AS ATROCIDADES DE CALÍGULA - Narrativa Clássica de Horror - Caio Suetônio Tranquilo
AS ATROCIDADES
DE CALÍGULA
Caio Suetônio Tranquilo
(96 – 141)
A
ferocidade de Calígula ficou evidenciada nos seguintes traços. Como custasse
muito caro o gado com que se alimentavam as feras, designou, entre os
criminosos, os que deviam ser devorados. Com este escopo passou em revista as
prisões, sem examinar nenhum registro carcerário, limitando-se a, de pé, no
meio da galeria, fazê-los conduzir ao suplício, do primeiro ao último.
Exigiu
dum cidadão, que prometera combater na arena pela saúde de César, o cumprimento
da palavra empenhada. Permitiu-lhe combater com gládio e não o dispensou depois
que venceu e, assim mesmo, à vista de muitos rogos. Entregou à petizada outro homem,
que jurara morrer pela mesma causa, mas que hesitava. Foi coroado de verbena e
pequenas faixas. As crianças, lembrando-lhe a promessa feita, levaram-no,
então, de bairro em bairro, até que resolveram precipitá-lo do alto duma
muralha.
Condenou
ao trabalho das minas, das estradas e, também, às feras uma multidão de
cidadãos honrados, depois de afrontados com estigmas vergonhosos, ou, de outro
modo, de encerrados em jaulas, onde eram obrigados a se conservarem de quatro
pés como animais. A outros, mandava cortá-los pelo meio do corpo. Nada disso se
verificava em virtude de motivos graves, mas por se haver descontentado com
eles nalgum espetáculo, ou porque não tivessem querido jurar pelo seu gênio.
Forçou
os pais a assistirem ao suplício dos próprios filhos. Como um deles se
desculpasse, alegando motivos de saúde, enviou-lhe a sua liteira. Outro, que
acabava de presenciar idêntico tormento, foi logo convidado a comparecer a um
festim, onde, por meio de toda espécie de gentilezas, Calígula o obrigou a rir
e a divertir-se.
Fez
espancar na prisão, durante vários dias seguidos, o intendente dos seus
espetáculos e das suas caças e só o assassinou depois que se sentiu incomodado
com o mau cheiro do seu corpo em putrefação. Queimou em meio à arena um verso
humorístico que se prestava a trocadilho.
Como
um cavaleiro romano, exposto às feras, gritasse que estava inocente, mandou
recolhê-lo, cortou-lhe a língua e devolveu-o à arena.
Perguntou,
em certa oportunidade, a um cidadão, que voltava de longo exílio, o que
costumava fazer lá. Este, para adulá-lo, respondeu:
—
Pedia sempre aos deuses que matassem Tibério (o que se realizou) e te
entregassem o Império.
Desta
maneira, persuadiu-se de que todos os que haviam sido proscritos desejavam
também a sua morte e enviou soldados, de ilha em ilha, para degolá-los todos.
Como
quisesse reduzir um senador a pedaços, aliciou gente para acusá-lo como inimigo
público, logo à sua entrada na Cúria, atirar-se contra ele, feri-lo com seus
estiletes e entregá-lo à população para que o estraçalhasse. Não se deu por
satisfeito enquanto não viu com os próprios olhos os membros e as entranhas do
homem arrastados pelas ruas e amontoados aos seus pés.
Aliava
à monstruosidade dos seus atos a atrocidade dos seus propósitos. Afirmava nada
encontrar de melhor para louvar e aprovar no seu caráter do que (para empregar
o termo de que se valia) a sua “impassibilidade”. Antônia, sua avó, dava-lhe
conselhos. Demonstrando pouco caso em segui-los, respondia:
— Lembra-te que me é lícito agir contra quem
bem entenda.
Como já tencionasse trucidar seu irmão,
suspeito de se haver premunido de contraveneno, interrogava:
—Antídoto
contra César?
Ao
banir as irmãs, disse-lhes, ameaçadoramente, “que ele não possuía apenas ilhas,
mas também espadas”.
Costumava
um antigo pretor, retirado em Anticira pedir-lhe, em razão do seu estado de
saúde, prorrogação de licença. Calígula enviou ordem para matá-lo,
acrescentando “que uma sangria se tornava necessária a quem, por espaço de
tanto tempo, o heléboro[1]
nada adiantou”.
De
dez em dez dias assinava a lista dos prisioneiros condenados à morte, dizendo
que “estava ajustando as contas”. Como tivessem sido condenados ao mesmo tempo
numerosos gauleses e gregos, glorificava-se “de haver subjugado a Galo-Grécia”.
Quase
que não matava as suas vítimas senão a pequenos golpes reiterados e era-lhe bem
conhecida a opinião, que não cessava de repetir:
—
Bate-lhe, mas de maneira que ele se sinta morrer.
Uma troca de nomes ocasionou a morte doutro
homem que não estava destinado ao suplício. Contudo, Calígula asseverou que
este também merecia o mesmo tratamento.
Constantemente
lhe vinha à boca este verso duma tragédia: “Podem me odiar, contanto que me
temam!”. Atacou, com igual virulência, todos os senadores, classificando-os de
“sequazes de Sejano” ou de “delatores das suas próprias mães e irmãos”. Ao
exibir os documentos que fingia desejar a queima, defendeu a crueldade de
Tibério, assegurando que ela se tornara necessária, em vista de tantas
acusações dignas de fé. Apontou continuadamente a ordem equestre como idólatra
dos jogos cênicos e dos combates. Irritado contra a massa, cujos aplausos
contrariavam as suas preferências, exclamou:
—
Quem me dera que o povo romano tivesse apenas um pescoço!
Fonte: “As Vidas dos
Doze Césares”, Senado Federal, 1912.
Tradução de autor não creditado.
Texto de domínio
público.
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