A COISA EM NOLAN - Conto Clássico de Terror - Ambrose Bierce
A
COISA EM NOLAN
Ambrose Bierce
(1842 – 1914?)
Tradução de Paulo Soriano
Ao sul de onde a estrada
entre Leesville e Hardy, no estado de Missouri, atravessa o braço leste do
riacho May, há uma casa abandonada. Ninguém vive lá desde o verão de 1879
e ela vai desmoronando rapidamente. Por cerca de três anos antes da data
acima mencionada, a casa foi habitada pela família de Charles May, e a um de
seus antepassados deve-se o nome do riacho que corre nas proximidades.
A família do Sr. May
consistia em uma esposa, um filho adulto e duas garotas. O nome do filho
era John — os nomes das filhas são desconhecidos ao autor destes apontamentos.
John May, dono de um
temperamento taciturno e ranzinza, embora não fosse levado rapidamente a
explosões de ira, tinha uma extraordinária propensão a guardar,
implacavelmente, um rancor taciturno. Seu pai era bem diferente. De
temperamento alegre e jovial, era dado a explosões passageiras, como uma chama
repentina que acende um fiapo de palha, e, num átimo, não existe mais. Ele não
nutria ressentimentos e, passada a raiva, era rápido em estabelecer uma reconciliação. Chales
tinha um irmão que morava nas proximidades e era diferente dele em tudo. Era
corrente na vizinhança o comentário malicioso de que John havia herdado o
temperamento do tio.
Certa feita, houve um
mal-entendido entre pai e filho. Palavras duras se seguiram e o pai socou o
filho no rosto. Silenciosamente, John limpou o sangue que o murro extraíra e,
fixando os olhos no já arrependido agressor, disse friamente:
—Você vai morrer por causa
disto.
Dois irmãos, chamados
Jackson, que se aproximavam dos contendores naquele instante, ouviram estas
palavras. Mas, vendo-os envolvidos em uma briga, se retiraram, aparentemente
sem serem observados. Posteriormente, Charles May relatou o infeliz
acontecimento à esposa e explicou que havia se desculpado com o filho pelo
golpe impensado, mas em vão. O jovem não apenas rejeitou suas ofertas reconciliatórias,
como se recusou a retratar-se de sua terrível ameaça. No entanto, não
houve uma ruptura explícita nas relações entre pai e filho. John continuou
morando com a família e as coisas continuaram quase como antes.
Numa
ensolarada manhã de domingo de junho de 1879, cerca de duas semanas
depois do incidente, o pai de May saiu de casa logo após o desjejum, levando
consigo uma pá. Disse que iria cavar numa certa nascente situada num
bosque, a cerca de um quilômetro de distância, para que o gado pudesse beber
dela. John permaneceu em casa por algumas horas, ocupado em barbear-se,
escrever cartas e ler um jornal. Agia como sempre, embora parecesse um tanto
mais carrancudo e mal-humorado que de costume.
Às duas horas, John saiu de
casa. Às cinco, voltou. Por alguma razão sem qualquer ligação com
interesse em seus movimentos — e da qual não me recordo — a sua mãe e irmãs
perceberam a hora de sua partida e a de seu retorno, e isto ficou consignado na
sessão de seu julgamento por crime de homicídio. Elas observaram que sua
roupa estava molhada em alguns pontos, como se ele — assim, posteriormente, a
acusação sublinhou — tivesse lavado as manchas de sangue. Seus modos eram
estranhos; sua aparência, selvagem. Disse que se sentia adoentado e foi para
o quarto deitar-se.
O pai de May jamais
voltou. Mais tarde, naquela noite, os vizinhos mais próximos foram chamados
e, naquela noite e no dia seguinte, realizaram uma busca no bosque onde ficava
a nascente. Descobriram-se apenas as pegadas de ambos os homens na argila,
ao redor do manancial. Nesse ínterim, John May piorara rapidamente da
enfermidade que o médico local chamava de febre cerebral e, em seu delírio, falava
coisas sobre um assassinato, mas nada disse sobre quem teria sido morto, nem
quem imaginava que seria o autor do crime. Mas os irmãos Jackson relembraram a
ameaça feita e um ajudante do xerife o manteve o suspeito sob custódia, em
prisão domiciliar. A opinião pública virou-se incisivamente contra ele e,
se não fosse por sua doença, provavelmente teria sido enforcado pela turba.
Então, estando assim as coisas, os vizinhos
realizaram, na terça-feira, uma reunião, e um comitê foi nomeado para
acompanhar o caso e tomar, a qualquer momento, as medidas necessárias, conforme
as exigências das circunstâncias.
Na quarta-feira, tudo
mudou. Da cidade de Nolan, a 13 quilômetros de distância, chegou uma notícia
que lançou novas e bem distintas luzes sobre o caso. Nolan consistia em
uma escola, uma oficina de ferreiro, um armazém e meia dúzia de moradias. O
armazém era mantido por um certo Henry Odell, um primo de Charles May. Na tarde
de domingo em que se deu o desaparecimento, o Sr. Odell e quatro de seus
vizinhos, homens de credibilidade, estavam sentados no armazém, fumando e
conversando. Era um dia quente e tanto as portas da frente quanto as do
fundo estavam abertas. Por volta das três horas, Charles May, que era bem
conhecido por três dos confrades, entrou pela porta da frente e saiu pelas dos
fundos. May estava sem chapéu ou casaco. Não olhou para ninguém, nem
retribuiu a saudação, circunstância que não os surpreendeu, pois, evidentemente,
estava gravemente ferido. Acima da sobrancelha esquerda havia um ferimento
— um corte profundo do qual o sangue jorrara, cobrindo todo o lado esquerdo da
face e do pescoço, e empapando a sua camisa cinza-claro. Estranhamente, o
pensamento que predominava na mente de todos era o de que ele estivera brigando,
e seguia direto para o riacho, que ficava nos fundos do armazém, para se lavar.
Talvez houvesse uma certa
susceptibilidade, em honra a um código de conduta rural, que os impedia de
segui-lo para oferecer-lhe ajuda. Os autos do processo judicial, dos
quais, essa narrativa é sobremodo extraída, silenciam sobre quaisquer outras
circunstâncias, restringindo-se aos fatos. Esperaram que ele voltasse, mas
Charles May não retornou.
Nas margens do riacho, por
detrás do armazém, cresce uma floresta, que se estende por seis milhas até as
colinas de Medicine Lodge. A chegada, nas
vizinhanças do desaparecido, da notícia de que ele havia sido visto em Nolan,
alterou profundamente a sensibilidade, os sentimentos e as opiniões dos
moradores. O comitê de vigilância deixou de existir sem que fossem
necessárias formalidades para a sua dissolução. As buscas ao longo das
terras baixas arborizadas do riacho May foram interrompidas e quase toda
população masculina da região se pôs a vasculhar as redondezas de Nolan e das
colinas de Medicine Lodges. Mas do homem desaparecido nenhum vestígio foi
encontrado.
Uma das
circunstâncias mais estranhas deste estranho caso é a acusação formal
e o julgamento de um homem pelo assassinato de alguém cujo corpo nenhum ser
humano garantiu ter visto — alguém que não se sabia se estava mesmo morto. Estamos
todos mais ou menos familiarizados com os caprichos e excentricidades das leis
da fronteira, mas este caso — acredita-se — é único. De toda forma,
registra-se no processo que, ao se recuperar de sua enfermidade, John May foi
indiciado pelo assassinato de seu pai desaparecido. Tudo indica que o Conselho
de Defesa não fez objeções, e o mérito do caso foi julgado. A acusação foi
indolente e superficial. A defesa facilmente estabeleceu, em relação ao
falecido, um álibi. Se, no momento em que John May matou (se é
que matou) Charles May, este estava a
quilômetros de distância de onde John May deveria estar, resulta evidente que o
falecido só pode ter morrido pelas mãos de outra pessoa.
John May foi absolvido,
deixou imediatamente a região, e nunca mais se ouviu falar dele. Pouco
depois, sua mãe e irmãs se mudaram para St. Louis. Como a fazenda passou às mão
de um homem que é proprietário do terreno contíguo, e tem moradia própria, a casa
de May está desocupada desde então, e tem a sombria reputação de ser
mal-assombrada.
Um dia depois da partida da família
May, alguns meninos, brincando na floresta ao longo do riacho May, encontraram
— escondida sob um tufo de folhas mortas, mas parcialmente desenterrada pelos
porcos — uma pá, quase nova e ainda brilhante, salvo por uma mancha em uma
borda, que estava enferrujada e manchada de sangue. A ferramenta exibia as
iniciais CM gravadas no cabo.
Essa descoberta renovou, em
certo grau, a excitação pública de alguns meses atrás. A terra próxima ao
local onde encontraram a pá foi cuidadosamente examinada, e o resultado foi a
descoberta do cadáver de um homem. Ele havia sido enterrado a dois ou três
pés de profundidade, e a cova fora coberta com uma camada de ramos e folhas
mortas. O cadáver não apresentava decomposição avançada, fato atribuído a
alguma propriedade conservatória dos minerais existentes no solo.
Acima da sobrancelha
esquerda havia um ferimento — um corte profundo do qual o sangue jorrara —
cobrindo todo o lado esquerdo do rosto e do pescoço, e empapando a camisa
cinza-claro. O golpe fendera-lhe o crânio. O corpo era de Charles
May.
O que, então, foi aquilo que,
em Nolan, atravessou o armazém do Sr. Odell?
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