O LADRÃO SAGAZ - Narrativa Clássica Macabra - Heródoto
O LADRÃO SAGAZ
Heródoto
(c. 485 a.C. – c. 425 a.C.)
Rhampsinitos,
rei do Egito, acumulou uma tão grande riqueza em prata que nenhum dos reis que
vieram depois puderam superar ou, mesmo, ombrear-lhe a opulência.
Esse
rei, desejando conservar sua riqueza em segurança, mandou construir uma câmara
de pedra e uma de suas paredes projetava-se além das muralhas de seu palácio.
O
construtor da câmara de tesouros dispôs uma das pedras de tal maneira que
poderia ser retirada facilmente da parede por dois homens ou mesmo por apenas um.
Concluída
a câmara, o rei nela entesourou as suas riquezas.
Depois
de algum tempo, o construtor, sentindo a aproximação da morte, chamou os seus filhos,
que eram dois, e contou-lhes sobre a pedra, cuja disposição fora feita para
beneficiá-los. Acedendo à câmara, poderiam desfrutar de amplos meios de vida.
E, havendo-lhes claramente instruído sobre tudo o que dizia respeito à retirada
da pedra, disse-lhe que, se atinassem àquelas instruções, teriam irrestrito
acesso ao do tesouro do rei.
Tendo
falecido o construtor, seus filhos não demoraram muito para pôr as mãos à obra.
À noite, seguiram ao palácio e, tendo encontrado a pedra na parede da câmara,
lidaram com ela facilmente e levaram consigo grande quantidade de dinheiro.
Quando
sucedeu ao rei abrir a câmara, maravilhou-se ao ver que os cofres estavam
desfalcados, e não sabia a quem deveria culpar, pois os selos estavam intactos
e a câmara estava fechada. Todavia, ao abrir a câmara uma segunda e uma
terceira vez, viu que o dinheiro diminuía a cada vez mais, pois os ladrões eram
implacáveis em suas investidas.
O
rei, então, mantou instalar armadilhas, e as dispôs ao redor dos cofres onde se
guardava o dinheiro.
Os
ladrões, como de costume, voltaram à câmara. Um deles, ao se aproximar dos
cofres, foi prontamente apanhado na armadilha. E quando percebeu em que estava
em maus lençóis, chamou o irmão, para que visse a sua difícil situação. Assim, ordenou-lhe que viesse o mais rápido
possível e lhe cortasse a cabeça, a fim de evitar que, sendo visto e conhecido,
a sua desgraça não recaísse igualmente sobre o irmão. Este, persuadido,
porquanto considerou sensatas as palavras do irmão, seguiu-lhe as instruções e
lhe decepou a cabeça. Repôs, assim, a pedra no lugar e fugiu para casa, levando
consigo a cabeça de seu irmão.
Quando
amanheceu, o rei entrou na câmara e, ao ver o corpo do ladrão preso na
armadilha, sem a cabeça, e a câmara intacta, destituída de qualquer evidência
de entrada ou saída, ficou muito admirado. Perplexo, pendurou o cadáver do
ladrão na muralha da cidade e ali pôs uma guarnição, encarregada de averiguar
se alguém chorava ou se lamentava pelo morto, a fim de prendê-lo e levá-lo
diante do soberano.
Ao
ver o cadáver do filho pendurado na muralha, a mãe, tomada de tristeza, ordenou
ao filho sobrevivente que não poupasse esforços para resgatar o corpo do irmão
e trazê-lo de volta, ameaçando-o de denunciá-lo ao rei como autor do desfalque
se seu erário, caso não cumprisse a sua ordem.
Diante
da determinação da mãe, e não logrando dissuadi-la, o filho concebeu a seguinte
artimanha: carregou alguns asnos com
odres de vinho e os conduziu ao local onde estava a guarnição que vigiava junto
ao cadáver do irmão. Lá chegando, soltou as amarras de dois ou três de seus
odres, que verteram o líquido no chão. Então, quando o conteúdo estava quase
todo disperso, pôs-se a bater na cabeça e a gritar bem alto, como se não
soubesse para qual dos burros deveria voltar-se primeiro. Quando os guardas
viram o vinho fluindo em cascata, correram juntos para a estrada com taças nas
mãos e recolheram o vinho que os odres ainda entornavam, tentando salvar, para
si, alguma coisa naquele desperdício.
O
homem admoestou-os severamente, fingindo estar muito aborrecido. Os guardas
tentaram apaziguá-lo, e ele, depois de algum tempo, fingiu estar pacificado, aplacado
em sua fúria. Por fim, tirou seus jumentos da estrada para reordenar as suas
cargas. Demorando-se nisto, começou a conversar com os guardas, e um ou dois
fizeram-lhe gracejos, levando-o a rir com todos eles. Por fim, presenteou-lhes
com um odre de vinho, que se somou às taças que eles já haviam recolhido. Então,
sem delongas, os guardas acomodaram-se no lugar, e se puseram a beber,
convidando o desconhecido a juntar-se a eles, que aceitou o convite. Aproveitando-se
das as boas-vindas que os guardas cordialmente lhe davam, o homem ofereceu-lhes
os odres restantes. Tendo bebido generosamente, os guardas ficaram
completamente embriagados; e, vencidos pelo sono, adormeceram ali mesmo.
Como
já era tarde da noite, cuidou ele, primeiramente, de descer o corpo do irmão.
Depois, um gesto de zombaria, raspou-lhes a face direita. Tendo feito isto, colocou o cadáver sobre um
dos jumentos e tangeu-os em direção à casa, cumprindo, assim, o que a mãe lhe
ordenara.
Quando
soube que o cadáver do ladrão havia sido furtado, o rei demonstrou uma grande
ira. E querendo que, por todos os meios, se descobrisse quem teria ardilosamente
realizado aquela proeza, fez algo que escapa à minha credulidade: convenceu a própria filha a abrir as portas
de sua alcova e a receber, indistintamente, a quem, lascivamente, a procurasse.
Mas a princesa só se entregaria a quem lhe confessasse qual teriam sido a ação
mais profana e o feito mais astucioso que praticara na vida. Assim, aquele que lhe relatasse o episódio do
ladrão seria, prontamente, detido por ela, que não o deixaria escapar dali.
A
princesa obedeceu à ordem do pai. Contudo, o ladrão, adivinhando o real
propósito do rei, cuidou de sobrepassá-lo em astúcia, assim agindo: cortou o
braço de um homem recentemente falecido e, escondo-o sob o manto, dirigiu-se à
princesa. Esta, então, formulou-lhe a mesma pergunta que fizera aos demais. Em
resposta, disse-lhe ele que o mais profano de seu crime consistira em cortar a
cabeça de seu irmão, que havia sido apanhado numa armadilha na câmara do
tesouro real; quando ao feito mais astucioso, este fora quando embebedara os
guardas e retirara das muralhas o cadáver de seu irmão pendurado.
Tendo
ouvido isto, a princesa tentou agarrá-lo. Mas o ladrão estendeu-lhe, na
penumbra, o braço do cadáver, que ela agarrou e segurou, pensando que segurava
o braço do próprio homem. O ladrão, contudo, deixou-o nas mãos dela e partiu,
escapando pela porta.
Quando
soube do episódio, o rei ficou surpreso com a astúcia e ousadia do sujeito.
Mandou que se anunciasse em todas as cidades de seu reino o decreto pelo qual concedia
o perdão ao ladrão, e, também, prometia-lhe uma valiosa recompensa se ele
viesse à sua presença. O ladrão, confiando no perdão real, compareceu à corte.
Rhampsinitos,
vendo-o, muito maravilhou-se com ele, e, considerando-o o mais sábio de todos os
homens, deu-lhe a filha por esposa. Pois, como os egípcios se distinguiam de
todos os outros povos, ele também se distinguia de todos os outros egípcios.
Versão em português de
Paulo Soriano a partir da tradução inglesa de George Campbell Macaulay (1852 –
1915).
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