NECRÓPOLE AQUÁTICA - Conto de Terror - Maycon Guedes
NECRÓPOLE AQUÁTICA
(Conto vencedor do concurso de fantasia da plataforma Scriv)
Maycon Guedes
A
madeira range, e o nosso barco de pesca vai de encontro à espessa neblina,
naquele mar tenebroso que até então calmo era. Roberto, meu companheiro de
pesca, que não era nada cético, como de costume, preparava o arpão e a grande
rede, sempre com os ouvidos cobertos de cera, acreditando que dessa forma não
cairia nos encantos do canto das sereias. Eu, por outro lado, preferia deixar
meus ouvidos livres para serem penetrados pelas melodias de Paganini, que tocava na vitrola dentro da cabine do nosso barco.
Excedendo um pouco a velocidade, rasgamos a misteriosa neblina com nosso barco;
enquanto isso, Paganini destruía as
cordas do violino, virtuosamente ágil, presenteando meus tímpanos com sua
sonoridade sombria; um deleite para meus ouvidos - orgasmo sonoro!
Eu e meu parceiro de pesca sabíamos dos
boatos envolvendo as misteriosas neblinas que, segundo os moradores da região,
tal neblina era responsável pelos desaparecimentos de barcos e pescadores,
sendo que, muitos deles, poderiam ter sido levados para o fundo do mar por
malditas sereias. Avistamos a neblina, mas não mudamos nosso curso; seguimos,
sem medo, pois ali, exatamente naquele espaço onde a neblina se apresentava,
era o melhor ponto para se pescar. Se pudéssemos prever o futuro, com certeza teríamos
mudado nosso curso.
Enfim, atravessamos a nébula maldita por
águas agitadas, chegando do outro lado, num mar calmo e sem nenhum sinal de
neblina. A atmosfera presente naquele local era assustadora. Voltei a encher
minha caneca de cerveja, já que boa parte do delicioso líquido encorpado, que
exalava o exuberante perfume do lúpulo, tinha derramado com a recente agitação;
e na cabine, voltei a ajustar a agulha da vitrola para tocar, mais uma vez, o
celeste Violin Concerto No. 4 de Paganini.
Diante de nós, aquele fim de tarde nublada
demonstrava ter pressa de escurecer; já na retaguarda, enxergávamos cada vez
mais distante a neblina que acabamos de atravessar. Eu sentia estar em outro
mundo; eu sentia que não deveríamos estar ali; eu sentia medo! A famosa lenda
de que Paganini teria feito pacto com
o diabo para atingir tamanha perfeição ao tocar seu instrumento, agora, parecia
fazer sentido para mim; sua melodia combinava perfeitamente com a escuridão que
preenchia o mar, enquanto a Lua surgia, nefastamente no céu. Aquela calmaria
misteriosa me dava arrepios; o ar congelante me assustava; o reflexo da Lua no
mar me assustava; Paganini… também me
assustava!
Finalmente chegou o momento de puxar a rede.
Eis a surpresa! Despejamos uma enorme quantidade de peixes no interior do
barco, e então, avistamos um braço; na verdade, um belíssimo braço em meio ao
cardume. Com rapidez, afastamos todos aqueles peixes que formavam uma pequena
montanha, deixando à mostra aquele ser voluptuoso estirado no chão de madeira
molhada. Tínhamos capturado, acidentalmente, uma sereia! A criatura mais linda
que meus olhos já viram. Não sei bem como ela foi parar ali, na nossa rede, um
ser que, acredito eu, deve ser dotado de inteligência. Deveríamos estar
enfeitiçados com seu belo canto, mas, aparentemente, foi ela quem se encantou
com o som de Paganini e veio parar
direto na nossa armadilha.
Inofensiva? Não sabíamos; tudo corria bem
até aquele momento; e ficamos ali, Roberto e eu, apreciando cada detalhe de seu
corpo. Estaríamos enfeitiçados? Eu também não sei responder, só sei que não
conseguia desgrudar os olhos dela. Os fios de seus cabelos pareciam algas
marinhas, de cor escuro e tons esverdeados; seu rosto era delicado, convidativo
para um beijo, e eu a beijaria nem que fosse o beijo da morte; ela tinha olhos
brilhantes, úmidos, e de todas as cores; era como se a cada movimento sua íris
mudasse de cor; os olhos mais lindos; tão lindos que eu poderia beijá-los
intensamente, deslizando minha língua por toda a sua esclera umedecida. Não
pude deixar de observar seu pescoço, sua clavícula, seus seios; tudo em
perfeita forma para me seduzir. Toquei a pele de seu braço; era extremamente
macio; de uma maciez que nunca vi igual. E, como não poderia ser diferente,
admirei sua cauda repleta de formosas escamas. Não fomos enfeitiçados pelo seu
canto, mas poderíamos estar enfeitiçados por toda aquela beleza surreal.
Já que não fomos atacados, decidi ajudá-la.
Ela parecia estar desorientada, talvez machucada. Tentei fazer contato,
perguntando se ela entendia o que eu dizia; não obtive resposta; ela apenas me
encarava com aquele olhar sonolento. Lentamente ela estendeu sua mão e tocou
meu rosto, deixando minha pele arrepiada com aquele toque suave e gostoso. Esse
gesto poderia ser um truque; uma tática para me imobilizar e me atacar; mas eu
não me importava; eu morreria facilmente por aqueles mínimos segundos de prazer
proporcionado pelos toques de seus dedos. Seu olhar era penetrante, e eu sentia
que, a cada segundo, meu corpo estava cada vez mais próximo ao dela.
Meu companheiro de pesca ficou de longe, só
observando, com os ouvidos ainda cobertos de cera, temendo o pior. Ao notar que
eu estava me entregando aos encantos da criatura, Roberto se aproximou
segurando uma lança de ponta afiada; objeto perfeito para perfurar
dolorosamente aquela pele macia e delicada. Eu percebi que Roberto cobria o
nariz com um pano, resmungando do forte cheiro exalando da sereia; todavia, eu
não me incomodava, e sim, me excitava com aquele aroma que atiçava cada vez
mais minha lascívia. Eu descreveria aquele perfume, que era repugnante para
Roberto, como O Feromônio dos Deuses,
capaz de proporcionar orgasmos apenas pelo olfato - que cheiro incrível e
sedutor era aquele?!
O modo como a criatura me encarava, e me
desejava, era recíproco. Perdi-me diante de seu encanto e só queria me entregar
a ela. Com meus lábios, toquei os seus, extremamente frios e viscosos, e aquele
forte aroma, deslizando suavemente pelas minhas narinas, se tornava cada vez mais
intenso e prazeroso. A sensação era única e muito diferente; na verdade,
duplamente diferente para mim, já que seria a primeira vez que eu me
relacionaria com uma sereia, e também, seria a primeira vez que eu me
relacionaria com uma mulher. Eu estava muito confusa, de fato, mas eu também
estava amando aquela sensação.
Quando o clima começou a ficar mais intenso
- e eu já quase nua - ouvi Roberto gritar. Tentei guiar meus olhos para onde
ele estava; foi difícil, pois o tesão tomava conta do meu corpo que ardia
libidinosamente, mas, com muito esforço, livrei-me daquele encanto maligno.
Entrei em desespero quando vi o sangue de Roberto disseminado pela madeira do
barco; seu corpo se debatia no chão num frenesi de profunda agonia, e em sua
boca, algo pontiagudo e envergado tinha atravessado sua mandíbula, bem do lado
direito, do mesmo modo que o anzol captura um peixe (a inversão de uma pesca),
era a vez de um humano ser fisgado por algo que estava no fundo do mar. Roberto
se debatia como um peixe fora d’água, com o objeto metálico rasgando sua
mandíbula e destroçando seus dentes a cada movimento brusco; em sincronia com
seu corpo debatendo, nosso barco era pintado de vermelho. Ficando mais fadigado
a cada segundo, Roberto desistiu de lutar e foi finalmente arrastado para fora
do barco, caindo no mar, ainda gritando, clamando socorro.
Pulei no mar; não podia abandonar meu
companheiro de pesca; mas, a escuridão me impedia de enxergar algo lá embaixo,
então, retornei à superfície. Foi quando eu vi um novo ser, assustadoramente
belo, assim como a sereia que ainda estava em meu barco. Diante de mim,
enquanto eu boiava na água, surgiu aquele homem de rosto e corpo muito bem
definidos e, mesmo com a escassa iluminação proporcionada pelo barco, era
possível visualizar suas veias pulsando por todo seu corpo; um corpo esbelto e
estranho; tal criatura, um tritão, era o responsável por "pescar" meu
amigo Roberto. Ele me fitou por alguns segundos antes de tentar me atacar. Fui
salva pelo arpão que atravessou a região de sua cintura, quase me acertando; em
seguida, a criatura estava sendo puxada para dentro do barco, graças a corda
presa ao arpão, elevando o tritão que batia sua cauda espinhenta com tremenda
força, dilacerando a lateral do barco deixando enormes rachaduras na madeira.
Eu tinha certeza de que fui salva pela
sereia, de modo que, retornei ao barco e me deparei com uma cena extremamente
desagradável. Toda a volúpia dos belos lábios da sereia, ao qual eu estava
encantada, tinha agora um aspecto mórbido e grotesco durante a cena que
acontecia diante dos meus olhos. O tritão estava sendo devorado diante de mim,
sendo engolido por uma enorme boca que se abria com tremenda elasticidade.
Enquanto a cabeça do tritão se mantinha dentro da enorme boca da maléfica sereia,
que fazia movimentos de mordidas, emitindo o som do crânio sendo triturado, ela
fixava o olhar em mim, sem parar um segundo sequer de mastigar, se deliciando e
sugando todo o sangue do ser que era da sua mesma espécie, segurando-o firme
pelos ombros, enquanto ele continuava debatendo sua cauda com muita força -
paralisada, eu observava, ao vivo e a cores, Saturno Devorando um Filho, de Goya,
bem na minha frente. Eu podia sentir sua agonia através dos gritos que ecoavam
abafados de dentro daquela enorme boca hedionda.
Eu não conseguia entender por qual motivo a
sereia me salvou, precisando matar um ser de sua mesma espécie para me
proteger. Todos sabemos que as sereias seduzem os pescadores; mas o que
aconteceria se uma sereia encontrasse uma mulher? Pois bem, ela me encontrou e,
do mesmo modo que eu me senti atraída por ela, ela parecia sentir o mesmo por
mim. Mesmo com a recente cena repugnante, que eu não consegui tirar facilmente
da minha mente, eu ainda desejava, e muito, aquela criatura lubrificada pelas
águas do mar misterioso. Para concluir esse meu relato, relatarei, agora, os
momentos mais bizarros que meus olhos já presenciaram.
Logo após devorar a cabeça do tritão, a
atraente criatura mergulhou no mar, proporcionando, de suas cordas vocais, a
mais bela das canções que o ouvido humano poderia desfrutar. Meu corpo
regozijava de prazer com aquela voz e, automaticamente, eu caminhava em direção
a ponta do barco, pronta para saltar e cair nos braços da criatura. Saltei e
fui convidada a me acomodar em seus braços, que me envolviam fortemente e logo
me carregaram para as profundezas do mar. Em meio ao breu profundo do oceano,
já quase sem fôlego, recebi o beijo intenso da sereia que durou alguns
segundos. O beijo foi tão intenso que me fez desfalecer, e quando voltei ao meu
estado normal, vislumbrei a imensidão de um novo mundo; um mundo de trevas
marítimas escondido nas profundezas do oceano, ou devo chamar de profundezas do
inferno?
Acordei no reino das sereias, onde eu podia
enxergar todo o horror, nitidamente, sem me preocupar com a falta de oxigênio,
que não era mais problema para mim. Eu não sei o que a sereia fez comigo após
aquele beijo, só sei que eu não estava em perfeito estado para pensar a
respeito. Nas profundezas, vaguei sem rumo, desnorteada, observando as enormes
conchas do mar que enfeitavam toda aquela excêntrica região. Era surreal o
tamanho daquelas conchas, duas vezes maiores do que eu, de cor escura, todas
elas enfileiradas e pousadas sobre uma vastidão de terra firme, não areia,
terra, muita terra! Movida pela curiosidade, não resisti e bati forte em uma
das conchas enquanto eu nadava ligeiramente. A sinistra concha se abriu,
lentamente, emitindo um barulho ensurdecedor que não tinha pressa de acabar;
muito diferente da delicadeza do canto da sereia, aquilo era o canto do diabo.
Ao se abrir, cessando o barulho infernal, a enorme concha trevosa exibia o que
tinha em seu interior; um humano! Vivo! Conectado por vários cabos com um
aspecto gelatinoso, cravados por todo o corpo nu do infeliz que ali dentro
agonizava.
No interior das diversas conchas que
avistei, estavam todos os pescadores desaparecidos. Está explicado o segredo
que mantém belas e jovens as sereias; as conchas, de alguma forma que não sei
explicar, conservam aqueles corpos em seu interior, mantendo o sangue correndo
em suas veias para servirem de alimento para as horripilantes criaturas daquele
mar trevoso. Imagino há quanto tempo os pescadores capturados sofrem daquela
forma, vivendo nas profundezas, perpetuamente sepultados naquela necrópole aquática,
apenas com o intuito de proporcionar sangue fresco para as sereias continuarem
esbeltas.
Você pode não acreditar em nenhuma dessas
palavras, mas é de extrema importância que você compartilhe esse relato com
todas as pessoas da região, principalmente os pescadores; afinal, se você está
lendo isso, significa que encontrou a mensagem na garrafa que enviei, na
primeira oportunidade que tive de subir à superfície. Estou alertando todos
vocês, e espero que me levem a sério; evitem a neblina; evitem pescar nessa
região. O aviso foi dado, e espero não encontrá-los por aqui, pois não posso
mais controlar meus novos instintos, assim como não controlei ao encontrar a
última embarcação que ignorou a neblina, deixando o navio ancorado bem aqui, em
meu novo lar, proporcionando, para mim e para as minhas amantes, centenas de
desafortunados de sangue quente e fresco.
UAUUUUUUU
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