OS DENTES DO DEMÔNIO - Conto de Terror - Flávio de Souza
OS
DENTES DO DEMÔNIO
Flávio
de Souza
I
No início sentiu-se uma brisa extremamente
quente, um tórrido sopro, uma manifestação inexplicável que contrastava com o
abraço gélido oferecido pela noite típica de inverno.
Parecia que algumas partículas em suspensão no
ar atraíam-se mutuamente. Havia uma espécie de choque. Ouvia-se um suave
tilintar. Logo, formou-se um círculo espiralado, um movimento incomum que
culminou com o surgimento de um vórtice iluminado. Mas não era uma iluminação
viva, na verdade era como se o deslocamento de ar sugasse a pouca luminosidade
do local e a devolvesse como as sobras de um consumo ávido.
Suavemente, o deslocamento do ar quente
pareceu retroceder. Então, uma massa disforme começou a tomar corpo, em
substituição ao redemoinho que ali estivera. O ruído, semelhante ao som
produzido por taças de cristal durante um brinde, deu lugar a um estampido
ritmado, algo parecido com a mescla de um zumbido de abelha com o bater de asas
de um pássaro de pequeno porte.
Naquele momento ela não estava mais sozinha
no quarto. A serenidade do seu sono estava sendo observada por olhos atentos e
interessados. Gotas de suor se espalhavam pela superfície da pele jovem, uma
reação involuntária causada pela presença do visitante.
A
criatura alada percorria toda a extensão do corpo inerte. Ela sobrevoava o
leito de forma rente, buscava a confirmação de que era exatamente dali que
vinha o chamado. O demônio não gostava da tarefa extenuante a qual estava
destinado a cumprir, mas resignava-se por conta do pagamento que recebia: uma
pequena parcela de inocência, em troca da assimilação do pecado mesquinho
abraçado logo cedo por seu contratante.
Sim. Era dali que provinha o chamado...
O
pequeno ser pousou decidido sobre a maciez do rosto infantil. Com um movimento
rápido, fez pender uma longa e esguia língua sinuosa. Minúsculos filamentos
eriçaram-se na ponta do músculo. A adormecida tremeu com o toque, pois, apesar
do calor que inundava o ambiente, o contato era gelado como o afago de um
morto.
Se
uma testemunha ali estivesse, conseguiria ver delicadas gotas rubras
atravessando o caminho até a boca escancarada da criatura. O visitante desejava
continuar, pois o ato o enchia de vitalidade. Entretanto, ele sabia que não lhe
era permitido. Não havia o menor sinal de ferimento no rosto da menina. Porém,
na cavidade bucal do ser, os indícios da vida fervilhavam.
O
demônio alçou voo, executando, em seguida, um semicírculo que o levou à parte
inferior do travesseiro da menina. Ele se movia abruptamente por entre o tecido
de algodão e o invólucro de penas. Mas seus movimentos não eram passíveis de
percepção, porque sua contratante estava mergulhada no mais absoluto dos sonos.
Antes
de tomar para si seu pagamento, a parcela de inocência que lhe cabia, a
criatura regurgitou o líquido que roubara. Mas este já não apresentava a
vivacidade escarlate de antes. O que se via naquele momento não passava de uma
massa gosmenta e amarelada, um conteúdo asqueroso, tão repugnante quanto o vão
que o expelia.
Com
a prática das eras, o ser tomou a mistura nas mãos e começou a moldá-la com
habilidade. Seus movimentos eram rápidos e precisos, tão velozes que chegavam a
produzir um brilho, uma luz dourada e atraente. Em apenas alguns segundos, ele
tinha nas mãos uma enorme e reluzente moeda.
Com um sorriso ferino nos lábios, ele pousou
sua parte do trato sobre o colchão e tomou para si a minúscula peça alva. O
círculo de ouro rapidamente perdeu o brilho e, em seguida, dividiu-se em
múltiplas partes, fazendo surgir um punhado de amostras metálicas da moeda
corrente.
O
demônio alçou novo voo e, uma vez livre no ar, fez surgiu um outro redemoinho
com o bater de suas asas. Com sua partida, a temperatura voltou ao normal.
A
chegada da manhã foi acompanhada por um sorriso. Um sorriso deformado, a bem da
verdade, mas não menos verdadeiro ou entusiasmado. A menina corria pelas
escadarias com as mãos plenas do vil metal. Os pais se entreolharam e deixaram
escapar um ar de cinismo, a certeza mútua da culpa alheia no episódio, quando,
de fato, nenhum deles no quarto estivera.
A
garota não conseguia se conter tamanha era a sua felicidade. Afinal, ela havia
conseguido o que queria, não era tudo fantasia no fim das contas. As moedas
estavam ali para comprovar. Estavam ali em suas mãos!
Mas
tudo que era bom poderia melhorar. Sim poderia melhorar. Poderia ficar muito
melhor, ela pensou...
II
Ela
acordou com uma sensação familiar. Um calor ao redor do seu corpo, mas a
impressão logo se dissipou. Sua memória estava tão turva quanto água barrenta.
Demorou para que ela conseguisse encaixar os pensamentos.
Aquele
não era o seu quarto, ela não estava em casa. Ao seu redor inúmeros aparelhos
com luzes multicoloridas. Fios atrelavam-se ao seu corpo. Ela quis gritar, mas
uma máscara abafava sua voz. O desespero do seu corpo em movimento chamou a
atenção de alguém. Ela reconheceu aquele rosto, embora tais feições estivessem
massacradas pela ação da dor.
—
Filha, filha! Você acordou! Você acordou!
A
confusão tomava conta da mente da menina. Um turbilhão de emoções e conflitos,
ela não conseguia formar uma linha de raciocínio até que os fatos a tomaram com
um só aperto.
Ela
se lembrava daquela manhã. Era nítida a euforia. Mas havia uma pontada de
frustração, sim, havia algo ruim, um sentimento de que tudo poderia ser melhor.
Ela queria mais. Ela poderia ter mais, e teria...
A
menina pensou numa solução ainda naquela noite. Persuasiva, convencera o irmão
menor a subir as escadas com ela, doces e balas o aguardavam. Já quase no topo,
ela esperava ansiosa pelo melhor momento para que suas mãos distraídas
acidentalmente encontrassem as costas do menino.
Um
breve empurrão bastou para que ele rolasse por todos os degraus até se chocar
com o pavimento inferior. A irmã correu até ele. Antes de gritar em desespero,
ela recolheu os dentes lavados no sangue que se espalhava pelo carpete. Ele a
encarava com o olhar fixo e com a respiração entrecortada.
A
menina sentiu o golpe de uma dor aguda no centro da testa. Algo tão intenso que
a fez perder os sentidos tomada pela escuridão. Ela se sentiu capturada por um
sono profundo, uma duradoura viagem ao vazio, até ser despertada por uma
sensação familiar...
—
Filha! Graças a Deus você voltou para mim! Você voltou! Eu não aguentaria te
perder também! Eu não aguentaria!
Ela era nova, mas já ostentava discernimento
suficiente para entender o que aquelas palavras significavam. O irmão estava
morto! Ela o matara! Ela o matara!
Em
convulsão, perdeu novamente os sentidos...
III
Ela
ouviu um bater de asas. Seus olhos perscrutaram a escuridão. Estava sozinha. O
movimento de sua cabeça fez surgir um tilintar, inúmeras moedas douradas caíam
do seu travesseiro como uma cascata em contato com o chão encerado do hospital.
Eram os dentes do seu irmão.
Indefesa,
ela enxergou os contornos de algo envolto num brilho morto. Alguma coisa
pequena e veloz que parecia lhe falar diretamente à cabeça.
Mais uma vez ela tentou gritar, mas novamente
foi contida pela situação. As moedas juntaram-se num monte. O punhado metálico
lentamente perdeu o brilho dourado e, num processo inverso, ganhou um tom de
vermelho intenso.
Cada
círculo transformou-se numa mancha sangrenta. Logo as marcas se uniram numa
horrenda poça. O líquido elevou-se no ar ganhando os contornos familiares de um
menino, mas o que se via no interior dos seus olhos em nada remetia à antiga
ternura que exalava...
A
imagem deformada do seu irmão caminhava em sua direção. A criatura alada o
acompanhava e falava com uma voz incompatível com suas dimensões:
—
Eu exijo o meu pagamento — vociferava a criatura.
—Eu
deixei os dentes debaixo do travesseiro. Eu deixei. – A menina tentava se
explicar, com a voz abafada.
—
Você não pode trocar algo que não é seu. Você trapaceou e agora vai pagar.
—
Mas eu deixei, eu deixei...
—
Eu quero os dentes! Agora!
IV
As
arrumadeiras do hospital cochichavam a respeito do quanto deveriam estar
sofrendo aqueles pais.
—
Imagina, perder um filho num acidente doméstico tão terrível.
—
E a outra? Depois de ficar em coma por tanto tempo, por presenciar o acidente
do irmão, ter um fim como aquele?
Dizem
que foi um ataque psicótico. Encontraram-na com a boca dilacerada nas grades do
leito. A coitadinha se mutilou até a morte!
—
Contam os rumores que não havia um só dente intacto. Ainda dá para sentir o
cheiro da morte nesse quarto...
—
Ei, o que é isso debaixo do travesseiro?
—
Moedas! Um monte de moedas!
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