AS RATAZANAS - Conto de Ficção Cinetífica e Horror - Ângelo Brea



AS RATAZANAS

Ângelo Brea

 

O som do alarme fez-me acordar, como todos os dias, duas horas  antes de que o Sol começasse a ocultar-se por detrás do horizonte. É  assim porque eu durmo de dia, nas horas nas quais o Sol abrasa toda  a superfície terrestre, e me mantenho acordado apenas durante as últimas horas da tarde, durante toda a noite e as primeiras horas da manhã, quando ainda o nível de radiação solar é relativamente suportável  para os humanos.

Entre as frestas da persiana baixada, filtrava-se ainda suficiente claridade como para iluminar perfeitamente o meu quarto.  

O primeiro que fiz, como todos os dias, foi ir à casa de banho. O  espelho, quase tão velho como eu próprio, devolveu-me a imagem de  um homem de sessenta e quatro anos, com profundas enrugas no rosto, olhos castanhos, celhas espessas e cabelo quase completamente  branco. Estava cansado de ver-me a mim próprio, dia após dia, e de  comprovar como a minha imagem definhava a olhos vista… O último  ano tinha envelhecido como se tivesse vivido um lustro. E supus que,  se a minha vida continuasse na mesma, iria a pior.

Ergui-me e fui rever os níveis de humidade das minhas quatro estufas envidraçadas, onde cultivava a maior parte da comida que consumia. Verifiquei que o nível era o correto e que tudo estava em ordem.

A minha primeira comida do dia, o que seria o “pequeno-almoço”, tomei-o quando o dia começava a dirigir-se para um caloroso entardecer. Após o merecido descanso, podia sair ao exterior, mercê à descida dos níveis de radiação solar. Já não o fazia para procurar comida, mas para achar algum objeto da velha civilização que existira havia décadas.

Sabia que não ia encontrar nenhuma pessoa viva por nenhures. Quase todos tinham morrido ou tinham fugido daqui, a procurarem outro lugar onde assentar-se e onde fosse mais fácil viver. Apenas eu ficara atrás. E agora já não podia deixar este lugar. O meu refúgio não era assim tão mau. Tinha bastantes recursos e as estufas forneciam-me a suficiente comida para alimentar-me. Mesmo poderia haver suficiente comida para uma ou, talvez, para duas pessoas mais. No entanto, havia já anos que vivia aqui sozinho e a desesperação, a ausência de contacto humano e as condições em que vivia faziam-me muitas vezes pensar em que seria melhor ter morrido do que viver assim.

Ergui a persiana. Pude observar os campos ermos, sem vida, que se estendiam até onde a vista alcançava. Ali tinha havido, em tempos, imensos campos de trigo ou soja, que podiam abastecer o mercado internacional e, nesses mesmos campos, inúmeras cabeças de gado que podiam fornecer carne a milhões de pessoas. Agora era uma extensão erma e sem vida, abrasada por um Sol de justiça e sem uma gota de água. Observei com atenção. O Sol roçava o horizonte. Em poucos minutos se ocultaria detrás das colinas. Então as vi. Eram duas. Três. Não, quatro. Quatro enormes ratazanas de cor cinzenta, que se aventuraram nos campos ermos a procurarem comida. No nosso mundo agonizante, aqueles animais eram o único que se adaptara bem, até magnificamente, diria eu. Quase se podia afirmar que o mundo, o nosso velho mundo, fora já conquistado por aquela espécie… Onde quer que houver um rasto de vida, ali estavam elas, para crescer e multiplicarem-se, por milhões, herdando o planeta decadente que os humanos tínhamos arruinado.

A mim davam-me nojo, como a muita gente. Vi como se dirigiam à parede de vidro do meu refúgio e olhavam para o interior, avidamente. Era óbvio que cheiravam a comida armazenada, a água com a que regava, a terra das estufas e as sementes a germinar.

Se as ratazanas conseguissem encontrar um oco na estrutura, seria a minha ruína. Entrariam a milhares e, em horas, acabariam com tudo.

O bom era que o meu refúgio era um autêntico fortim e nenhuma ratazana poderia entrar nele. Ao menos, enquanto não soubessem disparar uma espingarda ou atravessar uma parede de vidro de alta resistência. Para mim, os homens armados eram muito mais perigosos do que qualquer ratazana... Embora tivesse muito mais nojo a elas…

Comecei a vestir-me para sair à rua. Devia proteger-me todo o corpo com umas vestes que me isolassem do exterior, sem deixar nenhum orifício, por pequeno que fosse, por onde aqueles malditos bichos pudessem aceder à minha pele. Coloquei um capacete de mota e um fato de motociclista, jaqueta e calças de couro, a condizer com ele, assim como botas altas e luvas. Utilizei fita adesiva preta para unir as luvas às mangas da jaqueta e fiz o mesmo com as botas. Subi o fecho ecler até acima e, quando rematei, subi ao andar superior pela escada que havia na sala principal.

 Até ali não podiam chegar as ratazanas. Até que não desenvolves sem asas para voar ou conseguissem escalar por uma parede vertical de vidro, eu estaria em segurança.

Assomei-me à janela. O Sol já mergulhava no horizonte. Desde agora, ainda restava ao menos uma hora de luz por diante, até que caísse a noite. Nesse intervalo de tempo podia ir até à vila deserta para procurar algum objeto e regressar com ele ao meu lar.

Armei-me com um maço de ferro e com um facão para cortar canas, que guardei na sua própria bainha e pus ao cinto. Desci pela escada de mão até ao solo. Aquele era o ponto fraco do meu plano, porque não podia recolher a escada. Dessa maneira, se uma pessoa qualquer chegasse até ali, poderia subir por ela e apropriar-se do meu refúgio. Era algo que podia passar, embora não visse ninguém há anos.

As enormes ratazanas não me tinham medo nenhum. Uma delas começou a morder-me as botas, até que lhe esmaguei a cabeça com a sola metálica. O resto das ratazanas aproveitaram a ocasião para saciarem a fome com os seus restos.

O meu refúgio encontra-se em uma colina, defendida por uma muralha de pedra de dois metros de altura, que apresentava um bom estado geral, apesar de levar décadas sem ser arranjada. O portão de entrada abria-se de maneira manual. Ali havia mais ratazanas. Quando cheguei olharam para mim com atenção. Duas delas correram para mim e atacaram o couro das minhas botas, mas sem nenhum êxito. Dei um pontapé numa, estampando-a contra a parede. A outra fugiu.

Fechei a porta ao sair. A estrada que conduz à vila apresentava um estado lamentável, cheia de buracos e de fissuras por todo o asfalto. Tinha sido invadida por umas ervas esquálidas, requeimadas pelo Sol, que mal viviam nos acostamentos da estrada. Não havia árvore nenhuma. Tinham sido consumidas havia anos pelos contínuos incêndios, pela radiação e pelo calor. Não se via árvore nenhuma ou arbusto até aonde a vista alcançava…

 A vila chamava-se Flores. Um nome formoso para evocar um passado que já não existia. O curso do rio, completamente seco, dirigia-se a nenhures, entre montanhas de detritos e de lixo.

Ao chegar às primeiras casas, passei de longo. Ali já não havia nada que aproveitar. Sabia-o bem. Passei pelo posto de abastecimento, cujas velhas bombas de gasolina estavam agora cobertas de ferrugem, sem rasto da pintura que as cobrira.

 Na avenida principal houvera, em tempos, inúmeras lojas. Mas tinham sido saqueadas há décadas e não ficava nada de valor. O único lugar onde ainda poderia encontrar algo aproveitável era nos prédios vazios.

Encaminhei-me, precisamente, a um prédio de cinco alturas, que estava revisando durante os últimos dias. A porta da rua já não existia.

Nem rasto dela. O interior, cheio de sombra e de entulhos, não convidava precisamente a entrar, mas eu passei sem medo, apesar das malditas ratazanas. Haveria umas duas ou três dúzias, ao fundo, a formar uma massa que se movimentava e palpitava de forma sinistra. Algumas quiseram morder-me e quatro ou cinco treparam por mim, até aos ombros. Consegui desfazer-me delas, com movimentos espasmódicos.

Subi ao primeiro andar, lugar onde já tinha estado e que tinha revisado totalmente. Por isso, prossegui até ao segundo andar. Já tinha entrado em três dos quatro apartamentos. Ficava-me apenas um. Com o maço, bati forte na porta. O ruído que provocou foi estrondoso, ainda mais  naquele silêncio assustador que pairava sobre a cidade. Ao quarto gol[1]e, as dobradiças cederam.

Entrei com cautela no interior. Sempre que entro num andar qualquer, sinto-me indeciso. Às vezes, há fotos penduradas das paredes, das pessoas que habitaram o local. Os seus rostos observam-me com incredulidade, como se me censurassem por encontrar-me ali…

 As coisas de caráter pessoal são as que mais me comovem. Objetos que foram importantes para pessoas que, provavelmente, já estavam mortas.

 Aquele andar não tinha sido saqueado, embora visse com claridade  que os antigos moradores partiram dele com pressa. Havia gavetas entreabertas e uns talheres e pratos, com restos de comida podre, ainda sobre a mesa do salão.

 O curioso foi que me encontrei ali o esqueleto de um cão grande, talvez um pastor alemão, no meio do quarto. Os ossos estavam limpos, sem  restos de carne. Seguramente o cão tinha sido deixado para trás quando os donos decidiram desfazerem-se dele, deixando-o ali, para morrer à fome. Talvez o tivessem envenenado antes, para não o fazer sofrer.

Possivelmente as ratazanas tinham encontrado algum oco pelo que entrar no andar e devoraram os restos, deixando apenas os ossos limpos.

Abri todas as gavetas e os armários. Num dos armários da despensa encontrei um pequeno tesouro. Os donos do andar tinham armazenado materiais, que não levaram com eles. Havia um machado pequeno, uma grande provisão de pilhas, de todos os tamanhos e formas, e uma lanterna sem usar.

Que bom! Era das que usava umas pilhas grandes, dessas retangulares, de 4.5 volts. Quando era criança, tinha uma daquelas, assim, não tive problemas para colocar a pilha no interior. Ao premer o botão, um raio de luz branca iluminou a estância em penumbra.

Havia anos que não tinha pilhas para uma lanterna. Recolhi todas as que encontrei por ali, assim como o machado, uma caixa com pregos de diferentes formas e tamanhos, um botequim cheio, que parecia que não tinha sido usado nunca e uma caixa de chaves de parafusos de fenda. Era um tesouro para mim, mais valioso do que o ouro ou a prata.

Ao abrir outra porta, topei-me com outra surpresa. Havia numerosas latas de conserva, embora todas estivessem caducadas havia vários anos.

A pessoa que vivera ali tinha uma estupenda biblioteca, de milhares de volumes. Estavam cobertos de pó, mas ainda podia pegar neles sem se desfazerem. Quando tiver tempo, farei uma boa escolha para levá-los ao meu refúgio. O único livro em que peguei foram as Obras Completas de H. G. Wells. Que bom ter encontrado aquele volume ali!

Assomei-me à janela. As sombras da noite começavam a cair sobre as ruas da vila deserta, mas havia algo que parecia movimentar-se entre o asfalto estragado. Premi o botão da lanterna e apontei para o solo. Centos de ratos, grandes como punhos, ocuparam a rua. Davam medo. No meu cérebro soou um tom de alarme: era hora de regressar.

Ao lado da cozinha havia uma porta que passara por alto. Era uma espécie de despensa. Ali foram armazenadas mais latas de conserva e uma bicicleta de montanha, cheia de pó, que dava a impressão de não ter sido nunca utilizada. Os pneus estavam desinchados, como era de esperar. Com a bomba de ar da própria bicicleta aproveitei para encher os pneus, até que estiveram preparados para aguentar o meu peso.

Limpei o pó e a sujidade da melhor maneira e desci à rua com todos os objetos que conseguira, com os que enchi a minha mochila. O único problema era poder levar o maço. Era demasiado pesado, então decidi atá-lo com uma corda ao porta-bagagens.

Regressei ao meu lar, dando pedaladas. A própria bicicleta gerava luz com um farolim ainda em uso, com a simples movimentação dos pneus, assim o caminho de regresso foi agradável, a sortear os buracos. Os olhos vermelhos das ratazanas observavam-me de ambos os lados da estrada, surpreendidas de ver uma luz no meio do caminho e da passagem da bicicleta.

Enquanto pedalava com força, não podia deixar de pensar no velho mundo que tínhamos perdido. Aquele era um paraíso que não podíamos recuperar. De quem tinha sido a culpa? Bah! Dava-me igual. A única coisa que posso fazer é tentar sobreviver um dia mais. Se ao menos tivesse comigo a minha mulher, os meus filhos, ou os meus pais, a vida não seria tão triste e vazia. Quase davam ganas de deixar de lutar.

 Ao dia seguinte, por alguma razão desconhecida, acordei com dor de cabeça, febre e mal-estar geral em todo o corpo. A noite fora pesa[1]da. Acordara várias vezes, a tossir, e cada vez de maneira mais desagradável. Não era a primeira vez que me passava. Podia dizer-se que cada vez me acontecia com maior frequência e com maior duração.

Não tinha medicamentos para curar-me. Os poucos que tinha já os uti[1]lizara havia anos e o resto, os que encontrava nas minhas excursões à cidade, estavam totalmente caducados.

O que fazia quando me encontrava assim era guardar repouso estrito. Não podia fazer outra coisa.

Esta vez, no entanto, havia um sintoma novo. Cada vez que tossia, sentia uma dor lancinante em ambos os lados do peito, sobre a última costela.

Apesar da dor de cabeça e do mal-estar, revisei as estufas dos alimentos, os níveis de humidade e as reservas de água potável antes de deitar-me outra vez.

Deixara levantada a persiana. O Sol estava pondo-se com rapidez por detrás das colinas. Então as vi. Dúzias de ratazanas começaram a agrupar-se ao pé da janela, pelo lado de fora. Queriam escalar pela parede envidraçada, mas uma e outra vez resvalavam e iam cair sobre as companheiras que tinham debaixo. Era uma visão inquietante, quase aterradora.

Se não soubesse que tinha o meu lar totalmente selado, o medo que agora sentia seria impossível de aturar.

Fiquei a observar as ratazanas durante uns minutos, até que o cansaço me venceu e acabei por cair num sono alterado e com sonhos que se repetiam uma e outra vez.

Quando acordei outra vez era já praticamente de noite. Um ruído estranho, que vinha de fora de casa, surpreendeu-me ainda mais.

Peguei na lanterna que conseguira na minha excursão de ontem e iluminei a janela. Um enorme exército de enormes ratos pressionava o vidro em toda a sua extensão. Traguei saliva.

Embora não me encontrasse nada bem de saúde, ergui-me da cama e baixei a persiana de todo, para não continuar a observar aquela imagem sinistra.

Era estranho. Estava acostumado a ver ratos, mas nunca vira tal quantidade. Eram milhares.

Subi ao andar superior e o que vi ali geou-me o sangue. Ontem tinha deixado a escada de mão sem subir e, por essa escada, algumas ratazanas conseguiram escalar até ao andar superior. A porta que dava à galeria estava fechada e por isso não conseguiram entrar no interior, pero era assustador o bastante para que o meu coração latejasse desbocadamente. Devia subir a escada de mão e acabar com aquelas ratazanas, porque era possível que encontrassem como entrar em casa e era algo ao que não estava disposto.

 


No entanto, não me atrevia a sair, sendo de noite, à galeria envidraçada que tinha diante da janela para subir a escada de mão. Tinha sido um erro não a subir, provavelmente um erro que acabarei pagando sem remédio.

Iluminei com a lanterna toda a galeria, perscrutando os possíveis pontos de ataque. Quero crer que não há nenhum oco ou fenda por onde as ratazanas possam abrir-se passo, mas isso nunca pode saber-se, enfrentando-me a seres tão constantes e perigosos.

Verifiquei que a porta que dava à galeria ficasse bem fechada e regressei ao interior. Faltava o sótão. Ali dentro tampouco havia nenhum rato, apenas pó, trastes velhos e sujidade. No entanto, na mansarda envidraçada sobre a minha cabeça, que eu utilizava em ocasiões para observar as estrelas, uma visão dantesca paralisou-me de medo. Um rato enorme, com os olhos injetados em sangue, mantinha a sua olhada sinistra cravada em mim.

Estava cercado. Não podia sair ao exterior. E esta vez não podia assegurar que não houvesse nenhum pequeno oco ou fenda entre as telhas para aceder ao interior. Um suor frio geou-me o sangue.

 

Ângelo Brea, escritor galego nascido em Santiago de Compostela, é membro da Academia Galega da Língua Portuguesa e professor de Língua e Literatura Galegas.  Como se vê do conto acima publicado, Brea escreve em galego, codialeto do português, empregando as regras  do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. É autor, dentre outras obras, da coletânea Lembranças da Terra (Através, Santiago de Compostela, 2014), que reúne 16 narrativas de ficção científica, com apresentação de Paulo Soriano. O conto ora publicado integrará a sua nova coletânea, Nos vales do Máriner e outros relatos, a ser publicada pela Improset, da Corunha,  em janeiro de 2022.

 

Comentários

  1. Ao meu espectro, acerca desta obra: "As Ratazanas", é abundante e tão factível um cenário onde a degradação antrópica e a escassez de recursos fazem-se tão bem escritos e pautado em detalhes, bem como: na cogitação dó óbito canino, na exploração paulatina, nas incógnitas de uma possível aparição de outrem - qualquer coisa, se não os ratos. Tão bem construído, por vias que ligam o enredo em questionamentos coniventes à narração, tais quais: "teria o personagem sobrevivido à mencionada patologia?", "será que os 'bichos' adentrarão à casa?", "alguém irá aparecer, trazendo alguma solução?"; e afins. Tudo moldado, com efeito, em riqueza através do mínimo fator já supracitado: as condições nas quais aceitamos e até encaminhamos mesmo que inconscientemente ou por dotarmos por natureza; a nossa própria destruição, refletida, no texto, pelo aumento da radiação solar, tema hoje bem discutido, porém não totalmente aderido infelizmente.

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