: seio de mulher não pode sem estremecer…
Cortou-lhe
a palavra um beijo afetuoso. Margarida não pudera ouvir mais. Estava pálida,
tremiam-lhe os lábios, e no seio ofegante sentia que lhe rebentavam paixões
desconhecidas. Deve de estar assim a mulher que, sem hesitar, desfolha as
flores rescendentes da virgindade aos pés do eleito do seu coração. Caíra em
langoroso desfalecimento, pregando os olhos negros, apaixonados, com que a
natureza faz perigosas as mulheres do meio-dia, num ponto incerto, que ela não
divisava, porque andava longe, na morada das formosas quimeras.
A
orquestra começava uma valsa. Margarida, a ardente amadora das valsas, recusava
desta vez a cintura delicada ao contato libidinoso de mão masculina. E como
não? Junto ao visconde de Aveleda vira um lugar sem dono. O seu único
pensamento fora apossar-se dele, esquecendo — ela tão cautelosa! — que
franqueava passagem à eterna maledicência.
Do
pensamento à realização não decorreu um momento.
Foram
breves as palavras, que trocou com o visconde; porém, tais coisas disseram, que
ficaram momentos — ele enlevado, ela comovida.
—
Sabe, visconde, diz ela afinal para quebrar o silêncio, que se tornava
embaraçoso, sabe que nos magoa a todos a sua tristeza? Por que está tão triste?
—
Não é minha a culpa, minha senhora. Dera muito a quem me ensinasse a fingir
alegrias que não tenho.
—
Respeito os seus pesares. Mas creia que me sinto magoada se os considero.
—
E poderei saber por quê?
—
Porque, vendo-o cercado de quanto é capaz de felicidade…
—
Um pouco de luxo aparente serve às vezes para ocultar a miséria. Admira-se de
que haja risos, que escondam lágrimas? Pois há.
—
Punge-me essa desgraça que pressinto.
—
Não me lastimo, Sra. D. Margarida.
—
Nem eu o lastimo. Mas sofre, não é verdade? Eu não sou indiferente a
sofrimentos alheios. Duvida?
—
Decerto. Pois para que me dá veneno nessa mão formosa e branca como a
inocência?
—
Eu?!
—
Vossa excelência. Vejo-lhe o mel nos lábios e o travor do absinto, consinta-me
que o diga, na voz angélica, no gesto, na formosura.
—
Haverá lisonjas nas suas palavras, haverá, mas não sem muita ironia. Será tal a
minha infelicidade, que até com a própria presença lhe agrave essa tristeza,
essas dores?
—
Faz mais que agravar.
—
Mais ainda?...
—
Se faz! Imagine vossa excelência um viajante sufocado pelo calor, morrendo
enfraquecido à sede junto à margem duma torrente, que ele não pode tocar, e
diga-me, se avalia a aflição do desgraçado, como hei de eu fitá-la, ouvir-lhe a
linguagem celeste, sem que se me desfaça o coração em lágrimas, sem que compare
o que sou com o que fui e com o que podia ser?
—
Não o compreendi talvez. Mas, meu amigo, o viajante do seu enigma não seria tão
desgraçado que perdesse todas as esperanças no lance difícil em que o coloca. E
quando há esperança, ainda não é completa a…
—
Esperança! Eu supunha-o perdido num deserto.
—
Ainda assim podia valer-lhe a fé. A torrente poderia deixar o antigo leito para
lhe dar fartura de água.
—
Como?
—
Por um milagre da Providência.
— Vossa excelência crê na Providência? Por mim
cansei tanto a vista a procurá-la, que uma vez acordei cego. Como hei de
vê-la?...
—
Cego! diz Margarida, aproveitando-se graciosamente do equívoco, cego com os
seus olhos!...
—
Antes os não tivesse: porque sem a ver, Margarida, não veria como o céu é longe
da terra, o impossível entre nós ambos. Compreende-me agora?
Margarida,
vermelha de surpreendida, não venceu a perturbação. Estava pálida e ansiada.
Depois que recuperou alento, murmurou com aquele acento melodioso e trêmulo,
expressão de verdade e inocência, só sabido da mulher apaixonada:
—
Pois ainda não adivinhou? É preciso que os lábios digam tudo o que se sente?
Um
sorriso amargo, doloroso, pungente, encrespou os lábios descorados do visconde.
Margarida arquejava.
—
De que servem, continua ela, de que servem certos enigmas, que inventa quando
me fala, como se quisesse martirizar-me? Depende de mim a sua felicidade? Venha
recebê-la, que é toda sua. Não imagine então distâncias, nem dificuldades, que
eu tenho coragem para me mostrar ao clarão dessas luzes, em frente de quantos
aí têm lábios para o sarcasmo, ainda que o rubor haja de me queimar as faces,
para dizer — aqui me tem, pertenço-lhe.
—
Impossível.
—
Impossível!
—
O cego adivinha as maravilhas da natureza e adora-as, mas sem poder
contemplá-las. Eu sou como o cego, Margarida; adoro-a, sem poder mais nada.
—
Quer matar-me?
—
Quero-lhe muito para a deixar numa vida de quimeras.
—
Então que quimeras são?... Fale. Não vê que estou aflita?
—
Resume-se tudo numa palavra, que teria a gravidade da situação, se não fosse
consagrada pelo abuso ao desenlace de colisões romanescas. Essa palavra é…
—
Diga-a.
—
Mistério.
CAPÍTULO
3
Eu
bem sei que um diálogo puramente dramático, semeado de interjeições e palavras
grandes, mal se pode coadunar com a realidade da comédia humana. Não foi sem
grande dor de alma que coloquei o sibilino visconde em frente de Margarida,
exposto ao rir palerma dos que não sabem nada do coração e da sua linguagem,
linguagem fantasiosa, que muitas vezes desdenha o presente para ir colorir-se
nas eras aventurosas em que a castelã aparecia, visão aérea, por entre os tufos
floridos, que lhe enfeitavam o balcão, para ouvir à luz das estrelas as canções
plangentes do trovador enamorado; eras, as mais sublimemente poéticas, que têm
vindo. Senão, que o digam as mil novelas que por aí tresvariam a mocidade. Não
sei realmente a pena em que incorreram os protagonistas desta verídica
história, como cada um chama às suas imaginações, por irem, entre os prazeres
celestiais dum baile, alargar asas a conversações das que só se alimentam
declamando. Não sei. Pode ser que fiquem para sempre afogados na alvar
gargalhada pública, tão inconsciente de ordinário como injuriosa. Se isto
suceder é sobre um fato sucedido que deve cair o anátema. Por mim sou simples
narrador.
Tal
calor e vivacidade desenvolvera o diálogo em Margarida e no visconde, que,
esquecidos de quantos os cercavam, perderam de vista o mundo dos mortais. Já em
excesso aguçavam a curiosidade geral. Não foi sem perturbação que Margarida o
reconheceu. Mas, em lances destes, que inocente mulher não sabe um subterfúgio?
Foi
com simulada alegria que ela estendeu a mão delicada a uma bela senhora, que se
lhe avizinhara casualmente. Era a dona da casa.
—
Suplico-lhe, minha senhora, exclama Margarida, vermelha como uma romã,
suplico-lhe que me ajude a convencer este cavalheiro. Há muito que estou a
teimar com ele para que nos recite alguma daquelas adoráveis poesias, que nós
lhe conhecemos. Aos rogos de vossa excelência sei eu que não há de resistir.
—
Oh minha senhora!... acode o visconde, surpreendido da lembrança providente de
Margarida.
Quis
valer-se de modesta esquivança, mas neste tempo eram várias as vozes que o
instigavam a recitar. Curvou a cabeça vencido.
Formou-se
repentino silêncio.
As
damas e os elegantes tinham-se confundido em mostras de profundo interesse.
Todavia
por detrás dum reposteiro, podia um observador atento divisar um rosto de
mancebo, cujos olhos esgazeados pareciam a espaços fuzilar relâmpagos. Era D.
João. Se isto, que para aqui escrevo, fosse um romance, havia de ele (D. João)
apertar com a dextra febril o cabo de ouro dum luzente punhal. Porém não enodoemos
a história. Mandemos o punhal para o velho teatro ou para a floresta erma.
Era
vistoso o quadro. O jorrar luminoso dos candelabros, refletido nos espelhos;
nos painéis heráldicos; nas cabeças toucadas de rosas já emurchecidas; na
carnadura rosada dos seios desvelados, ofegantes de cansaço; o rosto nobre do
visconde inundado de luz; os grupos; as posições; tudo isto apresentava um
aspecto muito ao paladar do desejo.
E
a voz do visconde ergueu-se do meio daquele silêncio, como voz de inspirado.
Tinha nos olhos o sacro fulgor da sibila, e suas palavras eram devotamente
escutadas como se fossem um oráculo.
Eco!
Era o título da poesia. Partilhava do vigor da ode, do lirismo terno do idílio,
e da funda tristeza da elegia; porém, com tal arte, tal harmonia, que não
passava uma nota, que não fosse certeira ao coração.
Todo
o pensamento da poesia era tirado da metamorfose da desventurada ninfa.
Ela
a ver e a sentir que as formas delicadas lhe vão ganhando pouco a pouco as
curvas broncas dum rochedo informe; e a sentir ainda o coração inflamado a
pular-lhe lá dentro no seio de granito, com todas as paixões e ardores do seu
viver de anelos, fervente de luxúria; e o rochedo a engrossar, a engrossar… Eis
o pensamento. Ouro mais fino, mais de lei, nunca o extraiu poeta dos veios
explorados. Quando acabou a penúltima estrofe, que parecia arrastar-lhe de
envolta parte da própria alma, não havia faces que não estivessem molhadas de
lágrimas.
Aquela
voz impregnada de melancolia terna, aqueles formosos versos — que o eram —
coavam, em cada peito, comoções indefinidas, suavíssimos venenos.
Dir-se-ia
que o visconde pranteava as próprias desgraças. Os versos traziam como que o
selo da tremenda experiência.
Margarida
estava pálida como as camélias, que lhe desmaiavam ao contato do seio virginal.
Escutou até ao fim sem respirar. Depois desapareceu por entre os grupos
assombrados, e, apenas longe do bulício, desatou em soluços, escondendo o rosto
nas mãos.
A
minha miopia burguesa não lhe vê razão para tais extremos; mas, enfim, a verdade
é lei duma só interpretação. Tenho aqui a crônica que é de reconhecida
autenticidade.
Quando
a donzela (como lhe chamaria qualquer cavalheiroso romancista) voltou ao salão,
já lá não estava o visconde.
Consternada,
não hesitou em interrogar uma sua amiga acerca de tão inesperada ausência. Se,
porém, foi breve a pergunta, não lhe deveu nada a resposta, traduzida num riso
cheio de malícia, e num gesto, que designava a saída para os jardins.
Vinha
próximo o alvor da madrugada. Estavam já abertas as janelas.
Margarida
vagueava no jardim de canteiro em canteiro, de gruta em gruta. Poderiam vê-la
passar por entre o arvoredo e desaparecer na sombra como um lindo fantasma, mas
o que ninguém decerto conseguiria era ouvir-lhe o suspirar comprimido. Estava
na hora funesta, em que a mulher mais pura inveja o tálamo das Messalinas. Bem
via o precipício através das flores, que o encobriam, mas adorava-o.
Na
sombra, que uma das muitas árvores formava com os esgalhos espessos e
descarnados, onde esvoaçavam algumas aves saudosas da alvorada, foi deparar com
o pensativo visconde.
E,
sentada sem receio ao lado dele no ermo daquele lugar, jurou consigo, crente no
subido preço de suas seduções, que havia de ler na alma daquele homem os
segredos, que ele com tanto rebuço ocultava.
—
Eu também amo, diz ela, este crepúsculo vago, que precede a manhã. A imaginação
arrouba-se mais viva, e vê em cada objeto uma forma agigantada e indefinida. E
este indefinido não sei que alvoroços me desperta, com que suave aspiração me enleva
o espírito… Diga: não sente isto mesmo?
—
Bem conheço esse enlevo de que me fala, minha senhora.
—
Nem podia deixar de ser. Alguma voz íntima me diz baixinho que toda a alma tem
uma irmã, uma irmã gêmea no sentir, no pensar… Será certo?
—
Que sei eu? Estou longe da abjeção do céptico, e, contudo, duvido.
—
Na desgraça… crê.
—
Essa vejo-a, apalpo-a em cada membro do meu corpo.
—
Também duvida de mim?...
—
Vossa excelência! Pobre menina! Tem viçosas todas as ilusões. Encontra
atrativos neste mundo, porque só o viu por uma face, pela única prazenteira
face. Julga vossa excelência que se corteja aí a virtude, a grandeza da alma, a
elevação do espírito? Engana-se. O embuste, a simples aparência é tudo; e a
suprema desgraça da minha vida está nessas palavras. Tenho um coração ardente
para o amor, e uma cabeça para o compreender; mas nem uma mulher, nem uma só,
poderá encontrar em meus braços carinhos de esposo, porque são de barro
quebradiço ou tão doce, que facilmente se enquadra em todos os moldes.
—
Quando acabará essa linguagem de enigmas? Disse que tinha coração para o amor.
É então certo que ama?
—
Do fundo da alma.
—
E haverá mulher tão forte, ou tão abatida, que possa resistir-lhe? Deixe-me
duvidar.
—
É porque vossa excelência não prevê que esta fidalguia, que me encontra talvez
no aspecto, pode abrigar um flibusteiro indigno. Quero mesmo deixar-me cegar
pela vaidade para crer que sou amado. Não podia abrigar-se debaixo deste trajo
o corpo corroído dum leproso? Não poderiam lavrar aí cancros, gangrena e peste?
Suponha; e veja que noite a do noivado para uma menina, verdadeira sensitiva em
flor…
Terminou
com uma gargalhada alvar. Margarida teve medo.
Donde
concluo, aqui entre parêntesis, que o sistema nervoso das senhoras é mais
melindroso do que o do leitor, que, certamente, não vê motivos de susto. Possa
a descoberta ser de proveito à ciência.
—
Não julgue pela aparência, minha senhora, continuou o visconde com afabilidade.
—
Oh! Pressinto, não duvide, pressinto que não sou uma mulher vulgar, diz Margarida
com orgulho.
—
Adivinhei-o. E como me consola ouvir-lho! Pois bem, consinta-me uma pergunta
estranha, e mesmo original: se eu fosse um cadáver frio e inerte, animado por
qualquer engenhoso mecanismo, embora me pulsasse no corpo morto um coração com
vida, poderia vossa excelência abraçar-me sem repugnância? Quereria descansar a
fronte no seio de um cadáver?
—
Que extravagância! Pois olhe, Aveleda, à estranheza da pergunta vou eu dar uma
resposta, que vale pelo menos outro tanto; e Deus sabe que não minto. Margarida
animava-se prosseguindo: seja o leito nupcial no cemitério, que lá mesmo o
aceito, lá mesmo o apeteço. Repare que não corei. Se me treme a voz é ao peso
da verdade. Eu não exagero. Quem sabe o que é amor sabe que não exagero.
O
rosto do visconde iluminou-se de irradiante alegria. Balbuciando, pôde exclamar
apenas:
—
Margarida, minha Margarida!
E
pousou os lábios reluzentes no seio seminu da donzela, que, sôfrega, pagou a
ousadia com outro beijo, em que se lhe foi esmorecida parte da existência.
Depois,
o feliz visconde embrenhou-se por entre as árvores com aquele caminhar medido
do esqueleto das lendas populares.
Margarida
ficou como que desfalecida; com o toucado desfeito, tranças desatadas e a
cabeça pendente para as espáduas umedecidas pelo orvalho da manhã.
Di-la-iam
sonho feiticeiro de imaginação oriental.
D.
João ergue-se então em frente dela como obedecendo à evocação satânica dum
mago!
CAPÍTULO
4
Eu
lhe digo, leitor:
Acostado
tragicamente ao resguardo dum tanque, que estava ali perto de Margarida, tinha
surgido de repente um vulto de mancebo, como obedecendo à evocação satânica dum
mago.
Digo
“tinha” porque o caso passara-se no pino do Inverno, e, agora, já as
amendoeiras começavam a toucar-se das flores da Primavera.
Pelo
trajo do mancebo, e pela postura pretensiosa e frívola, era fácil reconhecer D.
João.
—
Perdão, minha senhora, havia ele exclamado numa entonação fatal, perdão por
ousar importuná-la. Não pude resistir à tentação de vir eu mesmo lavrar o
diploma da minha infâmia, declarando-lhe que assisti, escondido, a tudo o que
aqui se passou; e só para me deliciar agora na sua vergonha. O seu amante,
senhora D. Margarida…
—
Senhor D. João!...
—
Descanse. Sou muito generoso para sacudir injúrias sobre um rival ausente. Para
eu ser discreto bastava-me a esperança de que ao menos vossa excelência
transmitirá ao visconde de Aveleda esse mau pensamento em que ando. Diga-lhe,
minha senhora, que me consomem desejos de experimentar se uma bala sabe abrir
passagem através dum crânio.
Um
terceiro em cena teria rido talvez da teatral farfalhada. Margarida emudeceu
aterrada.
Os
primeiros raios de sol, frouxamente purpureados, caíram neste momento na face
do mancebo, voltada ao oriente. Aos olhos dela, toldados por tantas comoções
juntas, pareceram laivos de sangue. Fugiu espavorida.
Como
é, pois, que D. João vai encontrar acolhimento no festim do nosso visconde? E,
de mais a mais, no esplêndido festim do noivado?
Aí
está o que admira ao leitor sisudo, e a mim conjuntamente.
O
caráter do visconde explica o fato. Conhecia a mocidade, que nasceu no fausto
embalada por altas tradições de família para, ao despontar da adolescência,
começar de correr aventuras por botequins e lupanares até cair adormecida de
cansaço sobre páginas de perigosas novelas, e supunha-a para tão pouco que,
indiferente à ameaça, recebeu D. João como dantes, com as maneiras simpáticas
em que era pródigo.
Quem
sabe se fez mal!
O
certo é que o festim corria esplendoroso.
Margarida,
como não estaria ela! Tinha em roda de si isso que se diz — a gema da melhor
sociedade; as suas melhores amigas; seu velho e venturoso pai; e seus dois
irmãos: um, que se havia lançado nos escabrosos caminhos da magistratura;
outro, nas várzeas paludosas do peraltismo; e sobretudo tinha junto de si o
esposo querido da sua alma.
Que
mais longe podem ir as ambições mundanas?
Parece,
todavia, mais desmaiada e pensativa. Doce cismar deve ser o dela. Cismar
interpretado só — cuido eu — em véspera de bodas pelas felizes meninas a quem a
sorte deparou um noivo de formas vigorosamente arredondadas, boca vermelha,
dentes brancos e olhos sensuais.
Nós,
os homens, somos ímpios em excesso para nos ser dado requentar a imaginativa ao
fogo sacrossanto, nutrido por aquelas castíssimas vestais.
Ora
o que se notava ali era como que um perfume do oriente, rescendendo de todo
aquele luxo, o menos europeu possível. Avultava também não sei que desalinho,
que fazia recordar confusamente a efeminada Roma, a escrava luxuriosa dos
imperadores. Petrônio nunca imaginara camilhas ou poltronas que mais
provocassem paixões da carne; nem Voltaire serviu no Eldorado tão deliciosos
acepipes. Baixela daquele preço, digo-o desafrontado, não circulou ainda em
mesa de rei, nem mesmo talvez orgia de pontífice.
O
gosto e a opulência de Lúculo perderam-se naquela imensidade de mitológicas
ostentações.
Em
duas grandes urnas de metal precioso ardiam gomas aromáticas trazidas da
Arábia, que tornavam embriagante a morna atmosfera.
Cada
civilização viera depor o seu tributo.
Pelas
inúmeras portas, abertas de par em par, que davam para os jardins, viam os
alegres convivas alguma coisa de surpreendente.
Monstros
colossais de bronze, colocados em pedestais de mármore, lançavam das largas
fauces golfadas de água pura numa vasta represa, toldada de muitas aves aquáticas.
E, por cima da coma viçosa das laranjeiras e das acácias florentes, divisava-se
ao longe, no ocidente, mar imenso de labaredas, que, refletidas, tingiam ao de
leve a superfície límpida das águas com a tíbia cor do sol poente.
Chegara
o festim ao ponto em que o amor do tom familiar, para o qual tendemos tanto
nós, os portugueses, atropelando o código das etiquetas mais frívolas, tinha
agrupado, e, por assim dizer, germanado as diferentes jerarquias que estavam
ali representadas por homens e mulheres, entaladas em espartilhos, veludos,
caxemiras, sedas e gazes.
—
Por que será, perguntava uma senhora à sua vizinha, porque será que o visconde
de Aveleda está hoje, num dia como o de hoje, mais taciturno ainda do que nos
outros dias? Queria que me dissessem.
—
Já reparei, respondia a interrogada. O que eu desejava saber, sobretudo, é que
originalidade é aquela de vir sentar-se à mesa com as mãos escondidas nas
luvas.
—
Diz-se que nunca fora visto sem luvas.
—
É um homem bem extravagante.
—
E bem simpático, não é?
—
Sem dúvida. Ainda assim, havia de ter-lhe medo se acreditasse em nigromantes.
Não sei que ar de encantamento se respira em sua casa!...
São
distraídas por elegantes brindes aos noivos.
Também
D. João se levantou com o copo de ouro na mão.
Calou-se
tudo. Ninguém desconhecia o gênio estouvado do mancebo, nem o amor a Margarida
e o ódio ao visconde, sentimentos que ele alardeava por toda a parte. Daí veio
a surpresa geral, seguida do temor de alguma imprudência, acaso provocada pelos
anos e pelo vinho. O barão, aquele barão que o leitor conheceu no baile,
embalde se fatigou para o constranger a ficar quedo no seu lugar.
Era
tarde. D. João exclama com voz ligeiramente trêmula:
—
Chegou-me a vez de queimar também um grão de incenso no turíbulo santo da
amizade. Considero-me feliz. E muito mais porque, esgotando o meu copo, esqueço
a costumeira de fazer votos pela perpétua felicidade do ditoso par, que aqui
festejamos, para ir mais longe; para lhe profetizar uma longa série de júbilos
e alegrias, iguais às minhas alegrias de hoje. Saúdo-os com a resignação com
que nos circos da ensanguentada Roma saudava César o cristão votado às feras.
Sentou-se,
acolhido de frio silêncio. Só os desposados se inclinaram agradecendo, sem que
a ironia lhes passasse desapercebida.
—
Aí estão palavras que me parecem de mau agouro, murmuravam algumas vozes, ao
tempo que D. João, pousando sobre a mesa o copo vazio, dizia ao ouvido do
barão:
—
Encontrei-lhe o travor do absinto.
—
Não se desvaneceu ainda esse fumo?… pergunta o barão.
—
Adoro-a como nunca.
—
Desgraçado.
—
Há de falar-se de mim amanhã. O meu amor é como o dos tigres, que, às vezes, se
têm fome, devoram…
O
barão não conteve uma gargalhada com que interrompeu o amigo.
—
Oh, Baco! entoa ele na força da hilaridade.
Meia
hora mais tarde abriam-se as portas do salão. Ia começar o baile.
D.
João, viram-no sair para o jardim, mas ninguém o viu voltar. Algum projeto
meditava. Não queiramos, porém, devassar o que se passa no íntimo dos outros.
Nada temos com isso, em que pese, conforme diria um bem-falante, aos
Torquemadas modernos, que ainda os há em multiplicadas e furiosas catervas.
O
baile não se descreve. Em tempos menos cultos seria tido na conta de milagre; e
o visconde nem com água benta alcançaria esconjurar a sabida canonização.
À
meia-noite estava o salão deserto. E Margarida, derramando lágrimas de pudica…
de inefável doçura, abraçou seu velho pai e seus irmãos, que logo se retiraram
aos aposentos, que lhes estavam destinados.
Ao
transpor o limiar do seu encantado aposento, Margarida estremeceu, dando com os
olhos tímidos nos brancos cortinados de fina seda com grandes bordaduras de
ouro puríssimo, que velavam o misterioso tálamo. Através das janelas abertas
viu a Lua no céu, infalível em tais casos, e viu também a folhagem compacta do
laranjal, rescendente ao sopro ligeiro da embalsamada viração.
Coração
de virgem, na primeira noite de amor, enlanguesce por força, preso de
encantadoras vertigens, em presença destas seduções, aumentadas pela vaga
harmonia das esferas, que até essa se percebe então, seja dito em prosa.
Mas
onde está o esposo idolatrado, que não vem cair-lhe aos pés?
Caso
estranho! O visconde, no fundo da câmara, inclinado no recosto duma poltrona,
permanece imóvel a curta distância dum enorme fogão de estrutura particular,
firmado num plano um pouco inferior ao pavimento. O fogão contém um brasido
imenso, que lhe esparge no rosto sinistro um clarão avermelhado. Quem o visse a
essa hora e em tal posição julgaria ver ressuscitado algum dos alquimistas da
Idade Média, para continuar sonhando na transmutação dos metais, ou no elixir
da vida.
Margarida
adianta-se com timidez.
—
Henrique? murmura ela.
O
visconde fica imóvel.
—
Henrique, meu Henrique? continua. Por que me não respondes?
—
Estava a pensar, Margarida.
—
Pode saber-se em quê, Sr. pensador? torna ela um tanto ferida no seu orgulho de
mulher formosa.
—
Conheces a história de Hero e Leandro?
—
Li-a em pequena. Bem me lembro. Mas, que pergunta!...
—
É que eu estava a encontrar paridade entre aquela história infeliz e a nossa
história, Margarida.
—
Seriamente? Onde está então a tempestade que nos há de destruir num instante
todas as nossas venturas?... Oh, Henrique!...
—
A diferença está em termos entre nós uma sepultura aberta em vez dum simples
estreito. Feliz eu, se tivesse só a lutar com as tempestades do Helesponto!
Pobre inocente, que as não vês mais coléricas a estalarem-nos sobre a cabeça.
—
Jesus! Assustas-me. Que coisa no mundo pode opor-se ao nosso amor, pode vir
separar-nos?
—
Olha, diz o visconde designando sobre um bufete uma garrafa de cristal, cheia
de ácido prússico, uma só colher daquele veneno mata em menos de três minutos.
CAPÍTULO
5
Os
vinhos extraídos das uvas sazonadas nos luxuriosos vinhedos de Quios e das
margens pitorescas do Reno, a par dos deliciosos vinhos do Porto, Xerez e
Madeira, deslizando nos copos; as pedrarias serpejando nos seios alabastrinos
das mulheres; as nuvens olorosas derramadas pelos recortados tetos; as sedes de
amor inflamadas por olhos umedecidos ao volitar pecaminosos e túrbidos desejos;
a alegria da formosa donzela, que, trêmula de ansiedade, espera o momento em
que possa revolver-se delirante nos braços do homem que soube vencê-la; toda
essa harmônica variedade, que poderia realizar as celestiais aspirações dum bom
maometano, ateou no espírito conturbado de D. João quanto de extravagante pode
conter um pesadelo em noites de febre.
Correndo
de taça em taça em borbotões de espuma, feria-lhe o vinho espumante a vista
incerta, como se fora espadanar de sangue.
E
bebia, bebia sôfrego, incansável. Mas quanto mais bebia, mais crescia a sede.
Margarida!
era o nome que de contínuo lhe perpassava na mente enferma, era o nome que lhe
contraía os lábios e que a garganta enrouquecida não ousava desprender.
Negros
e repetidos pensamentos nasciam, atropelavam-se, lutavam no interior daquele
crânio, por debaixo dos compridos cabelos loiros, que, frouxos, lhe pendiam
sobre os ombros como abundantes flocos de seda.
Foi
nesse tempestuoso delírio que ele deixou a mesa do banquete para, cambaleante,
ir mitigar a febre nas flácidas moitas dos jardins.
Ia
receoso da multidão. Cuidava que todos os olhos lhe soletravam nos dele os
lúgubres pensamentos de sua alma. Queria ver-se só, que lhe não envenenassem
víboras mundanas as lágrimas represadas.
Era
um excelente rapaz este D. João. Generoso e amante não o havia mais.
Tisnara-lhe porém o hálito quente da sociedade as mais belas flores de sua leal
natureza.
E
não se tome isto como fastidioso monólogo de maçudo moralizador. A sociedade,
sim, senhores, foi a sociedade que estiolou com suas evaporações cálidas a
delicada eflorescência daquela bela alma. Viu-o rico, galhardo, franco e
perdulário, e abriu-lhe os seios fétidos, e prostitui-se às paixões do moço
milionário.
O
dinheiro escorregava-lhe por entre os dedos sobre as mesas alcoolizadas dos
cafés, sobre o leito enxovalhado das perdidas, sobre o empoeirado labirinto do
distúrbio; e os folhetinistas galantes, os fúteis da moda, alguns homens de
estudo mesmo, aplaudiam cúpidos, lisonjeando-lhe os vícios.
O
prostíbulo, voragem que a lei sanciona, foi a arena borrifada com o vinho de
suas primeiras proezas. Cansado enfim de se estorcer na crápula, no úmido chão
do lupanar, volveu os despertados apetites para a recatada burguesia.
Se
lhe resistia a inocência, a palavra dinheiro, pronunciada com voz anelante por
lábios torpes, abandonava o pudor aos soltos caprichos do mancebo. E muitas
foram as envergonhadas pequenas, que lhe venderam a virgindade em beijos frios,
em dilúvios de sentidas lágrimas.
No
entanto D. João aumentava em audácia. Os falados triunfos sopravam-lhe o
demônio da vaidade. Era à elegância de seu porte, segundo ele, era à doçura de
suas falas, e não ao ouro derramado, que devia as brilhantes conquistas. Assim
parecia às vezes, com efeito, porque, entre a fina holanda e preciosa tela de
brandos e custosos leitos, de frequência o esperavam também beijos
aristocráticos, corpos em que a provocadora nudez ostentava à luz da esmaltada
lâmpada, azuladas veias intumescidas de generoso sangue de gótica raça.
Não
era por certo, ele o dizia, não era o dinheiro, que lhe abria os portões dos
opulentos palácios. Tudo devia à graça de seus requebros, à louçania de seus
donaires.
Enganava-se.
Mentia-lhe o amor-próprio.
Nas
classes superiores, como em todas as classes, é um e o mesmo o alvo a que se
faz calculada pontaria; é uma ideia culminante. O homem, que se refastela em
encarquilhados títulos de fidalgo e capitalista, também não tem dúvida em dizer
à consorte, nas expressões da sua conveniência, como o homem do povo na aberta
linguagem das privações, não tem dúvida em dizer-lhe, deitando olhar oblíquo
sobre a descuidada filha: D. João é moço de subido merecimento. A par de
colossal riqueza, tem um dos mais fidalgos brasões. Bom casamento, na verdade,
bom casamento para uma menina honesta!...
E
em seguida apresenta o moço às senhoras. A menina cora. D. João deseja. O pai
indigita-lhe, matreiro, o casamento da filha, e sai em cata do primo marquês
com o cheiro numa saborosa partida de xadrez.
Mal
acostumado, como estava, supunha o mancebo utopia a pudica resistência numa
mulher; supunha-a flexível a seus carinhos como a junça ondulante ao sopro
morno dos ventos. Margarida, porém, incumbiu-se de vingar o afrontado sexo. Com
o desdém assanhara a vaidade do mancebo, e infiltrara-lhe no peito, vazio de
crenças, o mais perigoso dos sentimentos — o amor capricho, que, à maneira da
ebulição, põe em alvoroço as fezes adormecidas no fundo esterquilínio das
humanas paixões. A inveja, o ódio, o desespero, a insânia, a vanglória,
precipitam-se em redemoinho como satélites daquele nefando e frívolo amor. Daí
à loucura é escorregadia a estrada.
D.
João, depois de absorvidas torrentes de vinho, recordava como um sonho
baralhado, para ele, lacerante tripúdio no fabuloso banquete.
Repousara
a cabeça num feixe de trepadeiras que se atiravam em festões vigorosos aos
enfeitados ramos duma olaia, e deixara pender o corpo sobre a areia fina
tapizada de esfolhadas pétalas. Os olhos entreabertos demorava-os, absorto, no
clarão irradiado dos salões iluminados. E as sombras volteantes, que se
desenhavam ao longe, em ondas de gaze, no cristal dos espelhos, dali percebidos
no fim das salas, julgava-as etéreas e silfídicas visões. As ondas sonorosas das
afastadas músicas reboavam-lhe no tímpano como lamentáveis e prolongados
suspiros. Por outro lado, embalavam-no os trinos do rouxinol, flutuantes no
cerrado laranjal. Mas tudo isto não fazia senão avivar a dor daquela pobre alma
em penas.
Ter
vinte anos sem conhecer apetite irrealizável; ser orgulhoso e volúvel, e ver-se
condenado ao suplício de Tântalo; sentir a alma manchada no viver de
alvoroçados desvarios, exaltada de repente num sentimento puro; amar então, e
ser repelido; e amar com mais força ainda, de raiva, de vergonha, por capricho;
e querer afogar esse amor, agora impossível, querer afogá-lo em vinho, é
compreender a angústia por que passava D. João.
Margarida
era venturosa, quanto o pode ser uma formosa filha de Eva. Bem o sentira ele,
que a contemplara com a voluptuosidade da pantera, que espreita a apetitosa
rês; ele que lhe medira os movimentos, a intensa morbidez dos olhos, a
intumescência dos seios brancos, o descorar dos lábios.
Quisera,
mas não podia duvidar: o visconde de Aveleda era amado com todo o faminto
impulso dum peito virgem, enquanto ele, o herdeiro infamado dum celebrado nome,
ali tão perto, contava na efervescência da imaginação, na febre de seu delírio,
o pressuroso arfar dos corações amantes sem poder quebrar os laços, que os uniam
para sempre!
E
que os quebrasse? Não lhe coubera, em partilha, o desprezo?
D.
João chorava, chorava de humilhado. Na falta de cômodas barbas, arrepelava os
cabelos como um tirano de dramalhão, medindo a superioridade que lhe levava o
visconde.
Faltava-lhe
a tristeza do rosto, a dignidade do gesto, a suave melancolia da palavra, e,
sobretudo, aquela misteriosa sombra, em que se envolvia o visconde, que é para
o sexo curioso uma tentação irresistível.
Que
era ele, D. João? Um moço afeminado, doido, leviano, de lábios frescos e olhos
bonitos, amante de vinhos e de mulheres, aventureiro, sonhador; era o que são
muitos rapazes, o que todos podem ser.
Que
rumo era o seu? qual o seu destino? Abismou os olhos pelas trevas do futuro e
julgou ver, como num espelho nigromântico, as horas, os dias, anos, lustros,
caindo plácidos uns sobre os outros, monótonos, sempre os mesmos. Encontrou-se
no fim, quando menos o cuidava, no despertar de imundas sensualidades,
encanecido, velho. Fitava triste o passado e admirava-se de ter vivido. Era um
triste sonhar aquele. Não via uma pegada na areia móvel do caminho, que
marcasse sua passagem. E perguntava, supondo-se com efeito desperto na
decrepitude, perguntava — para que vivi?
Pensava
no suicídio.
—
Se a minha vida futura há de assemelhar-se à que levo passada, suspirava o
moço, vivi demais. Experimentei o gozo, compulsei as amarguras. Estou saciado.
Aspirações de glória, aspirações generosas, em que ouço falar tanto, não me
prendem ao mundo, nada me prende, morrerei.
Mas
um sopro da esperança vinha então, ao de leve, refrescar-lhe o espírito, e
aspirações nunca sentidas douravam-lhe por instantes a requentada imaginativa.
É
que o iludiam passageiras crenças, que, se fossem duradouras, operariam um
milagre de reabilitação. O que pode a mulher!
Assaltava-o
esse borbulhar de ideias, enquanto se contorcia, numa agonia mortal, no frio
leito, que o acolhera. Era tarde e bem tarde quando se ergueu vacilante. Tinha
sede. Gemiam em torno multiplicadas fontes. A represa parecia uma grande lâmina
de estanho caída no regaço de pampanosas verduras. Descia a lua perpendicular
sobre as águas. Aquela formosíssima solidão tinha, contudo, não sei que pálida
frieza de cemitério; coava nas veias alguma coisa de pavoroso. Sentia-o D. João
quando, curvando-se, bebia.
Mas
por que estremece como tomado de súbito terror? O desgraçado era vítima de
algum pesadelo infernal. Do fundo do líquido cristal notou que se destacavam
imagens monstruosas e horrendas, que não despregavam dele os olhos imóveis,
inertes, brilhantes como de reluzente metal, e quase ao mesmo tempo vibrou-lhe
aos ouvidos argentina gargalhada. Quis fugir, mas prendia-o como que um
poderoso magnete.
Breve,
porém, reconheceu envergonhado a fraqueza supersticiosa, que o dominara. As
imagens não eram mais que estátuas do jardim, que se retratavam na face límpida
das águas.
Quando
em nosso espírito acalentamos porventura um negro pensamento, negros e feios
vemos os objetos, que nos circundam. Um espírito cândido em tudo descobre rosas
e perfumes; fantasmas e perseguições o que se rojou nos cuidados do crime.
A
verdade dessas palavras sopeou-a D. João.
Mas
a gargalhada, aquela gargalhada que lhe soara aos ouvidos como solta do ciciar
das brisas, ou dos lábios de cetim de alguma fada invisível, donde viria ela?
Talvez
das salas do baile. Para lá voltou o moço a escandecida fronte.
Quebrara-se
o encanto.
Como
um tempo em que, depois da festa e das harmonias místicas do órgão e dos
súplices cânticos, se estende pelas naves imensas melancólico e funéreo
silêncio, assim nos dourados salões, há pouco banhados de luz, agora, fechadas
as escuras janelas, descera sepulcral silêncio.
D.
João despediu um guincho de espanto como o do cerdo ao sentir-se nas garras do
lobo, e pulou desnorteado, pelo teor e forma porque Dinis, no Hissope, faz
pular, em certo picaresco transe, o deão de Elvas, clamando — vingança!
É
que tinha seriamente meditado uma história de sangue. Medira o esforço de sua
alma e sentira que lhe quedava bem o nome de assassino. Qual será a vítima
escolhida para o cruento holocausto.
Chegara
o terrível momento.
*
Coroada
de brancas flores, semelhando adormecidas pombas, erguia os valentes ramos para
uma janela do palácio uma odorosa magnólia. A seu tronco estava arrimado um
homem com olhos chamejantes, mergulhados, através dessa janela ainda aberta, na
escuridão interior. Era D. João.
Estava
ali como um fragmento de granito, firme, sem respirar, mas febril e ardente.
Soara
a hora fatal em que, não longe dele, iam unir-se, consubstanciar-se num corpo
só, dois seres, que o infeliz quisera ver separados pela incomensurável
distância dum túmulo; dois venturosos, que entre suspiros, carícias, contorções
e beijos, iam, nus de trajos e de mágoas, celebrar celestiais mistérios do
noivado…
Pobre
D. João! Que assanhada lepra te lavrava o peito!
De
repente jorraram lá dentro raios de luz brilhante, e sussurraram passos indistintos.
O
mancebo apertou a desvairada cabeça nas mãos trêmulas. Pulava-lhe o coração na
ânsia febril.
Recalcada
um tanto a desesperação endireitou-se ameaçador. Lampejara-lhe na mente uma
ideia atroz. As janelas, que agora resplandeciam abertas, podiam ser trancadas
em pouco tempo, e então a esperada vingança teria de se represar ainda uma
noite nas lavas do seu crânio. Mas não. Era impossível. Numa noite perfumada
como aquela, em que a natureza se desprende em harmonias, em que as auras
sussurram, beijando as folhas dos arvoredos, em que as fontes suspiram e as
aves cantam; numa noite de amores, noite como aquela, é estreito o recinto duma
câmara para duas almas, que, fundidas, vão erguer sensuais oblatas aos pés da
amorosa deusa. Não, as janelas permaneceriam abertas.
Assim
pensava o mancebo, quando a leve sombra duma mulher se esboçou transparente no
mármore de um muro fronteiro. Era certamente a ingrata, que afanosa corria aos
ferventes beijos do cobiçado esposo.
—
E eu, desgraçado, murmurou D. João, só, sem luz, sem esperanças, só, cercado de
trevas e de abismos…
Deslizou-lhe
a aflição num riso. Recalcou novamente a dor, e, com mão segura, apegou-se ao
tronco da magnólia, atrepando por ela com movimento arrastado e ligeiro, como
de serpente. Apertou contra o peito o cano de suas pistolas, sacudiu os
orvalhados cabelos, e sumiu-se na folhagem.
Então
mil aves, acordadas na verde guarida, esvoaçaram assustadas, e fugiram soltando
pios, até se perder no desmaiado luar.
CAPÍTULO
6
Agora,
que a minha autoridade de verdadeiro contrarregra de teatrinho aldeão chamou
convenientemente a postos os esquisitos personagens, que hão de figurar no
presente capítulo, voltemos ao ponto em que deixei os suspirosos noivos na
crítica posição de todos os noivos.
Avalia-se,
não se descreve, o alvoroço de Margarida em face de baralhadas suspeitas, mais
e mais condensadas pelas fatais palavras do visconde.
Que
horrível linguagem era aquela, com que a acolhia o esposo, no momento em que
toda se absorvia na morbidez de um requintado afeto?
Se
acordasse dum sonhado paraíso, entre as ensanguentadas mãos de enraivecido
carrasco, que a arrastasse sem dó pelos ignominiosos degraus de um patíbulo,
por certo não sentira a donzela mais pavorosa surpresa.
Para
quê negros pensamentos, pensamentos de morte, quando ela, esquecida, como
nunca, da fragilidade da matéria, se arroubava ditosa no antegosto de
incógnitos prazeres?
Voavam-lhe
nos alquebrados membros repetidos calafrios de susto. Como magnetizada prendera
atônitos os olhos no visconde, e, então, naquela frieza de estátua, embalde
procurava o atrativo, que a tinha cativado.
Não
sei o que lhe viu nas mudadas feições. É certo, porém, que, apavorada, longe de
se avizinhar, como ainda há pouco, se afastou oprimida de supersticiosos
terrores.
—
Foges-me, Margarida! diz ele com dolorido acento. Amarguras-te de me ver a teu
lado! Devia ser assim. Como eu te quero, não o sabes tu. Não sabes como o
moribundo ama o último dia da existência que lhe foge.
—
Ama-me! Não me dizem o contrário tuas palavras, teu hálito gelado, a gelada
atmosfera que te circunda? Eu mesma sinto-me repassada de frio, e de…
—
E de medo.
—
E de medo, sim; e de medo, que não sei explicar.
—
Quebrou-se bem depressa o encantado prisma, que me mostrava a teus olhos sem os
traços carregados, que a desgraça sulca na fronte de seus escolhidos. E,
todavia, ainda não se rasgou o espesso véu, que me salva do escárnio, do teu
escárnio.
—
Henrique, Henrique! Sinto que se dá entre nós alguma coisa de muito
extraordinário. Perde-se-me a cabeça em mil estranhas conjecturas. Encontro-te
na imobilidade do cadáver. Diz-me quem és, quem tu és, Henrique, que eu não sei
conhecer-te…
—
Nem queiras. Basta saber que sou uma pobre alma, em busca dum corpo, que me
abrigue; um coração ardente num peito gelado como a pedra duma vala funérea.
Vi-te, débil criatura, através das lágrimas que me empanavam a vista; e, tal
qual sou, cuidei que minhas cruciantes penas poderiam encontrar refrigério nas
tuas consolações. Aparecias-me com a auréola divinal da mulher superior em
volta da tua bela cabeça. Não era muito que te supusesse capaz de lavar, sem
repugnância, com os bálsamos do amor, minhas leprosas e sangrentas chagas. É
que aos grandes desgraçados nunca deixou de sorrir, na insônia de suas noites,
uma imagem de mulher. Ahasverus lá encontra a redenção de seu triste fadário na
cândida Raquel. Eu entrevia-a em ti. Julgaste-me tu pelo que parecia, e não
decerto pelo que eu era. Venceu-te a aparência, que mais duma vez nivela o
vício com a virtude. Amaste-me. Ai que longa série de gozos me veio do teu
amor, Margarida! Quis declarar-te tudo. Não pude. Tive medo que se desvanecesse
num sopro a minha angélica visão. E só agora reconheço que te sacrifiquei, que
te arrastei talvez na minha queda, infeliz!
—
Na tua queda!!
—
Mas não. Conservo a última esperança. Se a perder, já te mostrei o veneno que
escolhi. Deixar-te-ei viúva e virgem, e rica, muito rica. Das multidões, que,
famintas, se hão de atropelar à entrada do teu palácio, podes eleger um esposo
que te mereça, que te dê na terra venturas do céu. Não chores, anjo…
—
E eu tão inocente, tão descuidada!... Só sabia das minhas queridas ilusões.
Como poderia suspeitar que o homem, que me escravizava!... E que fosses, no teu
passado, um grande criminoso, Henrique?! As lágrimas, que te regam as faces,
não significariam arrependimento e absolvição? Bem sinto que te comoves…
A
boca do visconde escancarou-se, como a desmenti-la, numa satânica gargalhada.
Margarida tremeu até à mais recôndita fibra.
Neste
tempo ouviu-se lá fora um estalido, que tanto poderia provir dum ramo seco
quebrado violentamente, como duma pistola armada por oculta mão.
A
assustada menina correu à janela. A Lua permanecia serena, prateada, no
recurvado firmamento. As aves esmoreciam em trinados nas franças das olorosas
selvas. Só se havia erguido certa desinquieta aragem, que balouçava os
arvoredos de tal sorte, que a coma lustrosa da magnólia quase roçava na janela.
—
Diria que ouvi… murmurou ela. E interrompeu-a nova contração de terror.
Uma
lufada de vento acabava de entrar na câmara, e a lâmpada de alabastro, suspensa
de rico velador, crepitando, quase a apagar-se, difundiu fantástico clarão pelo
rosto do visconde, que se destacava inerte num fundo avermelhado pela chama
sacudida do gigantesco fogão.
—
Criminoso, disseste tu, Margarida, exclama o visconde de Aveleda, pesando a
palavra que ela proferira. Enganaste-te. Fui sempre honesto e virtuoso. Não,
não estou manchado de crimes. Antes estivesse, que traria, quando muito, o meu
castigo no fundo impenetrável da consciência. Mas viveria, pois, através do
ouro; crimes não os vê a sociedade, e, se os vê, respeita-os.
—
Que labirinto!
—
Horroroso! Prosseguiu em tom de expansiva ternura. Vou ser franco, é tempo.
Vem, Margarida, minha esposa, vem para ao pé de mim. Reveste-te de toda a tua
coragem e escuta.
—
Fala, fala!
—
Lembras-te duma promessa, que me fizeste, transbordando afetos, como agora
tremendo de receio, promessa que eu aceitei?
—
Se fiz tantas promessas!...
—
Muitas, por certo. Filhas de leviana exaltação. Pois bem, entre essas todas,
prometeste seguir-me ao cemitério, se lá fosse minha morada…
—
Virgem Santa!
—
Esqueces? continua com voz cavernosa. Mentiste?... Lábios de anjo não mentem. É
teu esposo que te estende os braços…
—
Mas quem és, quem serás tu?
—
Vem perguntá-lo ao contato do meu corpo inanimado e frio, como o de um defunto.
Receias?
—
Oh Henrique!
—
Vem.
—
Desfaleço. Não posso mais. Tenho medo. Se ao menos fosse isto um sonho!
—
Adivinhaste. Isto é um sonho. Podes voltar para casa de teu pai. Eu não sou um
homem.
—
Pois que és, desgraçado?
—
Uma estátua.
Por
absurda, que parecesse a resposta, acompanhara-a tão firme acentuação de
verdade, que só de si fora bastante a enrodilhar três sábios e um compêndio de
lógica, e sobretudo o mais incrédulo e chegado parente de S. Tomé.
Não
é, pois, de estranhar a credulidade de Margarida, que, logo em continente, sem
acordar da mal-ajeitada surpresa, viu que as luvas do visconde, pela primeira
vez arrancadas, lhe deixavam as mãos a descoberto. O mesmo foi que vergar-lhe
sobre os joelhos o corpo alquebrado, e sufocar um grito na garganta. As mãos
descarnadas, que a estreitavam, eram feitas de marfim.
—
Desmaias? exclama ele na força do desespero. Que é da coragem que me prometias?
São todas assim as mulheres. Amante, seguias-me ao cemitério; esposa,
horrorizas-te de meus afagos, porque me não encontras calor nos membros, porque
sou uma estátua. E a cabeça, que harmonizou estrofes que te embriagaram, é esta
mesma, que agora repeles. E os lábios, que avivaram nos teus ânsias de beijos
com segredos, que tu decoravas, para os repetir sonhando, para acordar
repetindo-os, são os meus. Eu sou ainda o mesmo, que era, se me derem a perdida
esperança do teu amor. Que te falta, mulher? Aqui me tens.
Fez
um movimento. Ressoaram estalos como de molas. Horror! Sobre a poltrona caiu um
corpo mutilado, disforme, monstruoso. Pernas, braços, os próprios dentes do
visconde, brancos como formosos fios de pérolas, tombaram sobre os felpudos
tapetes da Turquia, e perderam-se nas dobras de seu robe de chambre, que
naturalmente se lhe desprendeu dos ombros.
O
infeliz era um fenômeno, um aborto estupendo, que em nossos dias valeria muito
dinheiro a quem quisesse especular. Era ele poeta demais para isso.
A
tudo, porém, dera remédio a civilização de seu tempo. Afortunados tempos!
Margarida
sentiu-se como petrificada. Mas, de repente, fulgurou-lhe a loucura nos olhos.
Comprimiu com violência o coração, e, veloz como o pensamento, desapareceu por
uma janela, desprendendo um grito agudo, dolorido, que se perdeu à distância,
ao tempo que, por outra janela, se precipitava no aposento um homem com uma
pistola em cada mão. Era D. João.
Por
seu lado o visconde sopesara a queda de suas sonhadas aspirações.
Borbulharam-lhe duas lágrimas dos olhos embaciados, que, desvairado, dirigira
para o bufete em que tinha depositado o veneno, última esperança. Impotente,
porém, para o aproximar dos lábios, não hesitou. Numa contorção de agonia
extrema atirou-se ao pavimento e rolou sobre as brasas vivas do fogão. Cingiu-o
bem depressa uma azulada, tênue, mas crescente labareda, e nem um gemido
soltou.
É
bem certo que as dores da alma nem deixam perceber as da matéria. Tanto as
excedem. Ouço-o dizer aos piegas, que namoram, folgam, comem e engordam.
Nas
complicadas cenas, à laia desta, habituaram-se os romancistas ao emprego das
sacramentais palavras: tudo foi obra dum segundo.
Eu
digo desta vez como eles, mas sem mentir; o que é para ser notado, porque
quando D. João, furioso, buscava alguém, que lhe absorvesse as iras, divisou
entre ondas de fumo uma informe massa em medonhas contrações. Parou ali. Mas
recuou logo repassado de horror.
Volvera-se
para ele um rosto coroado de labaredas. E cravaram-se nos seus uns olhos que,
rebentados pela viveza ardente das chamas, se revolviam ainda nas
ensanguentadas órbitas.
CAPÍTULO
7
“Pois
essas divertidas e caprichosas cenas, tão exóticas como pueris, que,
enrodilhadas e com feia catadura, têm devorado páginas e páginas em frases de
todos os tamanhos, terão alguma coisa de comum com a suave e desafetada
narração dum prometido conto não só verdadeiro, mas até elegante!? Um conto!
Chama-se a isto um conto! Dos que se dizem nos serões de Inverno com pasmo das
imaginações rudes ou infantis, poderá ser. Mas conto para gente fina e séria,
para gente que sabe de cor Edgar Poe e Hoffman! Oh, oh!
Sobretudo
imperdoável é o desaire com que o demônio do escrevinhador deixa transluzir das
combinações do seu espantoso imbróglio o presunçoso intento de fazer um
romance, que lhe dê azo a fingir-se modesto, chamando conto ao que, no juízo
dele, vale bem um romance. Ora, meu senhor, se queria rabiscar coisa como
romance, sofreasse um tanto os ímpetos com que os seus esfalfados heróis se
precipitam no epílogo; demorasse as situações com peripécias, episódios e tudo
o que lhe lembrasse, capaz de aumentar o interesse e aperfeiçoar o lavor
artístico da obra. Não basta encadear dois dissaboridos diálogos e alguns
ditinhos simplórios e afetados. Diálogos! Nada mais fácil. Duas pessoas que
falam, uma depois da outra, com intermédio de pausas e reticências… Se queria
fazer-se notado saísse a campo com seis, oito, vinte palradores, prendesse-os a
uma geral conversação em que falassem todos, alternados e simultaneamente, em
grita e com moderação. Então, sim. Aí encontraria oportunidade de desvendar a
sua mestria nas dificuldades da arte. Mestria essa que ninguém ousaria
contestar uma vez que alcançasse meios de se esquivar a mostrar-nos, pela
extravagância da algaravia, de que fabuloso modo se digerem bojudas vasilhas de
álcool.
Nesse
caso não nos opúnhamos a que levantasse uma estátua de barro em paga da sua
Estátua viva. Apenas se atreveu, porém, com a parte mais plebeia e chilra deste
gênero de literatura — o diálogo, coisa que hoje nem os dois mais triviais
interlocutores quereriam alimentar; embora iluda um tanto a paradoxal aparência
da proposição. Quanto ao visconde de Aveleda é ele, diga-se a verdade, a mais
simpática criação, que pode deduzir-se de inexperto cinzel.
Porém,
que destino! A astúcia depravada do autor faz com que o vejamos na parte
luminosa do quadro; que nos ganhe, não direi simpatia, mas um pouco de
benevolência…
Depois
acende um fogão monstro e de particular estrutura que estava preparado de
encomenda para receber um homem inteiro, e lança-o, com bastante pena nossa, ao
meio das chamas, e assa-o, não sei bem se com a tenção de o comer. Palpita-me
que o vai comer. Isto não se faz em país civilizado e liberal! Enfim, seja como
for, já gastamos mais cera do que é de lei com ruins defuntos. Oxalá que,
aproveitando-lhe a lição, venha a convencer-se de que não sobra quem se empenhe
nos progressos práticos da agricultura, e deixe de andar tresmalhado nestes
difíceis caminhos, que nunca pés mazorros lograram percorrer sem sangue.”
São
assim, pouco mais ou menos, as sibilantes expressões da maledicência, que eu
desprezo, sem que, todavia, deixe de vir a indignação das grandes almas
ofendidas inflamar-me as nacaradas bochechas.
Crítica
cordata e justa escutei-a sempre respeitoso. Insolências, à laia das
supraditas, não são lanças que façam saltar da sela cavaleiros do meu jaez, nem
hão de ser em tempo algum admoestações, que corrijam defeitos. A minha generosa
indignação não me deixa responder, como pedia o caso, se bem me está
borbulhando a ideia de confundir os linguareiros por meio duma digressão
ideológica, em que podia patentear os tesouros, que tenho amontoados no meu
celeiro. Não quero fazer escândalo. É o que lhes vale. Em desforra, apenas
prometo esmerar-me a fim de ser mais natural e correto no seguimento do conto,
que prossegue do seguinte modo:
Quando
o Sr. Urbano Solar, beatífico pai de Margarida, descerrava as preguiçosas
pálpebras ainda saudosas dos afagos do confortativo sono, marcava o ponteiro
dum relógio, que pendia graciosamente da parede, dez horas e alguns minutos. O
santo varão não acordaria tão cedo, se o estômago com irregulares rugidos não
acusasse certo vazio que o horrorizava. O Sr. Solar tinha horror ao vácuo; e
tanto que, na deliciosa perspectiva de um substancial almoço, que lhe deslizava
na mente fecunda e liberal, endireitou azafamado o colarinho, enlaçou a
gravata, deu a última demão aos ingratos cabelos, e foi incorporar-se a seus
filhos, que, já preparados, conversavam, aproveitando os raios vivificantes do
sol matutino.
O
dia estava duma formosura a derramar alegrias nos espíritos mais atribulados.
Parecia concertada a natureza para acompanhar os doces enleios, que deviam ser
então a alma animadora da ampla majestade daquela habitação. O próprio Sr. Urbano
sentia-se enfeitiçado.
—
O visconde? pergunta ele, admirado de que o não acompanhassem em continente
para a anelada mesa do almoço. Ainda não vistes a nossa Margarida?...
A
resposta resolveu-se em dois sorrisos frouxos, maliciosos, equívocos. Solar compreendeu-os,
quis revestir-se de gravidade, mas, em conclusão, não teve remédio senão
imitá-los.
Para
os inocentes, como eu, esses sorrisos não seriam mesmo obscuros. Tenho fé,
porém, que não faltariam honrados pais de família que, no dia seguinte ao do noivado
de suas filhas, perspicazes como Urbano Solar, soubessem dar explicações. Deus
me defenda de sabê-las dar alguma vez por minha parte.
Travaram
os três insignificante conversa, que ameaçava prolongar-se com sério detrimento
do aparelho digestivo do Sr. Solar. Mas como nem o visconde de Aveleda, nem
Margarida pareciam ainda dispostos, segundo suspeitas dum criado interrogado, a
vir livrá-lo desse suplício, tirou-se de seus cuidados, e, resolvido a não
esperar por ninguém, saiu na tenção de farejar por si mesmo certos conhecidos
escaninhos de gordurenta memória.
Ao
roçar na porta da câmara nupcial não pôde vencer a curiosidade, e apurou o
ouvido.
Nem
o mais leve sussurro. De dentro vinha uma réstia da luz pura do sol, que
mosqueava o pavimento, denunciando assim que eram já abertas as janelas do
interior, e que, portanto, os felizes habitantes daquele estreito paraíso não
continuavam esquecidos em amorosos delíquios, e além disso, que estava mal
cerrada a porta, que, por esse motivo, dava passagem à réstia do sol.
Aventurou-se a empurrá-la suavemente; e sem resistência nem rumor rodou ela
sobre os flexíveis gonzos, e pôs a descoberto a parte interna da câmara,
inteiramente solitária.
Entrou
o bom homem despejando da garganta exclamações de pasmo, lançou a vista em roda
e dilatou as cartilagens do nariz, tocado dum especial odor daquela atmosfera,
que era um desespero para o ambicioso e esfaimado estômago de S. Exa.
Afiava-lhe
o apetite aquele odor. É fácil de ver, portanto, que não podia satisfazê-lo o
simples conhecimento do efeito. Ao seu estado convinha, mais que tudo, palpar a
causa. Breve a descobriu ele no fogão, onde entre algumas amortecidas brasas,
cercada de cinza e de carvões, avultava uma massa compacta de carne, a este
tempo quase carbonizada. Revolveu-a de todos os lados, naturalmente admirado da
estranheza, e no fim da investigação concluiu que não era fácil determinar a
casta de animal, a que pertencia aquele torresmo, mas que, feitas as contas,
tinha na parte superior um provocante pedaço de loirejada polpa.
Solar
era um homem de muito siso para não saber explicar a esquisitice do fato com a
esquisitice do gênio do visconde de Aveleda. Foi de semblante prazenteiro que
seus filhos o viram voltar, convidando-os a acompanhá-lo.
—
O visconde, diz ele com afetado mistério, parecia que de propósito se recusava
a aparecer para nos obrigar a esperá-lo para o almoço. Mas eu que sou velho e
matreiro achei meios de me vingar.
Fui
procurá-lo ao próprio quarto.
—
E assanhou-lhe o masculino pudor, diz sorrindo o peralta. Está visto.
—
Pelo contrário. Não encontrei lá sombras disso.
—
Como assim. Pois…
—
O quarto estava deserto, mas saturado dum cheiro…
—
A ambrósia, provavelmente?
—
Não. A carne assada. Meu genro, cada vez mais estou convencido, é um homem de
inqualificáveis caprichos, duma rara excentricidade. Saiu, ninguém sabe quando,
nem para onde; ao menos não há criado que o diga; saiu com a noiva e deixou nas
brasas do fogão um imenso pedaço de carne, quase reduzido a cinzas, com exceção
da parte superior, que repele o mais sorumbático fastio.
—
E então?...
—
Então aquilo deve ser alguma preciosidade da inventiva culinária do visconde. E
para seu castigo lembrei-me de lhe pregar uma pirraça, que, por cima, há de
fazê-lo rir. Vinde almoçar comigo.
—
Mas não será indiscrição?... observa o magistrado.
—
Sou eu o responsável. Depressa! que não venha ele no entretanto.
Pouco
depois entrava o velho folgazão com os dois filhos na câmara dos desposados,
munido ele próprio dos apetrechos indispensáveis para o notável festim.
O
sabor da carne não correspondia à aparência. Era excessivamente insulsa,
viscosa e adocicada. Urbano Solar, desiludido, afirmava que só a sua
experiência saberia esburgar os ossos convenientemente, assim como só o apetite
saberia tolerar o dissaborido manjar.
O
magistrado acabava de cair num reflexivo abatimento, encarando com olhos
desvairados já na configuração da insulsa iguaria, já no lugar em que fora
encontrada. Supunha ter tocado com a faca alguma coisa, como uma caveira humana
transformada pela ação do fogo.
—
Meu pai! exclama ele de repente com voz espavorida, aqui há um terrível
segredo, um segredo muito espantoso. Este leito não dá sinais de que alguém se
recostasse nele. Os criados afiançam que não saiu ninguém desta casa, e…
Todos
estremeceram. Ressoara a detonação dum tiro e, em seguida, sussurros e gritos
no interior do palácio.
CAPÍTULO
8
Esopo,
Fedro, La Fontaine e mil outros ilustres colegas, que me precederam, costumavam
consagrar os últimos trechos das suas pingues histórias à dedução da moralidade
nelas contida.
Por
mim, inimigo figadal de relhas tradições, fiz protesto de os não imitar, embora
receoso de cair em alguma das originalidades sandias que vão por esse mundo,
fatos enfezados desta época inqualificável, em que cada sujeito tem uma luneta
e certo sorriso, e sofre do nervoso, e tem fantasias lúgubres, julga sorver a
imortalidade pelo fato simples dessas fendas e desses achaques. Apesar do bem
fundado receio não quero ser imitador.
À
parte o ódio ao ramerrão clássico, e a louvável ambição de conquistar direitos
a original, e não sei que mais, sinto meu fraco por fechar um conto num lance
desastrado, assombroso, nunca visto, tal que só de si possa tirar o sono por
três noites às sensíveis meninas, e chupar as excrescências adiposas e os
mesmos volumosos redenhos aos graves papás interessados na leitura.
Faço
de conta que os há interessados na leitura.
Posto
isto, facilmente se reconhece que por forma alguma convinha ao meu intento
reservar para o remate a fria moralidade, segundo usança dos meus defuntos
confrades, acima citados. Mas, para que me não censurem por leigo na missão que
escolhi, aí dou (a moralidade) em duas palavras suculentas, conceituosas e
profundas como se me empertigasse sobre a sagrada trípode da sibila.
É
ao formoso sexo que me dirijo, pois que não sei corrigir o vaidoso impulso de
fundar toda a minha aspiração em ser-lhe de préstimo, como diretor espiritual.
Aprendam
pois desta fúnebre história as donzelas inexperientes a temperar os amorados ímpetos
com o sal da desconfiança para que não vão encontrar às vezes, como no exemplo
exposto, algum rude madeiro, que se transforme em cruz de suplício, em lugar de
um galhardo marido, aparentemente cheio de vigor, de energia e seiva fluente de
mocidade. A experiência anterior, a análise microscópica antecipada, é a meu
ver a verdadeira tábua de salvação.
Pobre
visconde de Aveleda!
Quem
sonhara, ao ver-te esplêndido, imponente e adorado, que cruel fim te reservava
o avesso destino, sujeitando teu requeimado tronco aos apetites vorazes de
famintos canibais, que, ainda na véspera, te abraçavam no desaforo duma amizade
pura!
Altos
juízos de Deus! E sirva-me essa vulgar exclamação, tão avezada a cortar pela
raiz atadas questões de metafísica e teologia, a deixar nesta altura minhas
fastidiosas divagações. É de justiça que não esqueçamos o nosso simpático
Urbano Solar. Pede-o a própria caridade. Além de excessivamente encanecido e
débil, oprime-o neste momento a mais incurável das aflições para lhe não
levarmos já nossos benéficos socorros.
Podem
os egoístas clamar que lá tem ele os filhos, que o aturem.
Esses
mesmos, declaro eu, em despeito da robustez da idade, mal podem com a própria
consternação para que atentem no acabrunhado pai. E se não haja vista ao que sucedeu
no curto espaço do meu tardio discurso. Nada mais espantoso.
Ouviu-se,
como fica dito, a detonação dum tiro. Estremeceram as vidraças, reboaram os
ecos, e no interior do palácio recresceram os gritos.
Os
nossos gulosos interromperam assustados o insosso banquete, em que o primeiro e
único prato se compunha de carne de visconde, que deve ser mais estimada do que
a de outro qualquer animal menos fidalgo, e presos, todos ao mesmo tempo, não
sei de que terrível pressentimento, como por intervenção d’alguma invisível
corrente elétrica, trocaram entre si ligeiras e apavoradas vistas, e voaram
velozes para o lado em que recrudescia o ruído. Salvaram quatro a quatro os
degraus das elegantes escadarias, que descem para os jardins, e só pararam no
meio duma multidão de domésticos, que lacrimosos e dando pungentíssimos gritos
se acercaram deles como pretendendo impedi-los de passarem adiante.
—
Que é isto? Que aconteceu? perguntavam confundidos e impacientados.
—
Desgraça!
—
Senhores, senhores!
—
Por Deus não queiram saber!
—
Vão-se, vão-se. Não é aqui o seu lugar.
Tais
são as baralhadas vozes, que regougam dos diferentes pontos do círculo humano,
que os apertava. Urbano Solar compulsava já a realização de seus medonhos
presságios, mas estava longe de suspeitar toda a enorme fealdade do
acontecimento.
—
Digam-me tudo, bradava ele. Quero saber tudo. Que foi? Digam. Falem. Anselmo,
continua voltando-se para um velho criado, tu, que nunca mentiste, tu, que
nunca me desobedeceste, por que não respondes quando eu estou a perguntar?...
—
Senhor…
E
a vozearia continuava.
—
Fala, Anselmo.
—
A senhora D. Margarida…
—
Morreu?
—
Está morta!
—
Morta!
Adivinham-se
os lábios que pronunciaram esta pungitiva palavra, e a acentuação dolorosa, de
que vinha impregnada. Os dois mancebos, que por sua parte não tinham cessado de
sondar a causa de tão grande alvoroço, mal a conheceram, abriram caminho,
impelindo desvairados a multidão, tanto que lhes passou o atordoamento
momentâneo do violento choque. Urbano seguiu-os precipitado com as faculdades
em manifesta desordem.
Era
ao pé da magnólia que os esperava o funéreo quadro.
D.
João com os cabelos empastados, rotas e amarrotadas as vestes, repousava a face
lívida e desfigurada nos joelhos do velho capelão do visconde de Aveleda, que
se azafamava em estancar o sangue, que em borbotões lhe espirrava do peito. Ao
lado jazia Margarida, submersa no sono da bem-aventurança, com a fronte
despedaçada, pálida, mas sempre bela.
Sobre
ela caiu em desprendidos soluços o estonteado pai.
—
D. João! Também D. João!? exclama o mais novo dos irmãos, que em menos solene
lugar denominamos peralta.
—
Vive, responde o padre. Talvez seja ainda tempo de o salvarmos. Mandei a toda a
pressa chamar um médico.
—
Quem matou minha irmã? pergunta então pela terceira vez cego de furor, o
magistrado.
—
Suicidou-se, diz ainda o capelão.
—
Suicidou-se! Por que seria?
—
Está aqui, designando o moribundo, quem pode explicá-lo.
—
E esse? Também se suicidou? Suicida-se toda a gente!?...
Nesse
instante descerraram-se as amortecidas pálpebras de D. João. Tremeram-lhe os
lábios como num esforço para falar, até que fez ouvir algumas palavras soltas,
precedidas de guturais e inarticulados sons.
—
Veio? murmurou enfim.
—
O médico? pergunta compadecido o padre. Há de vir. Agora descanse que vamos
levá-lo daqui. Ânimo!
—
Morre-se bem em qualquer parte, torna a débil voz do mancebo, enquanto à flor
dos lábios lhe esvoaçava um sorriso cortante e irônico, como em resposta às
palavras intencionalmente animadoras do capelão. De que me pode servir o
médico?... E ele não veio?
—
Ele! Mas quem?
—
Quem!... o pai da infeliz. Tragam-mo, vão chamá-lo, tenho que pedir-lhe.
Seguia
o velho um lamentoso queixume, estreitando ao peito o cadáver da filha. Foi com
muito custo que alcançaram separá-lo dela, e trazê-lo à presença do moribundo
suplicante.
Apenas
D. João o encara, deixa transparecer uma indecifrável alegria. Assoma-lhe
passageiro colorido às faces, ilumina-se-lhe a fisionomia, e num esforço
impossível consegue erguer a meio o corpo. Mas bem depressa, extenuado, volve à
primeira posição com os extremos da boca levemente tingidos de avermelhada
espuma.
Todos
se aglomeraram em roda, calados e comovidos, e sobretudo curiosos do que ia
passar-se.
—
Senhor Solar, consegue dizer por fim, o momento da minha tremenda viagem seria
de incalculáveis agonias, se na despedida me não fosse dado implorar o perdão,
não do mal que fiz, mas do mal que esta minha fraca e leviana cabeça empreendeu
fazer-lhe. Confio que não há de recusar-me a absolvição. Bem sabe quanto é
pouco azada para enganosos ardis a hora do passamento. Eu confesso singelamente
o meu crime. Adorei sua filha. Adorei-a com o desenfreado ímpeto de rapaz
ocioso. Não teria recuado diante da violência, se me fosse necessária para a
possuir. E já que a minha consciência o exige, vou dizer-lhe, a que ponto me
levou um desvario do coração. Quando eu supunha a senhora D. Margarida, cedendo
a posse de todas as suas graças, de toda a juvenil formosura aos caprichos
suaves do visconde, perdido, febricitante, lacerado de mil diabólicos
pensamentos, atrepei da magnólia ao peitoril daquela janela. Soou ao mesmo
tempo um grito de agonia e de terror, que me fez vacilar, e senti como que o
baque de um corpo no fundo dum abismo. Lá dentro o visconde… Ai! o visconde…
Fugi, rolando de ramo em ramo do cimo da magnólia, mais louco, mais perdido do
que tinha entrado. Mal aventurei dois passos, tropecei num cadáver. Era
Margarida. Ao clarão da lua vi que tinha despedaçado o crânio de encontro à
aresta desse banco. Depois… Sei só que me queimava o cérebro este sol
escandecente, quando dei acordo de mim e me encontrei ao lado dela. Então,
receoso de que se me conglobasse o sangue no coração, quis excitá-lo com uma
bala…
Esta
breve narração, interrompida com as pausas e reticências do costume, que eu
omito, diga-se baixinho, para que não fique picaresco um lance que a todo o
custo quero muito sério, quase lhe exauriu o pouco de vida que ainda lhe
restava.
—
Mas o visconde? Que fazia no entretanto o visconde? pergunta o atribulado
velho.
D.
João abriu pela última vez as pálpebras, e desprendeu a existência nestas
últimas palavras:
—
Procurem-no nas chamas do…
—
Nas chamas?... Ah!
E,
tomado dum acesso de loucura, Urbano Solar arrasta violentamente consigo os
dois filhos, que, estupidificados, se deixam conduzir sem resistência. Assim
entraram numa sala. O velho fechou a porta e caminhou sereno e ereto para os
mancebos que se prostraram quebrantados num sofá.
—
Medistes, diz, medistes toda a grosseira fragilidade, toda a acanhada
contextura da comédia humana, em que, por zombarias do acaso, tivemos o nosso
papel. Aprendestes demais para rir na adversidade. Coragem, pois! A vida é um
sangrento escárnio, que se paga com outro escárnio. Deixai as lágrimas às
mulheres, para que se não diga que tudo lhes tiramos. Eu estou sereno. Que
importa que…? Margarida… o visconde… Sabeis?...
—
Comemo-lo, respondem os dois com voz de dentro.
—
Comemo-lo, repete o venerando ancião.
Eu,
aproveitando-me de meus privilégios de narrador, ri-me por detrás dos
bastidores.
Urbano
Solar prossegue, trocando o estilo seco, nervoso e constrangido, em que
começara, por outro mais apaixonado e aguado de lágrimas:
—
Perdia-a… minha Margarida, a filha querida da minha alma… E como a perdi eu, e
quando, e em que lugar!... De que me serviu a enlevada crença na sublime
bondade de Deus, desse Espírito, tão poderoso como tirânico, que desfecha cego
toda a sua cólera sobre um pobre velho piedoso e honrado? Por que me não
escuta, ao menos, quando lhe peço a morte? Implorei-a do fundo da alma com fé,
com amor, e desprezou-me os rogos. Prefere blasfêmias. Serão breves as minhas.
Filhos, meus filhos, um último abraço. Vou morrer.
—
Morrer!
—
Necessito descanso. Suicido-me.
—
Havemos de acompanhá-lo, meu pai, diz enfático, erguendo-se, o mais novo.
—
Seja. Que se risque da terra nosso nome de família.
—
Uma palavra, diz o magistrado com solene gesto.
—
Breve.
—
O visconde de Aveleda era milionário.
—
Que mais?
—
Não sei de parentes mais chegados do que nós.
—
Mas…
—
Somos seus legítimos herdeiros.
—
Nós!!
—
Oh!
Calaram-se.
Nesse curto espaço de silêncio observou o magnânimo doutor que as fraternas e
paternas feições iam resplandecendo pouco e pouco, como se um sol esperançoso
acabasse de rasgar tempestuosas nuvens.
—
Glória a Deus! clamam ambos. Estamos salvos! Bendito sejas tu, que nos
salvaste!
E
encanzinaram-se no magistrado, como molossos esfaimados num couro rijo de
pernil de Lamego.
Imagem: Monika Mostowik
(Dolls of Milena - Flickr).
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