OS HORRORES DA GRIPE ESPANHOLA - Narrativa Clássica Verídica de Horror - Arthur Moncovo Filho
OS HORRORES DA
GRIPE ESPANHOLA
Arthur Moncovo Filho
(1871-1944)
Uma
pobre família de Catumbi, que desgraçadamente havia perdido dois entes queridos
há mais de quatro dias, conservava os cadáveres em casa, por já ter esgotado
todos os meios a fim de obter para eles condução. Num duplo desespero pela
impiedade que consistia em manter insepulto aqueles corpos e pelo estado de
alta decomposição em que eles já estavam, empestando de podridão toda a
vizinhança, estudava o chefe daquela família um meio de resolver o caso.
Ficou
então à porta da casa à espera de um dos muitos caminhões que a todo momento
atravessavam a rua conduzindo, amontoados, os cadáveres das vítimas do
“Pandemônio” e, ao passar um deles, fê-lo parar e, de joelhos, impetrou do
condutor do veículo que levasse para o cemitério os cadáveres há tanto tempo
involuntariamente existentes em sua casa.
Depois
da calorosa discussão, o homem do caminhão disse que tinha ordens terminantes
de não receber mais corpo algum e, bem assim, estar completa a lotação do
veículo; insistido, porém, condói-se da situação daquela pobre gente; propôs, e
foi aceito, trocar dois cadáveres frescos por aqueles cuja podridão era
insuportável, dando tempo a que a condução destes fosse possível.
Estes
e outros fatos horripilantes foram contados e comentados pela imprensa, que mal
podia retratar o que se via a toda a hora e por toda a parte. Dizia-se, por
exemplo, que a Santa Casa, não tendo meios para fazer os enterramentos, mandava
para fora da Barra, alta madrugada, saveiros cheios de cadáveres de indigentes
que eram lançados, então, em alto mar.
Afirmava-se
que, na confusão com que centenas de corpos eram levados para os cemitérios,
muitas criaturas ainda vivas eram transportadas e, mais que isso, até
enterradas antes de exalar o último suspiro!
Referiu-se
mesmo o caso de um pobre gripento encontrado vivo ainda dentre os conduzidos e
que, jogado à vala, foi pelo coveiro (que era um facínora sentenciado, seu
desafeto) morto por uma enxadada, para livrar-se ao trabalho de socorrê-lo.
Atos de desumanidade deste quilate foram descritos pelo “Rio-Jornal”, em sua
edição de 10 de novembro de 1918:
“O
morto vivo
COME
ERA E COMO SE DEU A TRISTE OCORRÊNCIA
Dentre
todas as pessoas que, por nós procuradas, indicaram verdadeiramente quem era o
infeliz retirado dentre os cadáveres, só então recuperando a vida, estava o Sr.
Augusto Alves Coitinho, residente à Rua Evaristo da Veiga nº 1.
O
Sr. Alves, que espontaneamente veio à nossa redação, declarou-nos que o fato
entregue à nossa sindicância era dele bastante conhecido, pois tinha relações
com o atual morto-vivo, cujo irmão, também carregador, havia falecido, não
sabendo quando, nem onde. Chama-se Casemiro, disse-nos o Sr. Alves, e poderá
encontrá-lo no Mercado às sete da manhã. Conforme a informação do Sr. Alves lá
fomos àquela hora. Aí, nada menos de dois cavalheiros com o mesmo nome
encontramos. Não era, porém, nenhum deles.
Foi
então quando nos disseram que conheciam um outro, mas este havia falecido na
Santa Cassa. Já estávamos desanimados, quando a nova informação nos deu
coragem.
—E este Casemiro morto, onde morava? —Perguntamos.
—Na rua da Misericórdia, mas o número
ignoramos.
Seguimos
para a rua da Misericórdia e em frente à “Casa da Miséria”, nos dirigimos a um
grupo de carregadores que nos deu informações não só do Casemiro, e onde ele
poderia ser encontrado, como também do próprio caso.
Marcado
para hoje o encontro, às 10 horas da manhã, fomos pontuar, como foi o nosso
informante. No local determinado, encontramos o morto-vivo.
—
Chama-se o Sr.?
—
Casemiro Antonio Soares, para servi-lo.
—É
um felizardo, não? Conseguiu escapar à morte por pouco, não é verdade?
—O
Sr. quer se referir ao caso dá. Santa Casa, não é assim?
—Tal
qual.
Frente
a frente com o morto-vivo
—
Ora, eu lhe conto. Não sou propriamente carregador aqui no mercado, mas do
Lloyd Brasileiro, e fazia ponto na travessa do Comércio. No dia 19 senti-me
mal, e, caído na calçada, fui daí apanhado e levado para a Santa Casa, onde dei
entrada naquele mesmo dia, na 14ª enfermaria, ao que fui informado. No dia
seguinte, lá apareceu para visitar-me o meu irmão Joaquim Soares, empregado num
botequim sito à Estrada Real de Santa Cruz nº 830. Pedi ao irmão que me levasse
para sua casa e, acedendo este, prometeu-me que no dia seguinte me levaria.
No
dia seguinte, como eu me negasse a tomar o caldo e o chá, a fraqueza
produziu-me una vertigem e nessa ocasião, ao que parece, fui levado para o
deposito de cadáveres, isto já no dia 20.
Daí,
só me recordo da hora em que tornei à vida e, abrindo os olhos, dei com meu
irmão ao lado, muito pálido, a olhar-me espantado. Eu estava sobre uma das
frias mesas do necrotério da Santa Casa. Com o auxílio dele, que em altas vozes
dirigia palavrões aos homens da Santa Casa, levantei-me e, levado para um
automóvel, o meu irmão transportou-me para um posto hospitalar, onde me curei.
—
E seu irmão?
—
Morreu. Onde e como não sei. Ele contou-me apenas que, indo à enfermaria
buscar-me, disseram-lhe que eu havia falecido.
Dirigiu-se
ao necrotério, onde me procurou para fazer o enterro. Após certo trabalho para
me descobrir, fui encontrado numa pilha de cadáveres, de onde fui retirado e
posto sobre a mesa. Ali, na ocasião que ele me cruzava os braços, eu acordei.
Eram
10 horas da manhã.
Esta
foi a narrativa que acaba de nos fazer Casemiro Antonio Soares, o morto-vivo.
O assassinato da Chininha no
cemitério do Caju entre morto e vivo
ENCONTROU UM DESAFETO QUE LHE
APRESSOU A MORTE
Um
dos casos mais tétricos ocorridos no Cemitério do Caju durante o enterramento
de cadáveres foi-nos narrado por José de Carvalho Filho, mais conhecido pelo
alcunha de “Juca Pequeno” e morador no Morro do Castelo.
Apanhado
pela polícia, ele foi levado para o cemitério, a fim de enterrar os cadáveres
que lá se achavam insepultos.
“Juca
Pequeno” fez-nos, então, narrativas impressionantes do que lá se passou: coisas
absurdas e inacreditáveis. Dentre essas está o assassinato de “Chininha”
(Francisco Luiz Pereira), carregador bastante conhecido na Praça do Mercado.
Contou-nos
que o corpo desse infeliz chegou ao cemitério no dia 25 e foi nesse mesmo dia
levado à beira da vala comum.
Ao
ser aberto o caixão, o infeliz “Chininha” recuperou-se da vertigem, mas o seu
estado era tão grave que não permitiu usar da voz.
Um
preso que o nosso informante viu, exclamou:
--Ah!
Es tu “Chininha”? Onde está a tua valentia? Agora é comigo.
E,
com a própria enxada, deu urna bordoada na cabeça do infeliz, atirando-o a
valia, onde o desgraçado acabou morrendo de fato.
Procuramos
obter algumas informações sobre este caso e no prédio da Ladeira do Castello nº
13, conseguimos de D. Carolina, dona da casa onde ele residia, algumas
informações que confirmam a trágica narrativa que nos fez Juca Pequeno...”
Entre
os vários outros episódios relatados pelos jornais, um merece explanação e foi
também publicado pelo “Rio-Jornal”.
Guardo
na transcrição a sua cópia fiel:
Como
nos contos de Hoffmann
A
SANTA CASA ENTERRA PESSOAS VIVAS
Laurentina
Cordeiro é uma moça bem tronchuda, de 19 anos de idade, linda e tagarela, razão
por que sempre foi a vaidade de seu noivo. Filha de Cabo Frio, de onde veio há
algum tempo, empregava-se como cozinheira e arrumadeira na casa do Sr.
Francisco Fonseca, à rua do Catete nº 246. À noite, mal cessados seus afazeres,
deixava a casa do patrão e demandava à casa da rua Pedro Américo nº 235, de
propriedade de dona Conceição, mas onde Laurentina ocupava, por aluguel, um
quarto para dormir.
Na manhã
de 23 de outubro último, já era alto o Sol e o Sr. Francisco Fonseca impacientava-se
já, porque a cozinheira não chegava para adubar o caldo aos doentes da casa,
pois a epidemia, naquela ocasião, estava em apogeu e muitos eram os gripados na
casa onde servia a moça.
Na rua
Pedro Américo, a impaciência de dona Conceição, a senhoria, também não foi
menor e, sem justa causa, vendo que Laurentina, tão useira no hábito de
madrugar, ainda estava no quarto, de portas trancadas, na hora em que só os
ricos têm o direito de gozar a regalia dos lençóis.
Lá, uma
certa hora, mordida de um mau pressentimento, resolveu bater à porta e, em
seguida, entrar, depois de abri-la com algum esforço, visto que ela estava
tramelada por dentro e a moça não respondia aos chamados. No quarto, pôde ver a
razão de tudo. Laurentina estava espanholada e ardia em febre. O pior
era que dona Conceição também estava enferma e não tinha pessoa alguma que se
pudesse encarregar de buscar medicamentos para a inquilina.
Mas,
como o mal lhe crescia, a própria Laurentina resolveu deixar o leito e ir à
farmácia mais próxima medicar-se. No entanto, tal era sua fraqueza que foi
tomada de um delíquio, caindo na rua. Quando recobrou ânimo, teve a impressão
de que havia sido transportada para o hospital Deodoro. Mas enganara-se. Estava
apenas na Assistência e daí a segundos seguia o rumo da Santa Casa, o nefasto
matadouro de Santa Luzia.
Na Santa
Casa
Lá, ao
entrar, sentiu o chocalho dos nervos vibrar forte. Navalhadas de gelo
lanharam-lhe a espinha dorsal, e os cabelos, de arrepiados, tomaram a aspereza
do arame.
Era o
terror que devia experimentar quem tivesse um dia de penetrar os reinos de
Averno[1].
Cadáveres
aos montões em todos os cantos, doentes morrendo de inanição em todos os
catres, infelizes em febre alta, sem a assistência médica para o abrandar de
seus males e percorrendo, impassíveis, as entrelinhas das tarimbas e dos
colchões, os êmulos do Sr. Miguel de Carvalho[2]
— o Satanás mestre daquele inferno vivo — a proporcionar aos mais recalcitrantes
o lenitivo chá da meia-noite ou do caldo sujo, espécie de elixir de vida breve.
Mal chegou, Laurentina teve de provar do caldo. Provou-o e desfaleceu.
Desfalecida, envolveram-na num lençol, e atiraram-na num caixão comum. Estava
morta e ia ser enterrada. No cemitério do Caju, naquela barafunda de cadáveres,
entrou na noite do dia 24, e lá permaneceu insepulta até o dia 25.
No Caju
Por uma
réstea do caixão, a pobre morta começou a sonhar. Sonhos trágicos de morta!
Sonhava, por exemplo, que estava vendo, num cemitério, o enterramento coletivo
de milhares de cadáveres putrefatos. Luzernas fantásticas e tétricas
tremeluziam na noite chuvosa e dantesca. Gente de caras diversas abria cova
onde eram despejados aos montes todos os defuntos. De vez em vez passavam
policiais inspecionando os serviços. Lá, num dado momento, o caixão da moça foi
tomado por um pulso hercúleo. Chegara também a sua vez. Um frio siberiano
gelou-lhe o corpo, a que o frio da morte já tornara álgido. Era o epílogo
patético do sopro da morte! Abriram o caixão. Laurentina ia ser despejada na
cova, pois mister se fazia levar o caixão para outro defunto! Mas, aberto o
caixão, o coveiro estacou espantado:
— Mas
esta mulher está viva! —exclamou para os outros.
Viva!
— É
deixá-la para um canto, até que morra — propôs um detento dos que serviam de
coveiros.
E lá foi
ela para um canto, entre caixões vazios, sob a chuva impiedosa à espera da
morte. Mas a morte não vinha, e um coveiro da Prefeitura condoeu-se dela e
propôs ao administrador:
— Esta
mulher ainda vive! Seria humano que fosse transferida para um hospital. Talvez
possa salvar-se.
Ressuscitada!
No
hospital Deodoro, Laurentina Cordeiro pôde entrar, no dia 25 de outubro. Lá,
sob os carinhos dos médicos, foi revivendo e sarou. Teve alta e seguiu para a
casa de dona Conceição, à rua Pedro Américo.
Assombração
Lá já
não contavam mais com ela. Supunham-na morta, pelas informações da Santa Casa.
D.
Conceição, entretanto, apalpou-lhe as carnes, fê-la falar e se convenceu logo
de que estava em frente da sua autêntica inquilina. Todavia, o mesmo não
sucedeu em casa de seu patrão, onde também já era considerada defunta a antiga
cozinheira e onde há crianças. Até hoje acreditam que Laurentina morreu e
voltou apenas para assombrar a casa.
As
consequências
De sua
hospedagem lúgubre na Santa Casa e de sua temporada funesta no cemitério do
Caju, Laurentina guarda dolorosas consequências. Está apatetada, olhos vagos,
onde transluz enfermiça a beleza de outrora e já não reconhece nem o próprio
noivo.
Tudo
isso foi o que ela mesmo contou à sua velha senhoria, no dia em que chegou do
hospital Deodoro, onde desfrutava um estado mental recomendável.
Foi
também quanto nos informou dona Conceição, consternadíssima pela sorte de
Laurentina, que muito estima.”
Indescritíveis
eram as cenas que se passavam.
Entre
os horríveis transes que transcorremos, eu e os meus abnegados companheiros do “Posto
de Socorros” da Assistência à Infância, pudermos registar casos verdadeiramente
apavorantes.
Em
uma das caravanas de caridade que fora ao Morro da Cruz, dentre as mais
desoladoras e angustiosas cenas, assistiu-se ao macabro espetáculo de
encontrar-se, em uma casa de pouco de dois metros quadrados, feita de tábuas de
caixotes velhos e latas de gasolina, nove homens negros mortos, seus únicos habitantes: haviam sucumbido
à fome e à gripe e ficaram nas posições
em quais morte os surpreendera: uns esticados ao solo, outros sentados em
caixotes e ainda outros caídos sobre os cantos angulosos dos cacaréus que, em
desordem, se espalhavam naquele lúgubre ambiente.
Cada
caso mais desolador se revelava e, nesse caudal impetuoso a que o “Pandemônio”
arrastava, também fui eu uma vítima, não porque fosse acometido do mal
reinante, que felizmente me poupou, mas porque, ao lado das grandes canseiras a
que não podia fugir, dos pungentes momentos por que passava, tive a ferir-me
também o coração um rude golpe que até hoje sangra.
Fonte: Arthur Moncovo
Filho: Teses e Artigos (RJ).
Fizeram-se breves
adaptações textuais.
[1] Ou seja, o
inferno.
[2] Miguel de
Carvalho (1849 – 1944), político fluminense, era, então, o diretor da Santa
Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro.
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