AS MÚMIAS DE GUANAJUATO - Conto de Terror - Alexandre Brea
AS MÚMIAS DE GUANAJUATO
Alexandre Brea
Guanajuato
é uma pequena cidade assentada num vale do centro do México. Quando se chega a
ela, a primeira coisa que chama a atenção é a distribuição das casas, uma massa
branca salpicada de vivas cores, que trepa pelas colinas como aferrando-se à
terra. O seu nome descende da língua purépecha e quer dizer Lugar cheio de
rãs, embora eu não tenha visto nenhuma quando estive lá.
Não
vou contar aqui que insólitos motivos me levaram até às suas ruas, só que um
bom dia me encontrei caminhando entre aquelas casas pintadas de cores que
deixavam os tijolos ao descoberto, aqui e lá, como feridas abertas. E, ainda
que só fiquei uma noite a dormir, a cidade deixou uma funda pegada em mim. Como
um arrepio abissal e sem explicação que me visita nas poucas vezes que acordo
no meio da noite.
Sim,
estou certo de que isso começou justamente depois daquela viagem.
A
história começa assim. Estava eu deitado na cama do quarto do meu hotel,
derrotado pelo calor. A equipagem, ainda sem desfazer, aguardava em formação
diante da porta como uma fronteira que me separava do resto do mundo. Sem
dar-me conta, caí num profundo sono do que só acordei horas mais tarde com uma
fome selvagem e dezenas de mensagens no telemóvel às quais respondi brevemente
dizendo que tudo estava bem. Eram quase 17h.
Esmagado
ainda pelo calor, abri o navegador do telemóvel para procurar o que ver em
Guanajuato e achei no último lugar da lista uma escura surpresa.
Como
que museu de múmias? — pensei para mim. Mas não se tratava de nenhum erro ou
eufemismo. Aparentemente naquele museu estavam expostos centos de múmias reais,
incluindo bebés mumificados e pessoas enterradas vivas. Pelo que dizia a
descrição do museu, nos cemitérios municipais do México é preciso um pagamento
para manter a sepultura e, se este se interrompe, o cadáver é exumado para
liberar o sepulcro. Foi assim como acharam as primeiras múmias, a finais do
século XIX. Ao parecer, algumas propriedades químicas da terra tinham
mumificado naturalmente os corpos das pessoas enterradas.
O meu interesse por aquela cidade começava a
crescer aos poucos, mas o primeiro era o primeiro. Mudei de roupa e baixei à
rua, procurando um lugar onde comer algo.
Ao
atravessar a porta do hotel fiquei cegado brevemente pelo Sol, ainda alto. Uma
moto atravessou a rua, passando perigosamente perto de mim e contribuindo à
minha desorientação. Decidi girar à direita por puro instinto. O meu coração
começava a acalmar-se e os meus olhos barriam as ruas à procura dum restaurante,
mas detiveram-se numa anciã, que bloqueava a porta da sua casa, sentada numa
cadeira de rodas. Vestia com tecidos de cores que cobriam o seu corpo dos pés à
cabeça e me devolvia um olhar intenso e brilhante. Pensei em uma vela a brilhar
no fundo de uma profunda cova.
À
medida que me aproximava a ela, o resto do mundo começou a perder definição.
Senti que havia algo hipnótico na sua extensa figura. Tarde demais, reparei num
brilho malicioso nos seus olhos. Três cães furiosos começaram a ladrar ao
uníssono do telhado, só um metro por em cima da minha cabeça, provocando-me tal
sobressalto que o meu coração parecia deformar-se como um chicle sendo mascado.
Ela estalou em uma ruidosa gargalhada que parecia não rematar nunca. Quando me
recuperei um pouco, devolvi um meio sorriso, como tentando fazer-me partícipe
da sua diversão, mas ela continuou a rir e dos seus olhos brotaram densas
lágrimas. Afastei-me de ali, entre os ladridos dos cães, mas aquele riso
maligno seguiu ressoando ao longe até que deixei atrás várias ruas com nomes
adequadamente sombrios.
Finalmente,
cheguei a uma pequena zona comercial com um ponto de táxi e um restaurante
bastante grande que mesmamente dispunha de um estacionamento próprio. Entrei e
pedi uma cola e uma torta de carnitas para acalmar a fome.
Sentado
naquela mesa de madeira, repleta de nomes de parelhas talhados inscritos em
corações e promessas de amor eterno, consegui finalmente recuperar a calma. No
fundo do bar havia um homem bêbado cantando tristes canções mexicanas e eu não
consegui evitar pensar no passado. Perguntei-me quantos casais, que escreveram
os seus nomes naquela mesa, continuariam juntos, quantos ainda se amariam. Por
um momento, todas as dores da minha vida desfilaram por diante dos meus olhos,
mas só lograram espertar em mim uma doce nostalgia. Estava demasiadamente longe
de casa como para que certos pensamentos me alcançassem. Assim simplesmente
comi em silêncio, escutando o homem cantar desgarrado:
“me están sirviendo ahorita mi tequila,
ya va mi pensamiento rumbo a ti”.
Quando
rematei a torta, peguei no meu telefone, tirei uma foto do homem que cantava e
depois procurei como chegar até ao museu de múmias. Para a minha surpresa vi
que estava a só 100 metros e que encerrava às 18 horas. Que cedo! — pensei. Mas
como eram já 17:30h, paguei a comida e voltei às ruas.
Fora,
a temperatura começava a ser mais agradável e o Sol fazia brilhar em dourado os
remoinhos de pó que se formavam aqui e acolá. Antes de dar-me conta estava já
às portas do museu, que de fora lembrava um mercado coberto pela sua forma
alongada. Comprei o ticket e
entrei.
Em
contraste com a luz que inundava o exterior, o museu era bastante escuro.
Suponho que era o adequado para aquele espetáculo que se
alçava
diante de mim. A cada lado, dezenas de múmias, erguidas em formação, vigilavam
os meus passos.
Era
o único visitante, à falta de apenas vinte minutos para que o museu encerrasse.
E ali, sozinho, rodeado de cadáveres, senti que estava a profanar algo, mas não
era capaz de identificar exatamente o quê. Tal vez fosse pela expressão no
rosto das múmias, muitas com a boca muito aberta, tão própria das pessoas
quando se vão embora. Algo que eu sabia por experiência.
Um
daqueles corpos estava ainda vestido e uma barba cinzenta crescia no rosto. Por
algum motivo lembrou-me a mim próprio. Eu não seria muito diferente se me
enterrassem em Guanajuato ao morrer...
À
medida que avançava pelas salas, repletas de cadáveres até o ponto da
despersonificação, comecei a reparar em que certas múmias apresentavam posturas
muito agitadas e antinaturais. Os cartazes informativos, que acompanhavam
aqueles exemplares, indicavam que estas pessoas foram enterradas vivas e
acordaram depois, no que eu imaginava como o pior destino possível para uma
pessoa. A enorme quantidade fez-me considerar como de habitual seria isto em
realidade.
Também
percorri uma sala chamada Angelitos, dedicada a crianças e bebês. Estes
últimos apareciam ainda vestidos com roupas de recém-nascido azuis e rosadas.
Fiquei uns minutos a olhar aqueles corpos que morreram antes de saber nada
deste mundo. O parecido daqueles cadáveres com um boneco causava autêntico
pavor.
Como
já faltava pouco tempo para a hora de encerramento, e como não queria ficar
encerrado com as múmias toda a noite por nada do mundo, atravessei rapidamente
algumas salas onde se mostravam os corpos mumificados de pessoas que morreram
em acidentes ou onde se davam explicações de algumas investigações sobre os
corpos.
Mas,
quando cheguei a uma das últimas salas, fiquei paralisado. No centro erguia-se
uma mulher, carregando um diminuto bebê nos braços. O pior era que aquela
criatura nem sequer tinha nascido, já que a mãe morrera durante a gravidez.
Diante de mim tinha a múmia mais pequena do mundo. Mas o que mais me impactou
foi a composição dos dois corpos, com uma semelhança inegável às figuras
religiosas que mostram a virgem Maria com o menino Jesus nos braços. Naquele
momento, refleti sobre algum significado profundo da relação simbólica daquela
semelhança, mas não me sinto capaz de reproduzir aqui com palavras os meus
pensamentos.
Já
na última sala, estava eu aproveitando os meus últimos minutos de visita pra
ler a informação sobre a evolução histórica do museu quando escutei uma voz às
minhas costas. O meu coração, exausto após todos os sobressaltos daquele dia,
nem sequer se agitou, provavelmente pelo contido tono daquela voz.
—
Senhor, lamento imensamente, mas penso que já é a hora de fechar.
Virei-me
e vi um homem muito alto e demasiado velho como para estar em idade de
trabalhar. A sua pele pregava-se sobre si mesma em infinitas rugas, dando uma
sensação de velhez muito maior do que a de nenhuma das múmias.
—
Com certeza – respondi.
Abandonei
a última sala e, de volta na rua, respirei fundo enchendo-me os pulmões daquele
ar quente que me fazia sentir imensamente vivo depois do que tinha visto. O
ancião saiu detrás de mim e fechou com uma cadeia a porta. Logo voltou a olhada
para mim e sorriu.
—
Imagino que não gostaria de ficar fechado aí dentro.
—
Claro que não! – respondi. – Ademais, já foi bastante ser o único
visitante e ter de percorrer o museu sozinho.
—Sim,
não é muito recomendável fazer sozinho a visita. Em uma ocasião, uma dessas
visitas acabou com uma história bastante desagradável.
Algo
se acendeu em mim, como um alarme que me dizia a gritos que estava às portas de
uma boa história.
—
Que aconteceu? — perguntei.
E
isto foi o que me contou:
—
Há bastantes anos nasceu muito perto de aqui uma menina chamada Juana. Ela
acostumava brincar nesta mesma praça. No entanto, naquela altura o museu era
muito diferente. As múmias não estavam naquela altura protegidas dentro de uma
vitrina, qualquer pessoa podia tocá-las e a visita era muito mais assustadora.
De facto, o que lhe estou a contar foi um dos motivos principais para que se
decidisse finalmente fechar as múmias nas vitrinas.
»Um
dia estava aquela Juana a brincar cos seus amigos diante do museu. Alguns dos
meninos começaram a espreitar do umbral da porta e viram as múmias, ficando
muito impressionados. Então chamaram o resto das crianças para que vissem
aquilo, e Juana foi a única que se negou. Provavelmente tinha ouvido em casa o
que havia lá dentro e lhe teriam proibido entrar. Mas você já sabe como são os
meninos. Agarraram Juana dos braços e empurraram-na para dentro, com tão má
sorte que tropeçou com uma das múmias. Caiu ela ao chão e a múmia detrás,
acabando acima dela. Juana fugiu gritando de nojo e medo e não saiu da sua casa
em três dias.
Neste
ponto eu senti certa deceção ao pensar que a explicação rematava aí, que esse
tinha sido o motivo que levara a colocar as vitrinas. Mas a história só
começara...
»
Isto aconteceu muito antes de que conhecesse Juana, sendo eu um menino e ela já
quase uma anciã. Mas esta era a história que contavam os velhos para nos
explicar por que sempre cruzava pela parte oposta da rua, persignando-se,
quando se aproximava ao museu das múmias.
»
No entanto, suponho que a Juana não queria morrer sem demostrar-se a si mesma
que tinha o valor para entrar. Então, no dia do seu aniversário, decidiu ir ao
museu à última hora, como você. Tampouco havia ninguém mais a fazer a visita
aquele dia.
»
Juana entrou na escuridão da primeira sala. O que se encontrou era bastante
diferente ao que se pode ver nos dias de hoje. As múmias estavam de pé, sem
nenhuma separação com ela, aos dois lados do longo corredor. Com toda a
valentia que conseguiu reunir, Juana começou a caminhar entre elas,
enfrentando-se ao seu maior temor. Mas quando deu uns quantos passos e se viu
completamente rodeada de múmias, e reconheceu o nome de algumas delas, sentiu
um arrepio que congelou a sua coluna. Ademais, parecia fazer muito frio lá
dentro. Então, Juana tirou o pano da sua cabeça e se envolveu com ele para
tentar acalmar os calafrios.
»
Uma angustiante sensação de antecipação se apoderou dela. Sentiu que algo de
terrível ia suceder. Estava completamente sozinha e todas as múmias pareciam
olhar para ela sorrindo. Foi então que, justamente ao passar ao lado de uma
múmia com uma horrível expressão de dor no rosto, sentiu um forte tirão de
trás. Em todo a praça ressoou um grito autenticamente assustador, e essa foi a
última vez que alguém ouviu a voz de Juana. Acharam-na morta, de um ataque ao
coração. O pano com o que se envolvera enredara-se na mão de uma das múmias ao
passar ao seu lado e o seu velho coração não resistiu a impressão.
»
O medo pode ser o teu pior inimigo, sentenciava a gente quando contava esta
história. Mas o pior ainda estava por chegar. Poucos anos depois, Juana foi
desenterrada. Ninguém estava a pagar a sua sepultura pelo que contam. Assim,
Juana foi levada ao museu de múmias e desde então permanece dentro, atrapada no
seu pior pesadelo. Quando penso nisto, sempre me parece que aquela múmia a
agarrou realmente e a arrastou com ela, que a continua a agarrar. Não penso que
exista um ensinamento que se possa tirar do que aconteceu. Só podemos
apiedar-nos do seu destino. »
Durante
uns segundos guardei silêncio. Aquela narração tinha sido ouro puro para um
caçador de histórias como eu, mas era forte demais para a considerar
simplesmente algo que escrever. Perguntei alguns detalhes mais ao homem e ele
respondeu amavelmente a tudo. Mas o Sol começava a decair e eu despedi-me com
intenção de voltar ao meu hotel.
O
ancião perguntou-me onde me alojava. Duvidei uns segundos, mas respondi-lhe a
verdade. Amavelmente, o homem ofereceu-se a acompanhar-me.
—
Não é um lugar perigoso, mas um nunca sabe... Ademais, vivo de caminho.
Eu
agradeci a sua companhia. Depois daquele dia de sobressaltos e histórias de
múmias, queria voltar à calma do meu hotel.
Enquanto
caminhávamos, mergulhamos em uma interessante conversa sobre Guanajuato e as
nossas vidas. Só voltei ao mundo quando nos estávamos aproximando à casa da
senhora em cadeira de rodas e os cães. Respirei aliviado ao ver que já não
estava a senhora na porta. Mas o meu alívio durou pouco. Alarmado, reparei em
que o homem diminuía a marcha conforme chegávamos à casa da senhora, até deter-se
completamente diante da porta.
—
Receio que chegamos já à minha casa. Terá de continuar até o hotel sozinho, mas
está muito perto e não terá problema para chegar. E já sabe, sempre que venha a
Guanajuato tem você aqui a sua casa.
O
homem assinalou para a porta aberta com o braço estendido. Aquela parecia a
entrada a uma caverna, só se via uma escuridão densa de fora. Senti um intenso
arrepio. Tentando atuar com normalidade, agradeci ao homem por me acompanhar,
despedi-me com um sorriso, e caminhei sem mirar para atrás nem uma vez até
fechar a porta do quarto do hotel detrás de mim.
Pouco
mais. Aquela noite despertou-me um pesadelo confuso, do qual só lembro cães
ladrando e ensinando os dentes e múmias tentando agarrar-me com as mãos
estendidas, tudo acompanhado do riso infinito da mulher da cadeira de rodas.
Tempo
depois, já de volta à Galiza, tentei recopilar mais informação sobre a morte de
Juana. Mas por muito que procurei na rede não achei nada, nem uma referência. E
ainda a dia de hoje não sei se é certa.
Então,
provavelmente, o melhor seja esquecer esta história.
Alexandre Brea
nasceu em Santiago de Compostela no ano 1994. Graduado em física, atualmente está
a realizar o doutoramento em física de partículas.
Nos últimos anos,
participou nas obras poéticas coletivas Além do Silêncio, Galiza e Moçambique
numa linguagem e numa sinfonia e no Livro Homenagem a Manuel Maria,
assim como em numerosos recitais.
No ano 2016, foi eleito
para formar parte da antologia lusófona
Emergente,
que seleciona até 12 poetas emergentes de todo o universo lusófono.
No 2017, publicou o seu
primeiro livro de poesia, O Livro Branco. Um dos poemas deste livro, Com
o ritmo da chuva, foi o ganhador do prémio aRi[t]mar, outorgado ao
melhor poema editado em Portugal no citado ano.
No ano 2020, publicou o
projeto poético audiovisual A poesia está morta, em colaboração com
Álvaro Toimil.
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