IMPORTUNAÇÕES DEMONÍACAS - Narrativas Clássicas Sobrenaturais - Ludovico Sinistrari

 


IMPORTUNAÇÕES DEMONÍACAS

Ludovico Sinistrari

(1622 – 1701)

 

Num certo mosteiro de santas monjas, vivia, como interna, uma jovem donzela de nascimento nobre, que foi tentada por um íncubo.

O demônio se lhe aparecia de dia e de noite e, com as mais fervorosas súplicas, com os melindres de um amante profundamente apaixonado, incessantemente a incitava a pecar.

Mas ela, amparada pela graça de Deus e pelo uso frequente dos sacramentos, resistiu com firmeza à tentação.

Contudo, apesar de todas as suas devoções, jejuns e votos, apesar dos exorcismos, das bênçãos, das injunções derramadas pelos exorcistas sobre o íncubo para que ele desistisse de molestá-la; apesar da multidão de relíquias e outros objetos sagrados recolhidos no quarto da donzela, das velas que permaneciam acesas a noite toda, o íncubo persistia em aparecer para ela como de costume, na forma de um jovem muito formoso.

Finalmente, entre outros sábios homens, cujos conselhos haviam sido ouvidos sobre o assunto, estava um teólogo muito erudito que, observando que a donzela era de um temperamento completamente fleumático, presumiu que aquele íncubo fosse um demônio aquoso (há de fato, como é o testemunho de Guaccius, demônios ígneos, aéreos, fleumáticos, terrestres e subterrâneos que evitam a luz do dia), e prescreveu uma fumigação ininterrupta na cela.

Um novo recipiente, feito de terra vítrea, foi convenientemente trazido e preenchido com cana-de-açúcar, sementes de cubebe, raízes de ambas as aristolóquias, cardamomo grande e pequeno, gengibre, pimenta-do-reino, cariófila, canela, cravo-da-índia, maça, noz-moscada, estoraque de calamita, benjoim, aloés-madeira e raízes, uma onça de triasândali e três libras e meia  de conhaque e água. O recipiente foi, então, posto em cinzas quentes para forçar a subida do vapor fumigante, e conservou-se a cela fechada.

Assim que foi feita a fumigação, veio o íncubo, mas nunca ousou entrar na cela. Somente quando a donzela passeava no jardim ou no claustro, o demônio se lhe aparecia, embora invisível para as demais. E, passando os braços em torno do pescoço da monja, dela roubava, — ou antes arrancava — beijos, para o grande desgosto da jovem.  Por fim, após nova consulta, o teólogo prescreveu à monja que levasse consigo comprimidos feitos dos mais requintados perfumes, como almíscar, âmbar, cebolinho, bálsamo peruano e outros.

Assim guarnecida, ela foi dar um passeio no jardim, onde o íncubo apareceu de repente para ela com uma cara ameaçadora e em fúria. Dela, ele não se aproximou. No entanto, depois de morder o dedo como se meditando vingança, desapareceu e nunca mais foi visto.

Eis aqui outra história.

Vivia, no grande convento cartuxo de Pávia, um diácono, chamado Austin, que foi submetido por um certo demônio a aborrecimentos excessivos, inauditos e quase inacreditáveis.

Embora muitos exorcistas tenham feito repetidos esforços para assegurar a sua libertação, todos os remédios espirituais se mostraram inúteis.

Fui consultado pelo vigário do convento, que obteve a cura do pobre escrivão. Vendo a ineficácia de todos os exorcismos habituais, e lembrando-me do caso acima relatado, prescrevi uma fumigação semelhante àquela que detalhei, e recomendei que o diácono carregasse consigo pílulas perfumadas da mesma espécie. 

Além disso, como tinha o hábito de fumar e gostava muito de conhaque, aconselhei fumo e conhaque aromatizados com almíscar.

O demônio apareceu para ele de dia e de noite, sob várias formas, como um esqueleto, um porco, um asno, um anjo e um pássaro. Sob a figura de um ou outro dos Frades e, certa feita, com a fisionomia do próprio Abade ou Prior, exortou-o a manter a consciência limpa, a confiar em Deus, a confessar-se frequentemente. Persuadiu-o a deixá-lo ouvir a sua confissão sacramental, recitou com ele os salmos Exsurgat Deus e Qui habitat e o Evangelho segundo São João. E quando chegaram às palavras Verbum caro factum est, dobrou-se e agarrou-se a uma estola que estava na cela, e, com o borrifo de água benta, abençoou a cela e a cama e, como se fosse realmente o Prior, ordenou ao demônio que não se aventurasse a molestar seu subordinado. Ele então desapareceu, traindo assim o que realmente era; assim não fosse, o jovem diácono o teria tomado por seu prior.

Agora, apesar das fumigações e perfumes que eu havia prescrito, o demônio não desistiu de suas aparições habituais. Mais do que isso, assumindo as feições de sua vítima, dirigiu-se ao quarto do vigário e pediu um pouco de fumo e conhaque aromatizado com almíscar, de que, disse ele, gostava muito. Tendo recebido ambos, ele desapareceu num piscar de olhos, mostrando assim ao vigário que o demônio o enganara; e isso foi amplamente confirmado pelo Diácono, que afirmou, sob juramento, que não tinha ido naquele dia à cela do vigário.

Quando me relataram todo o sucedido, inferi que, longe de ser aquoso como o íncubo que estava apaixonado pela donzela acima mencionada, esse demônio era ígneo, ou, no mínimo, aéreo, pois se deleitava com substâncias quentes, como vapores, perfumes, tabaco e conhaque. A força foi acrescentada às minhas suposições pelo temperamento do jovem diácono, que era colérico e sanguíneo, com a predominância da cólera, pois esses demônios somente se aproximam das pessoas cujo temperamento corresponde ao seu, e isto significava mais uma confirmação de meu sentimento em relação à sua corporeidade.

Portanto, aconselhei o vigário a deixar seu penitente pegar ervas frias por natureza, como nenúfar, erva-do-fígado, espora, mandrágora, alho-poró, banana-da-terra, meimendro e outras semelhantes, fazer dois pequenos feixes delas e pendurá-los, um na janela e outro na porta da cela, tendo o cuidado de espalhar alguns, também, no chão e na cama. É maravilhoso dizer! O demônio apareceu novamente, mas permaneceu fora da sala, na qual ele não quis entrar; e, quando o diácono lhe perguntou os motivos para tal reserva incomum, ele explodiu em injúrias contra mim por dar tal conselho, desapareceu e nunca mais voltou.

 

Versão em português de Paulo Soriano.


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