VASILISA, A BELA - Conto Clássico de Terror - Aleksandr Afanasiev
VASILISA, A BELA
Alexander
Nikolayevich Afanasyev
(1826 – 1871)
Em um certo reino vivia um mercador que tinha uma
única filha, Vasilisa, a Bela. A mãe morreu quando a menina tinha oito anos.
Sentindo que o seu fim se aproximava, a mãe chamou a menina, pegou uma boneca
entre os lençóis e entregou à filha, dizendo-lhe:
— Ouça minhas últimas palavras, Vasilisa e obedeça à
minha última vontade. Eu te deixo esta boneca. Mantenha-a sempre consigo e não
a mostre a ninguém. Se algo mau acontecer com você, alimente-a e peça-lhe
conselhos. A boneca vai comer o que você lhe der e vai ajudá-la em seus
momentos difíceis.
A mulher do mercador beijou a filha e, alguns
instantes depois, morreu. O viúvo sentiu muito a morte de sua esposa, mas,
depois de algum tempo, resolveu casar-se novamente. Escolheu por esposa uma
mulher que tinha duas filhas da mesma idade que Vasilisa. Isso significava que
a pretendente tinha experiência como dona de casa e como mãe. Então, o
comerciante casou-se com ela. Mas a mulher e suas duas filhas tinham ciúmes de
Vasilisa. Elas invejavam sua beleza e a enchiam de tarefas para que emagrecesse
de fadiga e para que o vento e o Sol maculassem a sua pele alva. Durante todo o dia, ouviam-se apenas os gritos
na casa:
— Vasilisa,
Vasilisa, faça a comida! Varra a casa e traga a lenha! Ordenhe as vacas!
Depressa! Não ponha essa cara feia! Parece mais que está voltando de um
enterro!
Vasilisa fazia tudo o que lhe mandavam fazer. Tentava
agradar a todos e ficava cada dia mais bela e fresca, enquanto a madrasta e
suas filhas, que não se moviam para nada, emagreciam de raiva e amarelavam de
inveja.
Isso acontecia porque a boneca a ajudava em tudo. À
noite, quando todos dormiam, a garota se trancava na mansarda, alimentava a
boneca e contava-lhe as suas mágoas.
A bonequinha comia e depois consolava Vasilisa. Dava-lhe
conselhos e, pela manhã, fazia todo o trabalho por ela. A menina descansava à
sombra e colhia flores, enquanto a boneca roçava o pomar, carregava a água,
acendia o fogão e regava os repolhos. Além disso, ela indicou quais as ervas
deveriam ser aplicadas para que Sol não lhe queimasse a pele. Em resumo,
Vasilisa ficava mais bonita a cada dia.
Numa
certa ocasião, o mercador teve
que empreender uma longa viagem. A madrasta se mudou com as garotas para uma
casa à beira da floresta. Numa clareira daquela floresta havia uma casa, e
naquela casa vivia Baba Yaga, a velha feiticeira. Baba Yaga não deixava ninguém
se aproximar de seus domínios e se alimentava de seres humanos como se fossem
galinhas.
Para se livrar de Vasilisa, a madrasta sempre a
mandava para a floresta para procurar isso ou pegar aquilo. Mas ela sempre
voltava sã e salva, porque a boneca assinalava-lhe caminho e a mantinha longe
do refúgio de Baba Yaga.
O outono chegou. Uma tarde, a madrasta distribuiu
entre as três meninas as tarefas da noite: uma tinha que fazer renda; a outra, tricotar
meias; Vasilisa teria que fiar. Então apagou todas as luzes da casa, deixou
apenas uma vela acesa onde as três jovens trabalhavam e foi se deitar. Uma das
filhas da madrasta apagou a vela, como ordenado por sua mãe, e, fingindo tê-lo
feito inadvertidamente, exclamou:
— O que vamos fazer? Que desgraça! O trabalho não está
terminado e não há um único tição em casa. Alguém terá de ir à casa de Baba
Yaga buscar fogo!
— Eu não vou, disse a meia-irmã mais velha. Eu faço
rendas e os bilros me dão muita luz.
— Eu também não vou — disse a outra, apressadamente. — Eu tricoto meias e as agulhas me proporcionam luz o suficiente.
— Você vai ter que ir! — ambas gritaram ao mesmo
tempo. — Vasilisa, Vasilisa, vá à casa de Baba Yaga e lhe peça fogo!
E elas brutalmente a expulsaram da sala. Vasilisa
correu para a mansarda, alimentou a boneca e disse-lhe, chorando:
— Coma, bonequinha, coma o quanto quiser, e depois
ouça as minhas mágoas! Elas me disseram para buscar fogo na casa de Baba Yaga.
E a bruxa vai me devorar!
— Não tenha medo — respondeu a boneca. — Coloque-me no
bolso e vá tranquilamente para onde a mandaram. Enquanto eu estiver com você,
nada de mau poderá acontecer-lhe.
Vasilisa colocou sua boneca no bolso e foi para a
floresta sombria, percorrendo caminhos ignorados.
E seguia andando, toda trêmula, quando passou a
galope, junto a ela, um cavaleiro branco, vestido de branco, montado num cavalo
branco, que também tinha brancos arreios. Então, o dia começou a despontar.
Vasilisa seguiu em frente, tropeçando nos tocos. O rocio
umedecia sua trança e esfriava as suas mãos.
De repente, passou a galope outro cavaleiro, vermelho,
montado em um corcel também vermelho e com os arreios da mesma cor. O Sol
nasceu, acariciou Vasilisa, aqueceu-a e secou a sua trança.
Vasilisa caminhou o dia todo e só ao anoitecer chegou à
clareira onde ficava a casa de Baba Yaga. A cerca que a rodeava era feita de ossos
humanos, coroados por caveiras igualmente humanas. A passagem sob o portão era
coberta de pés humanos, os ferrolhos eram mãos e o cadeado era uma boca de
dentes afiados. Vasilisa ficou petrificada de pavor. Surgiu um cavaleiro negro,
montando em um cavalo preto e com os arreios da mesma cor. O cavaleiro chegou
ao portão e desapareceu, como se tivesse sido tragado pela terra.
Anoiteceu. No entanto, a escuridão durou pouco. Todos
os crânios na cerca acenderam os seus olhos, e na clareira havia tanta luz
quanto em pleno dia. Vasilisa tremia de medo. Suas pernas não obedeciam aos
seus comandos e ela não conseguia fugir daquele lugar tenebroso.
Vasilisa percebeu que a terra tremia. Ouviu-se um barulho
terrível na floresta. As árvores entrechocavam-se, as folhas secas farfalhavam,
e Baba Yaga, a velha feiticeira, apareceu, montada em um pilão, cujos pés
serviam de leme, trazendo consigo uma vassoura, com a qual varria os próprios
rastros. Antes de transpor o portão, ela parou e, farejando ao seu redor,
exclamou:
— Sinto cheiro
de carne russa! Quem está aqui?
Vasilisa se aproximou da bruxa, fez-lhe uma profunda
reverência, e, humildemente, respondeu:
—Sou eu, vovó. Minhas meias-irmãs enviaram-me para
pedir-lhe fogo.
— Está bem — disse Baba Yaga. — Eu já sei quem são
suas meias-irmãs. Mas, se quer fogo, terá que ficar e trabalhar para mim. Se o
trabalho for benfeito, terá o seu fogo; se não for, eu a devoro!
Então Baba Yaga virou-se para o portão e gritou:
— Que as sólidas trancas deslizem e o grande portão se
abra!
O portão se abriu e a bruxa entrou, montada em seu
pilão, dando silvos. Vasilisa a seguiu.
Tudo se fechou de novo à sua passagem.
Uma vez em casa, Baba Yaga se acomodou
convenientemente e ordenou a Vasilisa:
— Traga-me tudo que estiver no fogão e na despensa. Apresse-se,
estou faminta!
Vasilisa tratou de pegar comida do fogão e a servi-la
a Baba Yaga. Havia comida para pelo menos dez pessoas: assados e ensopados,
queijos e paios, bolos e pasteis, sopas e salsichas. Em seguida, Vasilisa
desceu para a à cave e trouxe bebida fermentada de pão, hidromel, cerveja e
vinho. A velha comeu e bebeu tudo, deixando para Vasilisa somente um pouquinho de
sopa, uma côdea de pão e um pedacinho de leitão. Antes de ir para a cama, a
bruxa disse à menina:
—Amanhã, quando eu sair, você vai limpar o curral,
varrer a casa, preparar a comida, lavar as roupas, trazer do celeiro quinze
quilos de trigo e limpá-lo muito bem. E certifique-se de que tudo esteja bem
feito, senão eu irei devorá-la!
Depois de dar essas ordens, Baba Yaga começou a roncar.
Vasilisa serviu à boneca os restos de comida e disse-lhe, chorando:
— Coma, bonequinha querida, o que eu lhe trouxe, e escute
as minhas mágoas. A bruxa me encomendou tarefas em excesso. Se não as faço, disse-me que irá me devorar.
Ajude-me!
A boneca respondeu:
— Não chore e não se atormente. Vá deitar-se, Vasilisa,
que amanhã será outro dia.
Vasilisa levantou-se muito cedo, mas Baba Yaga já
estava de pé. Os olhos das caveiras se apagaram, o cavaleiro branco passou, e fez-se
dia. Baba Yaga saiu para o pátio, assobiou e o pilão se apresentou a ela imediatamente.
O cavaleiro vermelho passou e o Sol saiu.
Baba Yaga montou em seu pilão e partiu a toda pressa. Os pés do pilão serviam
de leme e, com a vassoura, a bruxa varria os seus rastros.
Ficando só, Vasilisa deu a volta na casa, e já se
perguntava por onde ia começar o seu trabalho, quando viu que tudo já estava
feito e que a boneca catava os últimos grãos indesejáveis de trigo.
— Como agradecer-lhe, querida bonequinha? Você me
salvou de um grande perigo.
— Só lhe resta preparar o almoço — respondeu a boneca,
colocando-se no bolso de Vasilisa. — Depois, descanse.
Ao cair da tarde, Vasilisa pôs a mesa e ficou
esperando por Baba Yaga. O cavaleiro negro foi visto passando pelo portão e fez-se
noite. Os olhos dos crânios começaram a refulgir. Ouviu-se o entrechocar das
árvores e o farfalhar das folhas. Era Baba Yaga que chegava.
— O trabalho está feito? Realizou todas as tarefas? —
perguntou a bruxa a Vasilisa, que viera ao seu encontro.
— Veja por si mesma, vovó — respondeu a garota.
Baba Yaga inspecionou tudo e, não encontrando de que
reclamar, rosnou:
—
Está bem.
Então gritou:
—Vamos, meus servos fiéis, meus amigos da alma!
Triturem esse trigo!
Instantaneamente, três pares de mãos apareceram, pegaram
o trigo e levaram-no embora.
Baba Yaga jantou e, quando ia deitar-se, ordenou a Vasilisa
novamente:
— Amanhã você vai fazer o mesmo que hoje. Mas, também,
traga as sementes de papoula no celeiro e limpe-as do chão uma a uma.
Então, virou-se para a parede e começou a roncar.
Vasilisa alimentou a boneca, que lhe disse, como no
dia anterior:
— Vá dormir em paz, que o travesseiro é um bom
conselheiro. Tudo será feito, Vasilisa.
Na manhã seguinte, Baba Yaga saiu novamente, montada no
pilão. A boneca fez todo o trabalho em um instante. A bruxa voltou, examinou
tudo e gritou:
— Servos fiéis, meus amigos da alma! Venham e prensem
o óleo dos grãos de papoula!
Instantaneamente, três pares de mãos apareceram e
levaram todos os grãos. Baba Yaga sentou-se à mesa para jantar. Enquanto comia,
Vasilisa permanecia calada ao seu lado.
— Por que não fala comigo? — Baba Yaga perguntou. — Qualquer
um diria que você é muda.
— É timidez — respondeu Vasilisa. — Mas, se me
permite, gostaria de lhe perguntar algumas coisas.
— Pergunte! Mas tenha em mente que algumas questões não
devem ser levantadas. Sabedoria demais faz envelhecer antes da hora.
— Eu só quero perguntar-lhe sobre as coisas que vi,
vovó. Vindo aqui, encontrei um cavaleiro branco. Quem era ele?
— Meu fiel servo dia claro — respondeu Baba Yaga.
— Depois surgiu um cavaleiro vermelho. Quem era ele?
— Meu fiel servo Sol brilhante — respondeu Baba Yaga.
— E quem era o cavaleiro negro, que me alcançou ao
lado do portão, vovó?
—Meu fiel servo noite escura. Quer saber de mais
alguma coisa? — perguntou a bruxa.
Vasilisa lembrou-se dos três pares de mãos que ela
tinha visto aparecer, mas não disse nada.
— Para mim, é o que basta saber. A senhora me disse: saber
demais faz-nos envelhecer antes da hora.
— Faz bem você em perguntar-me apenas sobre as coisas
que viu fora de casa e não dentro dela. Não gosto de tirar trapos sujos daqui.
E costumo devorar os muito curiosos. Mas, agora, sou eu quem lhe quer fazer uma
pergunta: como você consegue fazer todas as tarefas que lhe confio?
— A bênção de minha mãe me ajuda, vovó — respondeu
Vasilisa.
— Mas o que temos aqui? Ponha-se bem longe daqui, filha
abençoada! Saia imediatamente. Não quero pessoas abençoadas na minha casa!
Baba Yaga empurrou a jovem para fora da casa, mas,
antes de fechar o portão, a feiticeira tomou da cerca um dos crânios de olhos
reluzentes, enfiou-o na ponta de uma vara e deu-o a Vasilisa, dizendo:
— Eis aqui o fogo para suas meias-irmãs. Leve-o
consigo. Elas não a enviaram a mim para consegui-lo?
Vasilisa tomou o caminho de casa, guiada pela luz da
caveira, que não se apagou até o amanhecer.
Finalmente, chegou em casa ao pôr do Sol do dia
seguinte. Junto ao portão, teve a ideia de jogar fora a caveira, acreditando
que, certamente, elas não precisariam mais de lume em casa. Mas uma voz furiosa,
vinha do crânio, ordenou-lhe:
— Não me jogue fora. Leve-me aonde está a sua madrasta.
Ao chegar à porta, Vasilisa ficou surpresa ao não ver
luz alguma na casa. E ainda mais surpresa ficou ao ver que a madrasta e suas
filhas a receberam com alegria. Desde a sua partida — explicaram — não havia
como conseguir fogo para a casa. Elas não conseguiam acendê-lo e o que
trouxeram dos vizinhos apagavam assim que entravam na sala.
— Pode ser que o seu arda — disse a madrasta.
Vasilisa trouxe o crânio para a sala, e seus olhos
ardentes caíram sobre a madrasta e suas filhas, abrasando-as. Elas tentaram se
esconder, mas os olhos as seguiram aonde quer que fossem e, pela manhã, as
mulheres eram apenas um punhado de cinzas. Somente Vasilisa não sofreu o mínimo
dano.
Versão em português de
Paulo Soriano.
Ilustração de Iván
Bilibin (1876-1942).
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