COX CITY - Conto Clássico de Horror - Guillaume Apollinaire

 

COX CITY

Guillaume Apollinaire

(1880 – 1918)

Tradução de Paulo Soriano

 

 O barão d'Ormesan levou, rapidamente, à mão na cicatriz, que eu acabara de perceber em sua cabeça, e puxou o cabelo para trás, para cobri-la.

— Eu devo estar sempre muito bem penteado — disse-me —, senão se percebe, claramente, essa mancha — suja e lívida — no meu couro cabeludo. A todos causa a impressão de que sofro de descamação... Essa cicatriz não é recente. Remonta à época em que eu fui fundador de uma cidade… Tal foi há cerca de quinze anos, na Colúmbia Britânica, Canadá… Cox City!… Uma cidade de cinco mil almas… Seu nome Cox veio de Chislam Cox, um camarada meio cientista, meio aventureiro. Ele propiciou a corrida àquela parte das Montanhas Rochosas — virgem à época — onde permanece, até os dias de hoje, Cox City.

Os mineiros foram recrutados em quase toda parte: Quebec, Manitoba, Nova York. Foi nesta última cidade que conheci Chislam Cox.

Eu estava lá há cerca de seis meses. Mas devo admitir que não ganhava sequer um centavo e morria de tédio.

Eu não morava sozinho. Vivia com uma alemã muito bonita, cujos encantos faziam sucesso... Nós nos conhecemos em Hamburgo. Eu havia me tornado seu empresário, por assim dizer.

Seu nome era Marie-Sybille — ou Marizibil, para falar como as pessoas de Colônia, sua cidade natal.

 

Preciso acrescer que ela me amava loucamente? De minha parte, eu não sentia ciúmes. No entanto, essa vida preguiçosa pesava mais sobre mim do que você imagina. Eu não tenho alma de rufião. Mas, em vão, tentei empregar meus talentos naquele trabalho...

Certo dia, num saloon, deixei-me levar por Chislam Cox, que, encostado ao balcão, falava alto e exortava as pessoas a segui-lo até a Colúmbia Britânica. Dizia conhecer um lugar onde abundava o ouro.

Misturados em seu discurso estavam Cristo, Darwin, o Banco da Inglaterra e — Deus me dane se eu sei por que motivo — a Papisa Joana. O tal de Chislam Cox foi muito convincente. Alistei-me em sua tropa com Marizibil — que não queria me deixar — e partimos.

Comigo, não levei parafernália alguma de marinheiro, senão equipamentos de bar e muita bebida: uísque, gim, rum etc., cobertores e balanças de precisão.

Nossa viagem foi muito penosa. Todavia, assim que chegamos ao lugar onde Chislam Cox queria nos levar, construímos uma cidade de madeira, batizada com o nome de Cox City, em homenagem a quem nos guiou. Abri o meu bar, que logo ganhou intenso movimento. O ouro era realmente abundante e eu participava dos negócios. Muitos dos mineiros eram franceses ou franco-canadenses. Também havia alemães e gente de língua inglesa. Mas o elemento francês predominou. Mais tarde, chegaram mestiços franceses de Manitoba e um grande número de piemonteses. Alguns chineses também vieram. Assim, depois de alguns meses, Cox City tinha cerca de cinco mil habitantes, dos quais apenas dez eram mulheres...

Eu havia estabelecido uma posição invejável naquela cidade cosmopolita. Meu saloon estava florescendo. Eu o chamei de Café de Paris e este nome agradava a todos em Cox City.

 

*

 

Os grandes resfriados se fizeram sentir. Foi terrível. Cinquenta graus abaixo de zero é uma temperatura deplorável. Então, percebeu-se, com terror, que Cox City não tinha provisões suficientes para enfrentar o inverno. Não havia comunicação possível com o resto do mundo. Era a morte em iminente perspectiva. Os suprimentos logo se esgotaram e Chislam Cox fez uma proclamação comovente, na qual nos deu a conhecer todo o horror de nossa situação.

Ele nos pediu desculpas por ter nos levado à morte, mas, apesar de seu desespero, encontrou uma maneira de falar sobre Herbert Spencer e o falso Smerdis. O final desse evento foi algo terrível: Cox convidou a população para se se reunir, na manhã seguinte, na praça que havia sido cuidadosamente instalada no centro da cidade. Todos deveriam trazer uma arma e, a um sinal, cometer suicídio. Tudo para escapar da tortura do frio e da fome.

Ninguém protestou. Nas circunstâncias, parecia altiva aquela solução. Até mesmo Marizibil, em vez de choramingar, me disse que ficaria feliz em morrer comigo. Distribuímos o álcool restante. Na manhã seguinte, caminhamos de braços dados até a praça mortuária.

Mesmo que eu vivesse cem mil anos, jamais poderia esquecer o espetáculo daquela multidão de cinco mil pessoas envoltas em casacos e cobertores. Cada um tinha um revólver na mão e... — juro! — todos os dentes batiam, batiam!

Chislam Cox se elevou sobre nós, empoleirando-se num barril. De repente, levou o revólver à testa. O tiro disparou. Era o sinal: enquanto Chislam Cox caía, morto, de seu barril, todos os habitantes de Cox City — inclusive eu — estouravam os seus miolos. Que lembrança terrível! Que tema para a meditação essa unanimidade no suicídio! E que frio terrível fazia!...

Eu não estava morto, senão atordoado. Logo me levantei. Havia apenas uma ferida — a rigor, um inchaço — que me causava grande sofrimento. Aquela ferida — cuja cicatriz levarei comigo pelo resto da vida — me fazia lembrar que eu tentara me matar. E por que eu estava sozinho?

 — Marizibil! — gritei.

Ninguém me respondeu. Com os olhos arregalados, tremendo de frio, permaneci muito tempo a olhar para aqueles mortos. Todos exibiam um ferimento voluntário na testa.

Então, senti uma fome terrível, que torturou meu estômago. As provisões haviam-se esgotado. Nada encontrei nas casas onde procurei. Aterrorizado e hesitante, joguei-me sobre um cadáver e devorei seu rosto. A carne ainda estava quente. Eu me saciei sem nenhum remorso. Então caminhei pela necrópole, pensando em como fugir dali. Armei-me, agasalhei--me cuidadosamente e saturei-me com todo ouro que poderia carregar. Veio-me, então, a preocupação com a comida. O corpo feminino é mais farto em gordura; sua carne, mais macia. Encontrei um corpo de mulher e lhe cortei as duas pernas. Esse trabalho me levou mais de duas horas. Mas encontrei dois presuntos, que pendurei ao pescoço com duas tiras. Somente então percebi que havia cortado as pernas de Marizibil. Contudo, minha alma de antropófago mal se comoveu. Eu estava especialmente ansioso para escapar dali. Escapei e, por milagre, encontrei o acampamento de um lenhador, exatamente no dia em que minhas provisões se esgotaram.

A ferida que eu fizera em minha cabeça logo sarou. Mas a cicatriz, que cuidadosamente escondo, me faz lembrar constantemente de Cox City, a necrópole boreal, e de seus habitantes congelados, preservados pelo frio na forma em que caíram — armados e feridos —, com os bolsos repletos de um ouro inútil: o ouro pelo qual morreram. 

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