LÚCIO TRANSFORMADO EM ASNO - Narrativa Clássica Sobrenatural - Lúcio Apuleio


LÚCIO TRANSFORMADO EM ASNO

Lúcio Apuleio

(c. 125 – c. 170)

 

Certo dia, Fótis, tomada pelo medo, correu para mim e disse que a sua senhora, querendo juntar-se a um homem que desejava, e não tendo outros meios de satisfazer-se, pretendia, na noite seguinte, transformar-se num pássaro e voar ao bel-prazer. Disse-me, pois, que eu me preparasse para ver, secretamente, aquele prodígio. E quando chegou a meia-noite, ela me levou, discretamente, nas pontas dos pés, para uma câmara alta, e me mandou olhar pela fresta de uma porta.

Primeiro, vi como a senhora Panfília desnudou-se completamente. Depois, abriu um pequeno cofre, de onde tirou algumas bolsas, e, abrindo uma destas, derramou nas palmas das mãos uma espécie de unguento. Então, com ele, esfregou o corpo, untando-se da ponta dos pés ao topo da cabeça.

E, depois de ter pronunciado, em segredo, palavras sacramentais, tendo a vela na mão, começou a sacudir e a ondular todos os membros. Foi quando notei que plumas começaram a brotar de seu corpo: o seu nariz enrijeceu-se e encurvou-se, suas unhas se transformaram em garras e, finalmente, ela se converteu num mocho. Então, crocitou um canto triste, como fazem estas aves. E, querendo experimentar o seu vigor, alçou-se do chão aos poucos, até que, finalmente, voou para longe.

Assim, por arte de sua feitiçaria, ela se transformava no que quisesse.

Quando vi tal prodígio, fiquei muito espantado. E, embora não estivesse subjugado por nenhuma espécie de encantamento, cheguei a pensar — de tão atônito que estava — que já não era Lúcio. Com os sentidos entorpecidos, maravilhado por aquela loucura, sonhava mesmo estando acordado, e esfregava os olhos para despertar daquela ilusão.

Quando voltei a mim, tomei Fótis pela mão, olhei nos seus olhos e disse:

— Sendo tão propícia a ocasião, rogo-te que, como prova de teu amor, que satisfaças aos meus desejos, dando-me um pouco do unguento. Peço-te tal favor, por teus divinos seios, para que, nas grandes chamas do meu amor, eu possa ser transformado num pássaro. E te prometo que, se me dás o unguento, estarei sempre preso a ti, obediente aos teus desígnios.

— Então — disse Fótis —, tu pretendes me enganar, e me forçar a cavar a minha própria sepultura? Tens em mente que não ficarás na Tessália? Se tu te tornas um pássaro, onde eu te procurarei? Onde te verei?

—Deus me livre de cometer tal crime — respondi —, pois, ainda que pudesse voar como uma águia, ou que me tornasse um mensageiro de Júpiter, eu teria, mesmo assim, que descer à terra para me aninhar contigo. E juro pelas amáveis tranças de teu cabelo que, desde a primeira vez que te vi e amei, nunca pensei noutra pessoa. Além disso, vem-me à mente que, se pela virtude do unguento eu me tornar um mocho, cuidarei de evitar todas as casas, pois não me interessa saber como essas matronas lidariam com seus amantes, se soubessem que eles foram transformados em mochos. Além disso, quando os mochos se achegam a qualquer lugar, pregam-nos em cruz à porta das casas, e assim são dignamente recompensados, porque as pessoas acreditam que eles trazem a má sorte à casa onde pousam. Mas eu te peço — e eu quase me esquecia de fazê-lo —, que me digas por que meio, quando eu for um mocho, retornarei à minha forma primitiva e me tornarei Lúcio novamente.

— Não temas — disse ela —, porque a minha senhora me ensinou como proceder para restituir a pessoa à forma original. E nem penses que ela fez isso como um gesto de boa vontade e de favor. Ensinou-me para que eu possa ajudá-la quando retorna para casa. E veja como são simples os ingredientes que produzem tão maravilhosos prodígios. Pois, por Hércules, eu juro que não é nada além de um pouco de ervas e folhas de louro jogados em água de poço, da qual se bebe e com a qual se fazem abluções.

Tendo assim falado, Fótis entrou no quarto e tirou uma bolsa do cofre, que eu beijei e abracei primeiro, e rezei para que pudesse ter êxito em meu propósito.

Então, tirei todas as minhas roupas e, enfiando avidamente uma mão na bolsa, recolhi uma boa quantidade de unguento. Depois, esfreguei bem cada parte e membro do meu corpo. Em seguida, agitei os braços como se fosse uma ave, imaginando que me transformava em mocho, tal como Panfília se transmudara. Mas do meu corpo não brotaram plumas. Em verdade, meu cabelo fez-se cerda e minha pele macia se convolou em couro duro; os dedos das minhas mãos e dos meus pés, perdendo o número de cinco, converteram-se em cascos; de minha traseira cresceu um grande rabo; e o meu rosto tornou-se monstruoso, já que agora eu tinha fuças compridas, lábios caídos e orelhas cheias de pelos. Também não pude experimentar nenhum conforto em minha transformação, pois meus membros se alongaram em demasia. Assim, observando cada parte de meu pobre corpo, percebi, claramente, que eu não me transformara em mocho, senão num simples asno.

 

 


Então pensei em culpar Fótis por aquele infortúnio, mas, estando privado tanto da linguagem quanto da forma humana, limitei-me a olhar para ela, em súplica, com olhos lacrimosos e lábios pendentes. No entanto, assim que ela viu o asno em que eu me havia convertido, soltou um grande grito.

Pobre miserável que eu era agora: um ser completamente rejeitado!

 

 

Texto reelaborado em português por Paulo Soriano a partir da tradução inglesa de William Adlington (séc. XVI).

Excerto de "Metamorfoses" ou "O Asno de Ouro". 

  

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