DESFILE FÚNEBRE - Conto de Terror - Maycon Guedes
DESFILE
FÚNEBRE
Maycon
Guedes
A
terra das covas movimenta-se, abrindo passagem para que os pútridos defuntos
retornem à superfície depois de anos de sono lúgubre. A população de Franco da
Rocha, cidade interiorana, marcada por inúmeros mistérios, foi avisada sobre
uma maldição carnavalesca: jamais festejar o carnaval durante a noite de Quarta-Feira
de Cinzas. O problema é que, de geração em geração, a tal lenda foi ficando
esquecida, e cá estamos, nesse relato onde a mais fúnebre das festas aconteceu.
No centro da cidade, três escolas de samba se preparam para começar o desfile,
enquanto que, no cemitério não muito longe dali, defuntos macabros se aprontam
para a nefasta folia.
Ninguém
poderia imaginar que uma linda noite fresca, de céu tão limpo e repleto de
estrelas, reservava um acontecimento amedrontador que faria o mundo virar pelo
avesso, trazendo o inferno e seus demônios às ruas para participarem do
primeiro dia de Quaresma. Folia na cidade; show de horrores no
cemitério. Entre as lápides, todo tipo de defunto zanzava; os que foram
enterrados recentemente, com seus corpos inchados, e os veteranos esqueléticos,
enterrados há muito tempo. A multidão de carne podre ambulante preparava seus
caixões para o terrível desfile fúnebre.
Na
cidade, a primeira escola de samba começa a desfilar; o povo vibra, dança e
canta. O desfile em Franco da Rocha não era nada comparado aos grandes
sambódromos, mas, a extensa rua de terra, onde os carros alegóricos percorriam,
passando entre arquibancadas de madeiras do lado direito, e um vasto matagal
obscuro do lado esquerdo, era mais do que suficiente para entreter a população
daquela cidadezinha. O problema é que depois do imenso matagal começa o
cemitério, lugar onde todos acreditavam que os cadáveres infames jaziam no sono
perpétuo… não naquela noite!
Já
passava da meia-noite e a última escola de samba de Franco da Rocha — a mais
popular de todas — começava a desfilar, e como sempre, encerrando com o melhor
show. Do lugar mais alto da arquibancada, um velho ébrio se incomodava
com o que seus olhos enxergavam depois do matagal. Além de avistar os vultos
negros dos pinheirais dançarem (alucinação causada pelo excesso de bebida) o
velho pôde enxergar no horizonte algo alado, escuro, sobrevoando lentamente os
pinheirais, vindo de encontro ao último desfile que acontecia.
Cada
vez mais próximo, o objeto obscuro começava a se identificar aos olhos do
bêbado que, bruscamente, se levantou apontando o dedo para o matagal, gritando
e chamando a atenção de todos que desviaram o olhar para os tenebrosos
pinheirais — “A maldição! A maldição! Fomos avisados!” — Ninguém tinha dúvida
do que era o objeto que sobrevoava os pinheirais: um caixão, sim, um caixão
mofado e encardido de terra, com alças de metal enferrujadas nas laterais. Eu
poderia dizer que as pessoas mais ligeiras tiveram sorte e correram para longe
daquele lugar, mas, assim que o caixão pousou na estrada de terra, os que
correram para a penumbra ao fim daquela estrada tiveram um embate com outros
caixões. Dezenas e dezenas de caixões sobrevoavam os céus de Franco da Rocha.
Não havia escapatória.
O
pavor assumiu o lugar da animação. No rosto de cada um, o arrependimento por
não crerem em uma lenda tão antiga, desrespeitando-a e praticando a folia
justamente no dia proibido. Agora, a única coisa que podiam fazer era observar
os caixões “cuspindo” suas tampas para cima, liberando a saída dos defuntos que
ali dentro estavam. Em média, trinta caixões cercavam os festeiros. Ao saírem
de seus leitos funerários, os falecidos disseminaram velas acesas por toda
parte, deixando a atmosfera daquela estrada de terra cada vez mais macabra.
O
cenário era extremamente nefasto, com caixões e defuntos à luz de velas, urnas
macabras cortando os céus e um terrível aroma funesto, soprado pelos fortes ventos
que vinham dos pinheirais. Além dos gritos de desespero dos que estavam na
folia, alguns dos defuntos rosnavam em agonia, emitindo sons de suas bocas
decrépitas, causando um enorme arrepio; o som era indescritível, mas, se
pudermos imaginar o mais semelhante… já imaginou como seria o som do inferno?
A
chegada desses seres malditos tinha um propósito muito maior do que apenas
assustar os que desrespeitaram a lenda. O objetivo principal era fazer uma
coleta; uma coleta fúnebre. Então, mesmo estando podres e aparentemente
pesados, os defuntos iniciaram o ataque com agilidade, capturando o máximo de
pessoas possíveis e colocando-as dentro dos caixões. Metade das pessoas que
estavam na folia foram encaixotadas; o restante, enquanto lutavam por suas vidas,
ouviam as batidas vindo de dentro dos caixões lacrados, daqueles que ainda
permaneciam vivos ali dentro.
Um
grupo de pessoas quase teve sua chance de escapar; eram jovens; tinham fôlego
suficiente para correr para bem longe dali mas, não bastasse o horror ao qual
eles achavam que tinham se livrado, mais a frente, um novo caixão surgiu do
matagal, atravessando o caminho dos jovens que corriam ensandecidos e,
brutalmente, o caixão se chocou com um velho poste, espalhando pedaços de
madeira mofada e liberando enormes ratos negros que estavam no interior daquele
caixote mórbido. Não eram ratos comuns; seus olhos eram cobertos de chamas e
faíscas eram cuspidas de suas bocas, iluminando, em pequenos clarões, a
escuridão daquela estrada. A enxurrada de ratos avançou em direção aos jovens,
dilacerando-os em questão de segundos com seus malditos dentes trituradores e
velozes.
A
coleta fúnebre estava concluída. Dezenas de pessoas estavam encaixotadas.
Afortunados são os que morreram subitamente de tanto desespero, pois os que
permaneceram vivos, dentro dos caixões, nem imaginavam que algo maligno os
aguardava. A madrugada tornou-se silenciosa e lúgubre. Os defuntos se ajeitaram
em duplas, cada um de um dos lados do caixão; em sincronia, levantaram todos os
caixões agarrando as alças laterais de metal. A procissão fúnebre se iniciava;
os caixões, juntamente dos defuntos, começaram a levitar, subindo aos céus,
enfileirados e sem nenhuma pressa. Além das pancadas de desespero que vinham
dos que estavam vivos dentro dos caixões, e dos ruídos cruéis do vento, um novo
som surgiu da boca dos defuntos; eles cantarolavam uma sinfonia profana,
conduzida apenas por gemidos; uma verdadeira orquestra pútrida; assim eles
vagavam rente aos pinheirais, carregando seus caixões, em direção ao cemitério.
Foi o maior espetáculo daquela noite, jamais um outro carro alegórico poderia
proporcionar tal atração. Da folia para as covas, esse foi o desfecho
carnavalesco para alguns dos moradores de Franco da Rocha.
Obrigado por compartilhar :)
ResponderExcluirpodia ser mais curto ne
ResponderExcluirBoa noite acabei de ler e achei muito interessante.
ResponderExcluirOBRIGADO! 😁
ExcluirGostei
ResponderExcluir😍
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