A GAITA DO DIABO - Conto Clássico de Terror - George Sand

 


A GAITA DO DIABO

George Sand

(1804 – 1876)

Tradução de Paulo Soriano

 

 

Em Morvan, os menestréis são guias de lobos. Somente aprendem música dedicando-se ao diabo, e o mestre, muitas vezes, espanca-os e quebra-lhes os instrumentos nas costas, quando os discípulos não lhe obedecem. Os lobos daquelas terras, que não são verdadeiramente lobos, também são súditos Satanás.  Em Morvan, preserva-se melhor a tradição da licantropia do que em Berry.

Há cinquenta anos, diziam-se bruxos os tocadores de violas e de gaitas de foles no Vale Negro. Conquanto tenham perdido essa má reputação, ainda se conta a história de um mestre gaitista que era dotado de tanto talento, e mantinha um comportamento tão cristão, que o pároco o fazia tocar na missa, durante a elevação da hóstia. O músico tocava árias litúrgicas, condizentes com a educação musical dos menestréis da época, mas cuja execução os párocos raramente permitiam, mercê de suas práticas secretas, que não eram — dizia-se — as mais católicas do mundo.

O grande Julien, de Saint-Août, teve, portanto, este privilégio excepcional, e, como “era uma maravilha aos ouvidos quando tocava na missa”, a paróquia orgulhava-se dele.

Certa noite, quando voltava de uma apresentação de três dias num casamento no campo, ele se deparou com uma gaita de foles a tocar, sozinha, na charneca. Alguns diziam que era o vento quem a tangia.

Espantado ao ver aquela gaita prateada e reluzente, que veio até ele sem que ninguém a conduzisse, o gaitista parou, amedrontado.  A gaita passou ao seu lado e, fazendo pouco caso de sua presença, continuou a tocar de uma forma magnífica. Julien, que nunca tinha ouvido nada tão belo, sentiu-se, de súbito, arrebatado pela inveja.

Então, em vez de prosseguir em seu caminho, como um homem razoável, ele voltou-se e seguiu a gaita de foles, para escutá-la e tentar decorar a melodia que ela produzia, e que ele lamentava não conhecer.

A princípio, ele a seguiu à distância; depois, um pouco mais de perto. Por fim, tomado de coragem, saltou para agarrar a gaita de foles: a contemplação de tão belo instrumento, que tocava sem ajuda humana, era uma tentação para alguém que ganhava a vida como músico.

Mas a gaita de foles se elevou no ar e continuou a tocar, sem que ele pudesse alcançá-la. Assim, Julien voltou para casa com grande preocupação e, até mesmo, com muita tristeza. E quando lhe foi perguntado, nos dias seguintes, por que ele parecia pesaroso e enfermo, respondeu:

— O ar da noite toca melhor do que eu; não valeu a pena aprender a tocar!

Não se sabia o que ele queria dizer com isto, mas ouviram-no a ensaiar uma música nova, que em nada se parecia com qualquer outra, ou com as que ele costumava tocar até então. E, à noite, saía sozinho, internava-se na charneca e voltava de madrugada, muito cansado, mas tocando cada vez melhor uma melodia que parecia muito estranha e que ninguém conseguia entender.

Contaram esses acontecimentos ao pároco, que convocou o músico e lhe disse:

— Julien, eu sei que o diabo, colérico, anda ansioso por perseguir e tentar as pessoas de seu ofício. Disseram-me que você vai sozinho, à noite, a lugares onde não precisa estar e que parece atormentado. Cuide-se, Julien; se você começar mal, acabará mal!

Era um sábado. No dia seguinte, houve uma grande festa e uma grande missa, e Julien prometeu tocar a gaita da maneira habitual.

No entanto, pela manhã, o sacristão contou ao padre que havia visto Julien na charneca, tocando de uma maneira que não era cristã, e levando atrás de si mais de trezentos lobos, que fugiram quando ele se aproximou.

 

 


O padre mandou chamar Julien novamente e o interrogou. Julien encolheu os ombros, dizendo que o sacristão havia bebido.

E como, na verdade, o sacristão era inclinado a uma bebedeira, sua palavra não deu rendeu ensejo a preocupações, e o padre pôs-se a rezar e a recitar a missa.

Chegada a hora de elevar-se a hóstia, Julien começou a executar sua ária litúrgica. Todavia, embora tivesse a boa intenção de tocá-la corretamente, não conseguiu executar o que queria, e o que tocou não foi outra coisa senão a própria música do diabo, que o vento lhe havia ensinado.

A coisa perturbou o padre, que, três vezes, antes de consagrar a hóstia, mexeu-se e bateu o pé para silenciar aquele lamento maligno. Mas, finalmente, julgando que Deus se faria respeitado, levantou a hóstia e pronunciou as palavras de consagração.

Neste instante, a gaita de foles explodiu nas mãos de Julien. Produziu-se um estrondo tal que era como se a alma do diabo tivesse escapado do instrumento; e o músico recebeu uma pancada tão intensa no estômago que caiu, quase desmaiado, sobre o pavimento da igreja.

Levaram-no para casa, onde padeceu de uma doença grave. Mas recuperou-se pela graça de Deus e pela palavra do senhor pároco, que o fez renunciar às suas más práticas e a quem confessou haver tocado para os lobos da charneca. Desde então, ele fez-se cristão, deixando os lobos vagarem sozinhos ou na companhia de outros mestres gaitistas amaldiçoados.



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