COISA DO OUTRO MUNDO - Conto de Terror - Luiz Raimundo

 


COISA DO OUTRO MUNDO

Luiz Raimundo

 

 Como diria o meu velho e saudoso amigo Walter Isaac, hoje eu vou mudar a minha linha.

 O relato que farei agora, sei que muitas pessoas não compreenderão. Não compreenderão, porque nunca sentaram-se à volta de um fogão, numa fria noite de maio/junho, o fogão com aquela boca vermelha, cheia de brasas crepitantes, soltando fugazes estrelinhas que voavam pela cozinha. Não entenderá, quem nunca se sentou à beira do fogão, naqueles bancos toscos de madeira, já brilhando como se envernizados fossem, de tanto rela-bunda sobre eles, ouvindo, com o apertado coração de criança, histórias de assombração...

Também poderá não entender quem não conheceu esta Ponte Nova de muitos anos atrás, com nenhuma rua asfaltada, umas poucas com calçamento, e todas elas mal iluminadas pela Companhia Ouropretana, lembram-se? Se não me engano, a sede dessa empresa, em Ponte Nova, era na casa hoje ocupada pelos herdeiros de Dr. Andrezinho, no centro.

 Pois muito bem. O fato é o seguinte:

Numa sexta-feira de abril, cheguei de Belo Horizonte, por volta de nove e meia da noite. O ônibus deixou-me no que era chamado de rodoviária, um bar, ali, pertinho da Ormel, defronte ao ATAC, onde, mais tarde, se instalaria o Bar Roda Viva. Normalmente, o ônibus me deixaria em Palmeiras, perto da Casa Patriota, mas como era só eu que iria para o bairro, e não havia ainda o Código de Defesa do Consumidor, o motorista simplesmente informou-me que dali iria para a garagem.

Desci abraçado à minha pequena, mas desconfortável, mala amarela, feita de um papelão bem resistente (só não podia ver água...) e, meio p. da vida, iniciei a minha jornada até a Rua Dr. José Vieira Martins, 370. O caminho melhor a se fazer era passando pela avenida. Subi a Benedito, cruzei com algumas poucas pessoas que iam para casa, alguns alunos da Escola Técnica de Comércio, outros que iam pegar turno na Fundição Progresso ou na Central do Brasil.

 No centro da cidade, a vida já estava tomando rumo do descanso. À janela do casarão dos Brant, Dr. Toni soltava rodinhas de fumaça, tragada de um cigarro que ficava longe da sua boca, espetado numa piteira francesa e contemplava o céu de abril, através do vão existente entre o prédio da Colchoaria Magnata e o da Associação Comercial, onde funcionava a Rádio Ponte Nova, que, àquela hora, já se preparava para encerrar suas transmissões do dia. A Gruta Carioca (atual loja da Adequashint), do seu Temístocles, já havia baixado as portas; o Bar Melodia, também. O Restaurante do Seu Joaquim Ferreira (hoje, Casa de Chopp Avenida) mantinha só uma porta lateral aberta, e da rua podia-se ver o Fernando e outro funcionário fazendo a limpeza, já que cedinho, antes das 6, já estaria aberto de novo.

Desci a Avenida assobiando uma canção do Adilson Ramos, sucesso na época, e logo cheguei próximo à Ponte da Barrinha. Passei pelo Centro Espírita Fé, Esperança e Caridade (ainda no mesmo lugar) igual um corisco, do outro lado da rua. Já na Custódio Silva segui apreensivo, não com medo dos vivos, já que naquela época, além de Totoni Veludo, não se falava em bandido, em ladrões. Tinha o Zé Maria Gato, sagaz batedor de carteiras (que eu não temia, pois era meu amigo), e que nesta hora, devia estar na Zona. (Dizem que o Zé Maria Gato tinha uma habilidade fantástica com a navalha, sempre com ele, amarrada num elástico, e que ele podia atingir alguém há três metros de distância, e a navalha voltava fechada na sua mão).

Ainda não havia a Custódio Silva atual. Do Posto Rio Doce até nas proximidades dos Romagnoli, não havia rua. A passagem era por dentro, na, hoje, Av. Dr. Abdala Felício. Tudo deserto. A luz da rua era menos intensa que o brilho dos vaga-lumes que voavam por todos os lados. Quando passava por uma casa, com uma janela aberta ou uma varandinha com luz acesa, de maior potência que a da rua, essa luz projetava a minha sombra, que caminhava ao contrário da minha toada, fazendo-me, sempre, levar um susto tremendo.

Na entrada para o Gavetão, a rua Felisberto Leopoldo, quase fui atropelado pela “Rita Pavoni”[1](RP), que, com um farol quebrado e o outro semiapagado, vinha quase às cegas, conduzida por um meganha. Perto da ponte do Ribeirão Vau-Açu, (inspirador de Zeli Mafra, que disse: “essas águas eram puras, de beber na palma da mão; tinham peixes com fartura...”) avistei, na porta da Loja Botafogo, o Seu Jamil Mucci. Aquilo foi alívio para meu coração acelerado. Caminhei mais rapidamente, pois o simples fato de ver uma pessoa conhecida, mesmo que com ela não tivesse nenhuma intimidade, era bom. Algo me distraiu, e já há três metros de distância do que eu achava que era o Sr. Jamil, virei-me para o lado; quando voltei a olhar para frente já não vi mais ninguém. Sumiu feito fumaça. Aquilo me deu um calafrio, minhas pernas, daí pra frente já não obedeciam muito ao comando do cérebro. Parecia que eu estava caminhando numa perna-de-pau...

Segui em frente, ainda tinha muito que enfrentar, pois teria que subir o morro do Pau d´Alho. Lá havia, do sopé até o topo, uns cinco postes de iluminação (?), só dois tinham lâmpadas. A lua, sempre bem-vinda, ajudava a Ouropretana a cumprir o seu mister.

Inicio a minha subida pelo Morro do Pau d´Alho.

Já na metade do morro, atolando meu pé na lama produzida pela chuva que deve ter caído à tarde, segui atento a tudo; qualquer barulho, e eram muitos os barulhos da noite, sentia um frio na barriga. O mato, de um lado e outro, fazia estranhas coreografias sob a regência do vento assobiador. Passando pela porteira que dava entrada para a chácara dos Almeida Costa, tentei ver alguém conhecido. Nada. Tudo deserto. Vez por outra um barulho maior, às minhas costas, quase me paralisava. Com muito custo, criava coragem para olhar pra trás e ver que podia seguir em paz.

Enfim, cheguei nas proximidades da residência dos Villar. Entrei na Marechal Deodoro, já quase na reta final para chegar em casa. Andei uns dez metros, e o som do tropel, do que eu pensei fosse algum cavalo perdido, me fez parar e olhar para trás. O que vi, eriçou os meus cabelos, a adrenalina (na época eu não sabia o que era isto!) foi a mil. Neném Milagres, que estava na janela de sua residência, também viu; arregalou os olhos, bateu a janela e sumiu... Reunindo forças não sei de onde, segui numa carreira desenfreada no rumo de casa. A mala, como sói acontecer com as (e os) malas, só me atrapalhava. Defronte à casa do Senhor Nico Ozório, fazendo a última curva para chegar na segurança do meu lar, escorreguei no barro mole que cobria a rua e fui ao chão, como uma jaca desprendida da jaqueira. Minha mala foi parar longe, aberta, roupas pelo chão... Catei tudo às pressas, ofegante, e segui para casa. Vi minha mãe na janela, esperando-me preocupada, pois isto faz parte do ofício de mãe. Quando subi os três degraus da varanda, a porta já estava aberta pra mim.

— Que foi isso, Luiz Raimundo? Cê parece que viu fantasma! — Eu não conseguia falar nada.

— Não sente no sofá. Vai tirar esta calça que tá toda enlameada.

 Depois de tomar uns dois copos d´água, a voz e a cor foram voltando. Aí, eu pude explicar pra ela o que eu havia visto.

Nesse meio tempo, meu pai, que já estava deitado, levantou-se e veio saber o que estava acontecendo. Rosa, ainda pequena, não acordou. (Cuca e Celso ainda não tinham nascido).

 A minha mãe, nascida em Jequeri, filha de caçador, homem de muitas aventuras com almas penadas e coisas do outro mundo, sabia o que deveria ser feito.

Enquanto isso, lá fora (janelas e portas bem fechadas), ouvia-se a corrida da coisa, bufando que nem touro num rodeio. Pela gretinha da janela, via-se a fumaça do bafo amaldiçoado se dissipar na noite. Minha mãe, corajosa e destemida, olhou pela janela e viu que a coisa ia longe, já virando a esquina e subindo a José Mariano. Dizia-me ela:— que cê tinha de viajar de noite, numa sexta-feira da quaresma; inda mais sendo dia 13, menino?!

 Daria tempo. Passou a mão no terço, que havia sido benzido pelo Pe. Antônio Pinto de Urucânia, e correu até a casa de Dona Nega, sua comadre, a terceira casa depois da nossa, bem debaixo do campo do Palmeirense.

Dez minutos depois, estavam de volta, as duas, cada uma com sua arma: o terço (o de D. Nega era de madrepérola, lindo!). Nessa altura, já eram onze e quinze da noite, mas, tal a desolação da rua, parecia alta madrugada. Por ordem de D.ª Nega, meu pai acordou Rosa, que meio sonolenta, resmungando, não entedia nada, e todos nós, de joelhos na sala, rezamos, primeiramente o Credo e depois a oração do terço, puxado pela comadre de minha mãe. Após os “pais-nossos” e as “ave-marias” de praxe, a expert em coisas de além vida (era ela quem nos contava os “causos” de assombração, sempre verídicos, como ela afirmava), iniciou uma sessão de orações que só ela sabia. A nós cabia apenas responder: amém, seja feita a vontade do Senhor etc. Onze e meia já tinha sido anunciado pelo relógio da Matriz de São Pedro há dez minutos. Apressada, D.ª Nega pediu à minha mãe a tesoura da casa, que lhe foi entregue prontamente. Mais umas duas loas, sinal da cruz sobre a tesoura, lá foi ela. Abriu a porta. Certificou-se de que a rua estava realmente vazia. Todo o ritual tinha que ser realizado antes das doze badaladas. Dirigiu-se até o meio da via pública e fincou, na terra amaciada pela chuva, a tesoura, deixando uma das suas pontas para o alto. Em volta dela, abriu e deixou lá um outro terço, este trazido de Aparecida do Norte e abençoado pelo Pe. Victor Coelho de Almeida. Foi para casa dormir e aconselhou-nos a fazer o mesmo.

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Na manhã seguinte, mal o sol havia se mostrado, acordei com uma movimentação dentro de casa e uma algazarra na rua. Cheguei à janela da sala, os olhos ainda cheios de remelas, e vi um grupo de pessoas reunidas em torno de algo, que de onde estava, não dava para ver. De pijama mesmo, fui até o grupo, infiltrei-me no meio do povo e vi, com espanto enorme, uma mulher morena, nua, caída na rua, com o pé esquerdo preso à tesoura e o terço a envolver seu tornozelo. Era Esmeralda. Com certeza estava morta. Nas redondezas, havia comentários de que ela era mulher do padre. Nunca ninguém havia confirmado tal fato.

De repente, chegam dois soldados, com aquela farda amarelo-desbotado, capacetes que mais pareciam couraças de tatu, e... o Padre. Quando o sô vigário viu a figura da mulher no chão, percebi que ele sentiu um choque. Recompôs-se logo. Sem falar, sem uma oração sequer, pegaram e cobriram o corpo com alvo lençol doado por algum vizinho, colocaram numa caminhonete e desceram a José Vieira Martins... nunca mais se ouviu falar da mulher e nem ninguém ousava comentar o fato... até hoje. De longe, Dona Nega (que hoje se encontra no Reino dos Céus) e minha mãe, assistiram tudo, não diziam nada, só se entreolhavam.

 


À guisa de esclarecimento: dizem que antigamente, mulher que se envolvia com padre, toda sexta-feira da quaresma virava mula-sem-cabeça. Será que a tradição continua?

                                              




Mineiro de Jequeri, Luiz Raimundo de Oliveira, há muito radicado na vizinha Ponte Nova, é advogado, jornalista, divulgador cultural e escritor. Foi diretor da Faculdade de Ciências Humanas do Vale do Piranga e Secretário Municipal de Cultura da cidade que adotou. Publicou “Páginas de Prosa” (2007) e Reencarnação (2009).  A presente narrativa integra a sua nova antologia de contos e crônicas — “Vagalume” —, recentemente publicada. 

 



[1] Rita Pavoni, era como o povo, na época, denominava os carros da polícia, as Radiopatrulhas. (N. do A.)


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