O CADÁVER REDIVIVO - Conto Clássico de Terror - Pu Songling

 


O CADÁVER REDIVIVO

Pu Songling

(1640 – 1715)

 

Um velho homem da aldeia de Caidian, na região de Yangxin, abriu, com um filho, uma estalagem improvisada, a algumas milhas entre a aldeia e a capital, para alojar os comerciantes ambulantes. Lá, muitos mercadores costumavam pernoitar.

Certo dia, ao anoitecer, quatro homens chegaram à hospedaria em busca de alojamento. O velho estalajadeiro lhes disse que não restavam quartos desocupados. Mas, receando não encontrar outro lugar que os abrigasse, os quatro viajantes insistiram com o ancião para que os deixasse ficar. Finalmente, o velho cedeu e lhes ofereceu um lugar, embora os advertindo de que o cômodo talvez não lhes fosse do agrado.

— Mesmo que seja um alpendre, não nos importamos. Não temos melindres — disseram os viajantes. 

Coincidentemente, a nora do ancião acabara de morrer. Tinham deixado o cadáver num pequeno quarto, enquanto o filho saíra para comprar o ataúde. O estalajadeiro levou os viajantes àquele recinto, no outro lado da rua.

Quando penetraram no lugar, os hóspedes vislumbraram uma mesa sobre a qual ardia uma lamparina de azeite. Atrás dela, um dossel separava o leito onde jazia o cadáver, coberto por uma colcha de papel.

Viram, em um lado do quarto, outra alcova com um grande catre.  Esgotados pela caminhada, os viajantes, tão logo repousaram suas cabeças nos travesseiros, adormeceram entre sonoros roncos.

Um deles, que tinha um sono irrequieto, subitamente ouviu um ruído seco, vindo do leito mortuário. Com um estremecimento, abriu os olhos e, à luz da lamparina de azeite, pôde ver como o cadáver da mulher se erguia por sob a colcha de papel, descia do leito e caminhava na direção da alcova onde dormiam ele e seus companheiros.

Seu rosto desprendia um reflexo dourado e em torno de sua testa havia uma fita de seda pura. Ao alcançar o catre, pôs-se a mulher a soprar sobre cada um dos hóspedes adormecidos. Atemorizado, sentindo a aproximação do cadáver, o quarto hóspede levantou o cobertor e cobriu a cabeça. E, prendendo a respiração, permaneceu escutando. Um instante depois, a defunta acercou-se dele, e, assim como o fizera com os seus companheiros, soprou sobre ele.  Em seguida, pareceu-lhe que a mulher se encaminhava para fora da alcova e pôde escutar o ruído da colcha de papel que cobria o cadáver. Ao expor a cabeça para fitar, viu que a defunta estava novamente rígida sobre o leito. Cheio de terror, sem se atrever a emitir o mais breve ruído, deu vários pontapés em seus companheiros, mas estes não se moveram nem um pouco.  Desesperado, resolveu agarrar a roupa e sair correndo. Ao levantar-se, quando se dispunha a vestir-se, ouviu novamente aquele ruído seco.  Aterrorizado, voltou a meter-se no catre e afundou a cabeça sob a colcha. Outra vez, sentiu que a mulher se aproximava e voltava a soprar-lhe a face, agora com maior insistência, retornando depois ao leito mortuário.  Desta feita, o hóspede espichou lentamente a mão por sob o cobertor e, conseguindo agarrar a roupa, saiu, descalço, a correr.  De repente, a defunta ergueu-se às suas costas.  E, enquanto a mulher afastava-se do dossel, o hóspede abria o ferrolho e debandava-se às carreiras.  A defunta saiu em seu encalço.

O homem corria e gritava, mas seus gritos não foram suficientes a que alguém na vila viesse em seu socorro. Pensou em bater à porta do estalajadeiro, mas temia que a defunta o alcançasse quando parasse. Por isso, continuou a correr, fugindo pelo caminho que levava à cidade. Ao chegar aos subúrbios orientais, vislumbrou um templo, de onde vinha o toque do peixe de madeira que os monges batiam em suas orações. Nervoso, lançou-se a chamar à porta, mas os monges consideraram a situação demasiadamente estranha e não o deixaram entrar. O homem olhou para trás por um instante e viu que a defunta estava já muito próxima. Desalojado, sem mais escapatória, viu que junto à porta do templo havia um álamo de mais de um metro de diâmetro, e se escondeu atrás dele, movendo-se para a esquerda ou para direita para safar-se do alcance da defunta, que se mostrava cada vez mais furiosa.  A exaustão já deixava a sua marca quando, de repente, o cadáver deteve-se bruscamente. O viajante permaneceu escondido atrás da árvore, suando frio. Enquanto tentava recuperar o fôlego, a defunta recobrou num ímpeto os movimentos, estirando os braços por ambos os flancos do álamo, tentando agarrá-lo. Completamente aterrorizado, o hóspede desmaiou. Todavia, o cadáver continuou agarrado ao tronco da árvore, como se nele estivesse incrustado.

 

 


Os monges estiveram a escutar, às escondidas, por um bom tempo. Quando cessou o tumulto, seguiram, às palpadelas, ao lugar onde jazia o homem. Aproximando dele uma lamparina, pensaram, a princípio, que estivesse morto. Mas perceberam, em seguida, que o seu coração batia levemente. Levaram-no para o interior do templo e, já no final da noite, o homem recobrou a consciência.  Os monges lhe deram um caldo e perguntaram-lhe pelo ocorrido. O mercador relatou toda a sua história.

Quando já havia soado o sino que marcava a alvorada, em meio à bruma do amanhecer, os monges saíram para inspecionar a árvore e viram que a defunta lá continuava incrustada. Assombrados, avisaram ao magistrado, que, em pessoa, acorreu para investigar o sucedido. O magistrado ordenou a seus subalternos que removessem da árvore as mãos da mulher, mas estes foram incapazes de extraí-las do tronco. Quando examinaram mais detalhadamente, verificaram que quatro dedos de ambas as mãos estavam cravados como punhais, com as unhas completamente incrustadas na madeira. Tiveram de recorrer à força conjunta de vários homens para conseguir retirar finalmente o cadáver. Os buracos nos quais os dedos se haviam incrustado pareciam ter sido perfurados. Um servo foi enviado para buscar o ancião na estalagem. Lá, havia-se formado um enorme alvoroço por conta do desaparecimento do cadáver e da descoberta dos três hóspedes mortos. O servo contou o ocorrido e o ancião regressou com ele para levar o cadáver de volta.

O quarto hóspede, chorando, disse ao magistrado:

— Éramos quatro quando saímos, mas agora voltarei sozinho.  Como as pessoas de minha aldeia irão acreditar no que aconteceu?

Por isto, o magistrado lhe expediu um certificado e lhe entregou dinheiro e mantimentos para o caminho de regresso.

 

Versão em português de Paulo Soriano


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