A VERDADE SOBRE O CASO DO SENHOR VALDEMAR - Conto de Terror - Edgar Allan Pöe

 


A VERDADE SOBRE O CASO DO SENHOR VALDEMAR

Edgar Allan Pöe

(1809 – 1849)

Tradução de Paulo Soriano

 

 

Publicado originalmente em 1845, A Verdade sobre o Caso do Senhor Valdemar é um conto de horror que registra a submissão de um homem, no momento de sua morte, a um transe mesmérico (hipnótico) e suas hediondas consequências.

A narrativa de Pöe pareceu tão verossimilhante ao espírito de sua época que inúmeros leitores — e mesmo estudiosos — acreditaram que o texto compunha, verdadeiramente, um relatório de um horripilante experimento científico.

 

Evidentemente, não pretendo considerar surpreendente que o extraordinário caso do senhor Valdemar haja despertado tantas discussões. Seria um milagre se acontecesse o contrário, dadas as circunstâncias. Malgrado fosse o nosso desejo manter o assunto distante do público — pelo menos por enquanto, ou até que surgissem novos meios de investigação —, não demorou a difundir-se, apesar de nossos esforços de sigilo, uma versão tão incompleta quanto exagerada, que se tornou fonte de muitas desagradáveis deturpações; estas, muito naturalmente, suscitaram uma profunda incredulidade.


É necessário, todavia, que eu, agora, restabeleça os fatos — pelo menos na medida em que me foi possível compreendê-los. Eles são, de forma sucinta, os que se seguem:


Ao longo dos últimos três anos, o estudo do mesmerismo[1] atraiu continuamente a minha atenção. E, há cerca de nove meses, ocorreu-me que, na série de experiências até então conduzidas, houvera uma omissão notável e mais ainda inexplicável: nenhuma pessoa havia sido mesmerizada in articulo mortis[2]. Era necessário verificar, em primeiro lugar, se, em tais condições, havia no paciente alguma susceptibilidade à influência magnética; em segundo, se, em existindo, ela aumentaria ou diminuiria em razão daquelas condições; e, em terceiro, em que medida, e por quanto tempo, esta operação poderia obstar o assédio da morte. Havia outros aspectos que mereciam investigação, mas aqueles aos quais me referi eram os pontos que mais excitavam a minha curiosidade — em especial o último deles —, tendo em vista a feição de extrema importância que as suas consequências poderiam assumir.


Perscrutanto se, entre as pessoas de minhas relações, haveria alguém com quem pudesse realizar as experiências, lembrei-me de meu amigo Ernest Valdemar, renomado compilador da Bibliotheca Forensica[3], e autor — sob nom de plume[4] de Issachar Marx — das versões polonesas de Wallenstein[5] e Gargantua[6]. O Sr. Valdemar, que residia principalmente no Harlem, Nova York, desde o ano de 1839, é — ou era — particularmente notável pela sua acentuada magreza — os seus membros inferiores muito se assemelhavam aos de John Randolph[7] — e pela brancura dos bigodes, que contrastavam violentamente com a negrura dos cabelos, frequentemente confundidos com mera peruca. Seu temperamento era marcadamente nervoso, o que o tornava bem propício a experimentos mesméricos. Em duas ou três ocasiões, eu o pusera em transe hipnótico com pouca dificuldade, mas fiquei desapontado por não alcançar outros resultados que a sua excepcional constituição me havia induzido a antecipar. A sua vontade jamais se subjugara por completo ao meu domínio e, no que tange à sua lucidez, nunca me foi possível obter uma prova satisfatória. Nestes pontos, eu sempre atribuíra o meu fracasso ao seu delicado estado de saúde. Alguns meses antes de conhecê-lo, os médicos haviam-lhe confirmado a tuberculose. Era seu costume, na verdade, falar calmamente sobre a proximidade de sua dissolução material, e o fazia como algo que não se pode evitar ou lastimar.


Quando me ocorreram, pela primeira vez, as ideias às quais me referi, muito naturalmente me veio à mente a figura do Sr. Valdemar. Eu conhecia muito bem a firme filosofia de meu amigo para recear algum escrúpulo de sua parte. E ele não tinha parentes na América capazes de interferir no processo. Falei francamente com ele sobre o assunto. E, para a minha surpresa, o seu interesse parecia vividamente acentuado. Digo para a minha surpresa porque, embora ele, de livre desígnio, se submetesse às experiências, jamais demonstrara qualquer simpatia com os meus procedimentos. Sua doença era das que admitiam um cálculo preciso sobre o momento em que a morte adviria. Combinamos, portanto, que ele me chamaria vinte e quatro horas antes da ocasião prevista pelos médicos para a sua morte.


Faz pouco mais de sete meses que me chegou o seguinte bilhete, escrito, de próprio punho, pelo senhor Valdemar:


Caro P...:

Você pode vir agora. D... e F... estão certos de que não passarei da meia-noite de amanhã, e creio que eles calcularam a minha sobrevida com grande exatidão.

Valdemar.


Recebi o bilhete meia hora depois de escrito. Quinze minutos mais tarde, eu estava nos aposentos do moribundo. Eu não o via há dez dias, e fiquei chocado com espantosa mutação operada em seu estado físico nesse breve intervalo de tempo. O seu rosto assumira a cor de chumbo. Os seus olhos estavam completamente destituídos de brilho e a sua magreza era tão extrema que a pele se rompera nas maçãs do rosto. A expectoração era excessiva e o pulso quase imperceptível. Todavia, ele mantinha, excepcionalmente, tanto a lucidez quanto alguma força física. Ele falou-me claramente e tomou, sem precisar de ajuda, alguns remédios paliativos. E, quando entrei na sala, vi que ele se ocupava em escrever num bloco de notas. Mantinha-se sentado na cama com a ajuda de vários travesseiros. Ao seu lado, estavam os doutores D... e F...


Depois de apertar a mão do senhor Valdemar, chamei à parte os médicos e lhes pedi que me expusessem detalhadamente o estado de saúde doente. Há dezoito meses, o pulmão esquerdo do paciente se achava em um estado semiósseo e cartilaginoso e, portanto, inteiramente inútil à realização das funções vitais. O direito, em sua parte superior, também estava parcialmente —se não completamente — ossificado, enquanto a região inferior tornara-se uma massa purulenta de tubérculos que se confundiam uns com os outros. Lá havia várias perfurações e, num determinado ponto, ocorrera a aderência permanente dos tecidos às costelas. Estes fenômenos existentes no lóbulo direito eram relativamente recentes. A ossificação havia se produzido com incomum rapidez, já que, há um mês, dela não havia sinal, e a aderência somente fora constatada nos últimos três dias. Além da tuberculose, suspeitavam os doutores de um aneurisma na aorta, mas os sintomas de ossificação tornavam difícil o diagnóstico. Os médicos comungavam da opinião de que a morte sobreviria à noite do dia seguinte (domingo). Eram agora sete horas da noite de sábado.


Quando deixaram a cabeceira do doente, e vieram conversar comigo, os doutores D... e F... já se haviam despedido definitivamente do moribundo. Não pretendiam voltar a vê-lo. Mas, a meu pedido, consentiram em examinar o paciente às dez da noite do dia seguinte.


Assim que partiram, falei francamente com Valdemar sobre a iminência de sua morte e, mais particularmente, sobre o experimento que já lhe propusera. Ele, mais uma vez, se mostrou disposto a submeter-se à experiência — e mesmo ansioso para levá-la a efeito —, pedindo-me que eu começasse imediatamente. Dois enfermeiros — um homem e uma mulher — estavam presentes, mas eu não me sentia plenamente autorizado a realizar um procedimento de tal natureza perante testemunhas não de todo confiáveis para o caso de um acidente súbito. Portanto, posterguei o experimento para as oito horas da noite no dia seguinte, oportunidade em que a chegada de um estudante de Medicina, de meu conhecimento — o senhor Theodore L...l —, livrou-me de toda preocupação. Minha intenção inicial era esperar os médicos, mas me vi induzido a iniciar prontamente os procedimentos, sobretudo em razão dos urgentes apelos de Valdemar e, secundariamente, pela íntima convicção de que não havia tempo a perder, já que ele, a toda evidência, estava a esvanecer.


O senhor L...l  atendeu amavelmente ao meu pedido, encarregando-se de tomar nota de tudo o que ocorreria. O que eu irei relatar agora provém, em sua maior parte, de seus apontamentos, quer de modo condensado, quer copiado verbatim[8]


Faltavam cinco minutos para as oito horas quando, depois de segurar-lhe as mãos, pedi-lhe que declarasse, o mais claramente possível, na presença de L...l, que era de sua livre vontade — a vontade de Valdemar — deixar-se mesmerizar no estado em que se encontrava. 


Ele respondeu, com uma voz fraca, mas perfeitamente inteligível:


— Sim, eu quero ser mesmerizado.


Logo em seguida, acresceu:


— Temo que você tenha adiado a experiência por muito tempo.


Enquanto assim falava, comecei a lhe dar os mesmos passes que, em ocasiões anteriores, lograram uma maior eficácia. Ele foi claramente influenciado pelo primeiro toque lateral da minha mão sobre a sua fronte. Todavia, embora eu empregasse todos os meus poderes, foi impossível obter efeitos significativos até uns poucos minutos depois das dez, momento em que chegaram os doutores D... e F..., conforme haviam prometido. Em poucas palavras, expliquei aos médicos qual era a minha intenção e, como não fizeram qualquer objeção, à assertiva de que o paciente já estava em agonia de morte, continuei, sem hesitar, alternando os passes laterais e verticais, enquanto concentrava a minha mirada no olho direito do paciente.


A esta altura, o seu pulso era imperceptível; a sua respiração, interrompida por estertores que irrompiam a cada meio minuto.


Tal situação se manteve quase inalterada durante um quarto de hora. Ao cabo deste interregno, porém, um suspiro perfeitamente natural, malgrado profundo, escapou do peito do moribundo, ao mesmo tempo em que a respiração estertorosa cessava — ou, melhor dizendo, os estertores deixavam de ser perceptíveis. Os intervalos entre as respirações permaneceram inalterados. As extremidades do paciente eram de uma frieza glacial. 


Cinco minutos antes das onze, percebi inequívocos sinais da influência mesmérica. O olhar vítreo fora substituído pela expressão de inquietante introspecção, somente observável em transe mesmérico, e que é absolutamente impossível de ser confundido com outro sintoma qualquer.  Com alguns rápidos passes laterais, fiz com que tremessem as suas pálpebras, à semelhança do que ocorre no limiar do sono, e, com mais alguns, induzi a que se fechassem completamente. Contudo, não fiquei satisfeito com isto, e continuei, vigorosamente, com o máximo esforço de minha vontade, as minhas manipulações, até obter a rigidez absoluta do adormecido, depois de colocá-lo na posição que me pareceu mais cômoda. As pernas estavam completamente estiradas. Os braços repousavam sobre a cama, a uma curta distância dos lombos. A cabeça havia sido ligeiramente erguida.


Ao terminar estes procedimentos, já era meia-noite. Pedi, então, aos cavalheiros que conferissem o estado em que estava o senhor Valdemar. Depois de alguns poucos exames, admitiram que ele se encontrava em uma situação de transe mesmérico extraordinariamente intocável. A curiosidade dos médicos estava vivamente excitada. O doutor D... resolveu passar toda a noite ao lado do paciente e o doutor F... despediu-se de nós, prometendo voltar ao amanhecer. O senhor L...l e os enfermeiros permaneceram conosco.


Deixamos o senhor Valdemar totalmente tranquilo até as três horas da manhã; aproximei-me dele e o encontrei no mesmo estado em que estava quando da saída do doutor F... Permanecia, assim, na mesma posição de outrora, e seu pulso era imperceptível. A sua respiração era suave — dificilmente detectável, a não ser pela aplicação do espelho aos lábios. Os olhos estavam fechados com naturalidade e as pernas continuavam tão rígidas e frias como o mármore. Mas, apesar disto, a sua aparência não se assemelhava à de morte.


Achegando-me ao senhor Valdemar, fiz um breve esforço para induzir o seu braço esquerdo a acompanhar o meu, que se movia suavemente sobre o seu corpo. Jamais obtivera, com ele, qualquer resultado satisfatório nesta modalidade de experimento. Mas, agora, para a minha surpresa, vi que o seu braço, ainda que levemente, acompanhava, sem dificuldade, o meu, e em todas as direções a que eu o induzia. Tomei, então, a resolução de arriscar um diálogo.


— Senhor Valdemar — disse-lhe —, você está dormindo?


Ele não me deu nenhuma resposta, mas percebi um tremor ao redor de seus lábios, e isto me animou a insistir na pergunta várias vezes. À terceira vez, o seu corpo inteiro se agitou num breve frêmito. As suas pálpebras se ergueram suficientemente a exibir uma linha branca nos olhos. Os seus lábios moveram-se lentamente para deixar escapar um sussurro quase inaudível:


— Sim, estou dormindo, agora. Não me acordem! Deixem-me morrer assim!


Apalpei os seus membros, constatando que estavam tão rígidos quanto antes.  O seu braço direito, como anteriormente, seguiu a direção de minha mão. Tornei a perguntar ao sonâmbulo:


— Senhor Valdemar, sente alguma dor no peito?


Desta vez, a resposta foi imediata, embora menos audível:


— Não sinto dor alguma. Estou morrendo.


Achei por bem não o incomodar por enquanto. Nada foi dito ou feito até que chegasse o doutor F..., um pouco antes da alvorada. Ele ficou extraordinariamente admirado por deparar-se com o paciente ainda vivo. Depois de lhe tomar o pulso e aproximar-lhe aos lábios o espelho, pediu-me para voltar a falar com o magnetizado. Então, perguntei:


—Valdemar, você ainda dorme?


Como antes, alguns minutos transcorreram antes que ele me respondesse. E, durante este intervalo, o moribundo parecia estar a recolher todas as suas energias no esforço de articular. Na quarta vez em que repeti a pergunta, ele me disse, com a voz muito débil, quase imperceptível:


— Sim, ainda estou dormindo. Morrendo.


A opinião — ou antes o desejo — dos médicos era a de que deveríamos deixar o senhor Valdemar no estado de aparente tranquilidade até que sobreviesse a morte, o que não tardaria muito, conforme a opinião geral. Todavia, resolvi fala-lhe mais uma vez, e lhe formulei a mesma pergunta.


 Enquanto eu falava, o rosto do magnetizado experimentou uma notável mutação. Seus olhos rolaram, suas pálpebras se ergueram, e as pupilas, voltadas para cima, desapareceram. A sua pele adquiriu uma tonalidade cadavérica, que se assemelhava mais ao papel branco que ao pergaminho. E as circulares manchas hécticas que, até então, se destacavam vividamente no centro de cada face, desapareceram subitamente. Eu uso esta expressão porque a rapidez de sua partida me trouxe à memória nada menos que a extinção do lume de uma vela a um simples alento de respiração. Ao mesmo tempo em que o lábio superior se retraiu, exibindo os dentes há pouco de todo velados, o maxilar inferior caiu com um ruído nitidamente audível, deixando a boca completamente aberta, e nela se insinuava uma língua inchada e enegrecida. Presumo que todos os presentes estavam acostumados aos horrores de um leito de morte, mas a aparência de Valdemar era tão horrenda, tão inconcebível, que todos recuaram a um só tempo, afastando-se daquele leito.


Tenho consciência de que a minha narrativa chegou a um ponto em que não posso esperar do leitor senão surpresa e incredulidade. Todavia, vejo-me no dever de continuá-la.


Já não havia no senhor Valdemar o mínimo sinal de vida.  E, chegados à conclusão de que ele estava morto, nós o deixamos aos cuidados dos enfermeiros. Mas percebemos um intenso movimento vibratório em sua língua. Este movimento perdurou por cerca de um minuto. Ao fim deste período, saiu, de seus maxilares, abertos e imóveis, uma voz que seria loucura descrever. Dois ou três epítetos poderiam ser-lhe parcialmente aplicados: eu poderia afirmar, por exemplo, que era um ruído áspero, fraturado, vazio. Mas a hediondez de todo cenário é indescritível, e pela simples razão de que jamais semelhantes sons transgrediram os ouvidos da humanidade. Havia, no entanto, dois elementos que eu, então, excogitei — e ainda excogito —, que poderiam muito bem servir de indicativo da peculiaridade daquela entonação, susceptíveis até de transmitir uma ideia de sua sobrenatural característica. Em primeiro lugar, a voz parecia chegar aos nossos ouvidos — pelo menos aos meus — a partir de uma imensa distância, ou de alguma caverna incrustrada nas profundezas da terra. Em segundo, aquela voz produziu em mim — e creio firmemente que não serei compreendido no que direi — a mesma impressão que produzem os corpos gelatinosos ou viscosos quando estes nos excitam o sentido do tato.


Referi-me tanto ao “som” quanto à “voz”.  Quero dizer que o som era de uma silabação claríssima, mas assim de uma maneira espetacular e impressionante. O senhor Valdemar falava, e evidentemente o fazia em resposta a uma pergunta que eu lhe havia formulado há poucos minutos.  Perguntei a ele — recordem-se disto — se continuava a dormir.  Mas, desta feita, ele disse:


— Sim... Não... Já estive dormindo. Mas, agora... agora... eu estou morto.


Nenhuma das pessoas ali presentes buscou encobrir ou negar o inefável, o tremendo terror que estas poucas palavras, assim proferidas, causaram em todos nós.  L...l, o estudante, caiu desmaiado. Os enfermeiros fugiram do aposento e foi impossível convencê-los a retornar. Quanto a mim, não cuidarei de transmitir ao leitor as minhas impressões. Durante uma hora, em silêncio, sem dizer palavra, nós nos esforçamos em reanimar L...l. Quando ele voltou a si, pudemos reexaminar o estado em que jazia o senhor Valdemar.


Permanecia ele, em todos os sentidos, tal qual dantes descrevi; mas o espelho, sob os lábios, não trazia indício algum de respiração. Procuramos, sem sucesso, sangrá-lo no braço, que, devo acrescer, não mais obedecia aos ditames de minha vontade. Esforcei-me, debalde, em fazê-lo acompanhar os movimentos de minhas mãos. O único indício da influência mesmérica residia, agora, no movimento vibratório de sua língua, sempre que eu lhe dirigia uma pergunta. Parecia que ele se esforçava por responder, mas a tanto lhe faltava a volição necessária. Ele permanecia insensível a qualquer indagação que não fosse feita por mim, embora eu me empenhasse em estabelecer um liame mesmérico entre o paciente e os demais companheiros presentes. Creio haver, com isto, indicado aos demais tudo o que era necessário à compreensão do estado do mesmerizado neste momento. Assim, chamamos de volta os enfermeiros e, às dez horas da manhã, deixei a casa, acompanhado pelos médicos e L...l.


À tarde, voltamos a ver o paciente. O seu estado permanecia o mesmo. Discutimos, então, acerca da conveniência e da possibilidade de acordá-lo, mas chegamos rapidamente à conclusão de que nada de bom para ele poderia disto resultar. Era evidente que, até agora, o processo da morte — ou o que se costuma chamar de morte — havia sido suspenso pela operação mesmérica. E parecia claro a todos nós que, se o acordássemos, obteríamos simplesmente o seu imediato — ou, pelo menos rápido —fenecimento.


Desde então, e até o fim da semana passada — um intervalo de quase sete meses —, íamos diariamente à casa de Valdemar, ocasionalmente acompanhados por médicos e amigos outros. Ao longo de todo este tempo, o mesmerizado continuou exatamente como descrevi. Os enfermeiros o assistiam continuamente.


Foi, finalmente, na última sexta-feira, que resolvemos acordá-lo, ou tentar acordá-lo. E foi — talvez — o nefando resultado dessa experiência que suscitou tanta discussão nos círculos privados, e fincou a origem de tantas opiniões que eu não posso deixar de qualificar como injustificáveis.


Para liberar o senhor Valdemar do transe mesmérico, empreguei os passes habituais. Estes, durante algum tempo, não produziram efeito algum. O primeiro indício de avivamento resultou de um decaimento parcial da íris. Observamos, como especialmente notável, que este decaimento da pupila foi acompanhado do profuso fluxo de uma secreção amarelada, que, escorrendo por sob as pálpebras, exalava um cheiro pungente e extremamente fétido. 


Alguém sugeriu que eu deveria exercer a influência magnética sobre o braço do paciente, como dantes.  Tentei fazê-lo, mas sem êxito algum. O doutor F..., então, exprimiu o seu desejo de que o paciente fosse novamente interrogado. Fiz o que este me pediu, nos seguintes termos:


— Senhor Valdemar, você pode nos dizer o que sente e quais são agora os seus desejos?


Imediatamente, os círculos hécticos ressurgiram em sua face. Sua língua tremeu — ou, melhor dizendo, rolou — violentamente na boca, embora as mandíbulas e lábios permanecessem rígidos como sempre. E, então, aquela voz tétrica, que já descrevi, irrompeu:


— Pelo amor de Deus... Depressa!  Depressa! Faça-me dormir... ou... depressa, acorde-me! Depressa! Eu já lhe disse que estou morto!


Eu estava extremamente aturdido e, por instantes, fiquei indeciso quanto ao que deveria fazer. A princípio, fiz um esforço para adormecer o paciente, mas, nisto fracassando, em razão de minha absoluta falta de vontade, mudei de tática, e empreguei todas as minhas forças no intento de despertá-lo. Logo me dei conta  de que teria êxito, ou, pelo menos, assim imaginei. E estou bem certo de que todas as pessoas presentes esperavam que o paciente de fato acordasse.


Mas é absolutamente impossível que qualquer ser humano estivesse preparado para o que realmente aconteceu.


Enquanto eu executava rapidamente os meus passes mesméricos, em meio às exclamações de “morto, morto!”, que literalmente explodiam da língua — e não dos lábios — do paciente, o seu corpo inteiro, repentinamente, num lapso de apenas um minuto — ou menos — se contraiu e se desintegrou, absolutamente pútrido, em minhas mãos. Sobre o leito, na presença de todos os circunjacentes, nada restou além de uma massa quase líquida e repugnante de abominável putrescência.



[1] O mesmerismo é a doutrina do médico e filósofo alemão Franz Anton Mesmer (1734-1815) sobre o magnetismo animal e o emprego do hipnotismo na cura de doenças. Mesmerizar (ou magnetizar), portanto, significa induzir o paciente ao transe hipnótico com fins terapêuticos.

[2] No momento da morte.

[3] Biblioteca Forense.

[4] Pseudônimo.

[5] Trilogia de peças teatrais (Wallensteins Lager, Die Piccolomini e Wallensteins Tod) do poeta e filósofo alemão Friedrich Schiller (1759 - 1805).

[6] Romance do escritor francês François Rabelais (1494 - 1553).

[7] John Randolph of Roanoke (1773 - 1833), político norte-americano.

[8] Literalmente. 


Comentários

  1. nossa, que contaço do Poe, já li e reli várias vezes porque é um conto inesquecível.Aqui é o Roger, autoproclamado Arquiduque das Letras, este título nobiliárquico é meu e ninguém tasca rss rss rss.

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  2. Gostaria de surgerir, que deixassem o fundo do texto em branco com a fonte negra, pois leituras muito prolongadas tendem causar enjoo da forma como está.

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    1. Muito obrigado, amigo. A sua sugestão será analisada com carinho.

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    2. Enjôo de quê? Pra ler é melhor assim. Cópia o conto e le no teu bloco de notas do celular então.

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    3. Caro Dominusbr, compreendo o desconforto. Porém, receio que descaracterize o site a inversão das cores. Acredito que o desconforto pode diminuir se aumentar o zoom da tela.

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  3. Tenso e muito bom! Achei que ele fosse reviver. Arrasando sempre nas traduções. Parabéns!

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