A CASA DA RUA PAIM - Conto de Terror - Cauê Costa


 

A CASA DA RUA PAIM

Cauê Costa

 

— Sim, Christopher. Eu sei! Você já me falou isso um milhão de vezes. Toda vez que passamos nessa rua, você aponta para essa casa e conta a história dos seus avós que moraram aqui. — Essas foram as palavras de Júlia, logo após seu namorado tentar lhe contar a arrepiante história de sua família.

 Desciam a Rua Paim em uma tranquila caminhada no fim da tarde de um sábado agradável de agosto.

 Namoravam a menos de um ano, após se conhecerem em um clube de leitura local. Júlia, uma mulher de vinte e um anos, encarava o homem charmoso de vinte e três que estava sentado exatamente de frente para ela no meio do círculo de leitores, todos com suas respectivas edições de "O Iluminado" nas mãos, inclusive os dois.

 Ambos eram bem-humorados; por isso, Christopher não ficou chateado com a indelicadeza da namorada.

 — Então já sabe o final da história — disse ele por fim, sorrindo.

 — Impossível não saber! — ela retrucou, áspera.

 Ele parou, fazendo-a parar também. Estavam de mãos dadas, logo à frente da casa.

 — O quê? — ela perguntou, franzindo a testa.

 — Então me conta — disse ele, com uma expressão brincalhona. — Me conta o final.

 Ela revirou os olhos e respirou fundo. Tudo estava indo bem naquele dia. Tudo bem, até ele decidir começar com isso.

 Haviam acordado cedo para tomar café da manhã juntos em uma cafeteria no centro da cidade. Depois do almoço, passearam pelo parque de mãos dadas, cogitando fazer um piquenique, mas isso teria que ser planejado antes. Passaram no shopping, que ficava no caminho para casa, e compraram "mantimentos" para virar a noite assistindo séries. E agora, no fim da tarde, passeavam pelo bairro para relaxar a mente. Ideia dele, claro. Ela não aguentava mais andar por aí o dia todo, mas ele a convenceu, prometendo que teria uma surpresa caso ela fosse.

 — Seu avô morreu — ela começou a dizer, querendo acabar logo com isso. — Morreu enquanto dormia. E justo nessa noite, por algum motivo, sua avó decidiu dormir na sala. E quando chegou no quarto na manhã seguinte, ele havia morrido. Depois disso tudo, ela resolveu voltar para o interior e, aparentemente sem razão alguma, se afastou de toda família.

 — Nossa… quantas vezes eu te contei isso? — ele perguntou, abrindo um sorriso fofo. Mas agora, por algum motivo, estava mais para detestável.

 Júlia encarou os olhos do namorado, forçando ainda mais a testa. Sentia algo estranho. Algo estava errado, mas não tinha certeza. Sempre que seu namorado entrava no assunto dos avós, parecia diferente, como uma segunda personalidade que surgia. Ficava obcecado, e naquele momento sentia querer deixá-lo ali, sem mais nem menos.

 — Mas… dessa vez é diferente, meu amor — ele continuou, contendo um pouco o riso. — Dessa vez tem um motivo…

 Ele se aproximou um pouco mais.

 — Sei como é ouvir isso o tempo todo, eu ouço essa história em toda reunião de família desde… desde que isso tudo aconteceu. Ouço toda vez, mesmo sendo, de certa forma… o mais envolvido.

 O rosto de Júlia se transformou de desinteresse para curiosidade somente com essas palavras. E ela nem precisou perguntar para que ele respondesse.

 — Pois é, tem uma parte da história que você não sabe — disse, abaixando o tom de voz e acariciando a mão da namorada. — Na verdade, ninguém da família sabe.

 Júlia, que já não estava com a testa franzida, se sentiu mal após perceber como aquilo parecia ter um peso para seu namorado, e que, até então, ela não dava muita importância. Porém, não era só isso. Outra coisa também havia acontecido, algo a deixara estressada de repente ao descer por aquela rua. Talvez fosse porque estava perto de menstruar, ela pensava. Mas não, não fazia sentido. Tudo estava bem o dia todo. Por que só agora, neste momento e lugar especificamente, parecia ter algo estranho acontecendo?

 Um interesse genuíno surgiu em seu rosto. Abraçou o namorado, pulando em seus braços repentinamente e beijou-o na boca.

 — Então, se eu souber, vou ser a única? — ela perguntou, finalmente.

 — Huum! — afirmou ele, retribuindo o beijo. — Mas se terminar comigo, vou ter que MATÁ-LA!

 Os pombinhos riram, se abraçaram e se beijaram por alguns minutos, conversando baixinho entre eles e esquecendo a casa por um momento.

 — Tudo bem, o segredo morre comigo. Eu juro! — Ela recomeçou, descendo dos braços do namorado.

 — Já que você jurou… — ele respondeu, ainda rindo. Em seguida, a levou para se sentarem juntos no meio-fio, lado a lado, de costas para a casa.

 — Mas, amor — disse ela. — Por que não contou para sua família?

 Ele encarou apaixonadamente seus olhos e ajeitou seu cabelo para trás da orelha em um movimento romântico, romântico como sempre era. Virou-se novamente para frente e suspirou, relaxando os ombros e olhando para baixo.

 — Porque minha avó me fez prometer. — disse por fim. — Prometer que não colocaria a família no meio disso. Foram as últimas palavras dela, antes… de sair da cidade.

 

 O fim da tarde estava, agora, mais evidente. Christopher e Júlia olhavam preguiçosamente o céu alaranjado e sentiam o vento refrescante ficando mais forte e gelado aos poucos.

 — Pode se abrir comigo, meu amor — disse Júlia, pousando sua mão sobre a perna do namorado.

 Christopher se levantou do meio-fio e acocorou-se de frente para ela.

 — No dia — ele prosseguiu, após um suspiro — eu fui o único pra quem minha avó ligou. Ela me contou o que havia acontecido e eu não perdi tempo para chegar aqui. Literalmente aqui, nesta casa. Ainda me lembro de tudo nitidamente.

 Júlia acariciou seu rosto e, depois, desceu suas mãos para segurar carinhosamente as dele.

 — Sabe… ela não estava chorando, não parecia muito triste. Mas eu sabia que estava. Eu conseguia sentir! E quando… quando ela disse que iria embora, eu…eu… — Lágrimas escorreram. — Você não tem ideia, amor, foi uma memória muito…

 — Traumática? — ela tentou ajudar.

 — Forte! Não acho que tenha chegado a ser um trauma.

 A namorada o olhava com calma e empatia.

 — Eu era muito próximo do meu avô — ele continuou. — Consegue imaginar um sujeito realmente detestável? — ensaiou um sorriso. — Era uma boa pessoa, claro. Mas, como todos nós, tinha defeitos. Ele gastava compulsivamente todo seu dinheiro. Vivia reformando a casa, comprando roupas chiques, indo para lá e pra cá na cidade.

 Júlia sorriu delicadamente, e ele também.

 — Essa foi a ruína dele. — Christopher ainda dizia. — Ou era isso que achávamos. Até eu, que sempre estive com ele, pensei assim por um tempo. Mas, eu acho que agora entendo o velho. — Limpou as lágrimas e, em seguida, tirou os olhos da moça e colocou-os na casa. Algo aconteceu. Foi quase imperceptível, mas suas pupilas dilataram. — Se não fosse por essa maluquice dele, essa casa não seria tão bonita.

 Júlia se virou para trás e olhou.

 — É linda mesmo! — ela confirmou.

 De fato, era belíssima. As paredes da frente tinham um tom de marrom café expresso, o piso era liso e acinzentado, e em ambos os dois andares, as janelas de formato retangular em pé com bordas pretas não deixavam o interior ser tão escuro. Do lado de dentro, sem dúvida, era ainda mais bonito. Christopher podia imaginar os cômodos, a escada de madeira clara que subia em leque, as portas duplas que davam para a varanda, as estátuas caras que o avô comprara, o jardim de inverno com todas as plantas, o móveis…

 — Vamos nos mudar para cá! — afirmou ele, repentinamente.

 — O quê? — indagou Júlia, se virando de volta para ele com o olhar confuso.

 — Vamos nos mudar o mais rápido possível!

 — Mas por que isso do nada?

 — Não foi do nada, meu bem. Eu venho pensando nisso já faz um tempo.

 — E por que não falou comigo?

 — Estou falando agora.

 — Mas, Christopher…

 — Imagine só. Eu e você nesta casa, deixando-a cada vez mais bonita. Decorando e redecorando.

 — Não sei, amor. Não sei se gosto da ideia de morar em uma casa onde alguém já morreu…

 — Ah, pelo amor de Deus! — disse ele, arrogantemente, enquanto se levantava.

 Júlia o olhou confusa e, se sentindo atacada, levantou-se também, tão rápido quanto ele.

 — Como é? — disse ela. A raiva estava voltando, trazendo também à tona todos os defeitos daquele fedelho.

 — Por favor, né Julia? — ele continuou. — Está com medo de fantasmas?

 — Claro que não. né, Christopher!

 — Então por que não quer morar comigo em uma casa linda como essa? Seria perfeito!

 — Você não tá pensando direito né?! — ela afirmou, ficando um pouco exaltada. — Precisa lembrar que não é simples assim! Não tem nenhuma placa de "vende-se" por aqui, e não sabemos quanto ela custa. Uma casa como essa sem dúvida está fora do nosso orçamento!

 — Júlia, eu… — ele tentou interromper.

 — E outra, eu não estou com medo de fantasmas. Simplesmente não gosto da ideia de me mudar aleatoriamente para uma casa onde alguém morreu enquanto dormia. Tudo isso porque o homem que eu pensava ser o amor da minha vida até o momento, simplesmente não consegue esquecer A PORRA DO PASSADO!

 Christopher sentiu-se irritado, muito irritado, um sentimento não familiar para ele. Então, como última tentativa, buscou se acalmar e aproximar-se da mulher. Talvez a oxitocina os ajudasse com o estresse.

 — Meu bem… — ele começou, calma e pausadamente. — Essa casa é minha por direito!

 — Sua por direito? De onde você tirou isso? — ela estava começando a aumentar a voz, e isso o irritava ainda mais. — Desde quando você quer tanto essa casa? E por quê?

 Ele respirou fundo.

 — Eu venho nessa casa desde os meus cinco anos de idade, eu brinquei em cada canto, e conheço cada centímetro quadrado desse lugar. Eu era o favorito do meu avô, entre todos. Ele gostava mais de mim do que da minha avó! — estava a menos de trinta centímetros dela, seu rosto transmitia uma espécie de obsessão. — Se fosse para a casa ficar com alguém, com quem você acha que seria?

 — Christopher… qual o seu problema?

 Ele respirou ainda mais fundo.

 — Júlia, por que você acha que eu fui o primeiro a saber? Por que acha que a minha avó entrou em contato comigo e depois sumiu? — um rosto de maluco…

 Júlia deu alguns passos para trás e franziu a testa novamente, mas dessa vez não era raiva, era medo.

 — Por quê? — ela perguntou, esperando qualquer resposta. Porém, ouviu a única frase da qual não estava preparada.

 — Porque meu avô mandou!

 — O…o quê? — um sentimento de pavor e negação a atingiu.

 Christopher caminhou lentamente até a calçada da casa, de costas para a namorada, a qual o encarava com olhos fixos, sem ao menos piscar. Uma questão de sobrevivência.

 — Nós éramos muito próximos… — ele falou. — Ninguém o amava como eu. Então ele fez o óbvio e me chamou para cuidar da casa dele.

 Aceite, Júlia. Esse não é seu namorado!

 — Exatamente por isso, meu bem, que essa casa é minha por direito! Eu sinto ela me chamando. Cada dia está mais linda! Cada dia se destaca mais das outras!

 "Nós vamos nos mudar, porque eu tenho direito de ter essa casa, e porque eu preciso mantê-la assim! Mantê-la linda."

 — E com que dinheiro você pretende fazer isso? — indagou Júlia.

 — Eu não. Nós! Nós vamos dar um jeito, meu amor. Vamos dar um jeito juntos.

 — Mesmo que isso te faça falir? — perguntou asperamente a namorada do rapaz.

 — Sim! Mesmo que eu também morra! Vou cuidar desta casa, pois é tudo que eu mais quero.

 — É o que seu avô queria!

 Christopher respirou fundo novamente.

 — E qual o problema? — disse ele, virando-se para ela, agora andando em sua direção. — É a minha linhagem. Sangue do meu sangue.

 A mulher estava assustada. A noite já estava caindo. Via aquele homem que cerca de 20 minutos atrás chamava de namorado, andando em sua direção. A escuridão tampava algumas partes do rosto, o deixando intimidador, maníaco, possuído. Sem dúvida alguma, não era o mesmo que conhecera.

 — Amor… — ele continuou, tentando voltar a ser gentil. — Achei que você gostaria da surpresa…

 — Que surpresa? — retrucou ela. O medo intensificara sua raiva. — Me mostrar que na verdade você é louco?

 — A casa — disse ele, seco. — Eu já comprei a casa.

 Repentinamente, Júlia pareceu perder todo medo que sentia. Os dois estavam juntando dinheiro por meses para seus planos como casal. E agora, ele provavelmente gastara tudo com essa maldita casa. Essa era a surpresa?

 — VOCÊ FEZ O QUÊ? — Ela gritou, dando alguns passos à frente. — Qual a porra do seu problema, seu imbecil?

 — CALA A BOCA! — ele gritou dessa vez, muito mais alto que ela.

 A mulher havia arregalado os olhos e se calado instantaneamente, voltando a dar alguns passos para trás. Não tinha mais dúvida de que algo estava errado. Seu namorado era gentil e doce, o homem mais carinhoso que ela já conhecera. E agora, ele parecia outra pessoa. Tipo aqueles brutamontes que não conseguem ouvir um "não". Parecia… louco.

 — Eu pensei — ele continuou andando na direção da mulher, que agora se tornara uma estátua — que você ficaria feliz com a surpresa. Pensei que gostaria. Por isso te chamei para dar uma volta nesse bairro. Achei que ficaria do meu lado e me apoiaria independentemente de qualquer decisão que eu tomasse… — ficava cada vez mais próximo. — Mas, aparentemente, eu estava errado. Me enganei. Porque você… você é igual a ela!

 Droga, Júlia. Está em Pânico? Por que não corre?

 — Ela… quem? — arranjou forças para perguntar, quase gaguejando.

 Ele estava agora muito próximo dela, como nos dias felizes em que se beijavam com amor. Como a 20 minutos atrás.

 — Aquela velha maldita não pensava do mesmo jeito que eu — sua voz, Júlia notara, tinha mudado. Estava rouca — Vivia dizendo que devíamos ter voltado para o interior, mas eu gostava daqui. — Mais perto, mais perto. — E depois… depois que eu morri, ela ficou louca para se livrar da casa e sair da cidade.

 — O… o que você…?

 — Ela precisava morrer!

 Repentinamente, as forças voltaram para Júlia, e a moça apavorada sentiu seus pés se movendo para poder correr. E tentou. Mas Christopher — se aquilo realmente fosse Christopher — a agarrou pelo braço e puxou.

 — Precisava morrer porque não pensava como eu. Não pensava em mim!

 — ME DEIXA EM PAZ, FILHO DA PUTA! SOCORROOO.

 — E pelo visto, você também não.

 — ME SOLTA, SEU LOUCO!

 — Não Lurdes. Você não vai me tirar da minha casa!

 

 Em seus momentos finais, Júlia notou que a casa estava com uma luz acesa do lado de dentro, iluminando apenas a janela que dava para a frente. Uma figura magra e alta espiava a rua por ela, empurrando gentilmente a cortina para o lado direito. Tinha certeza de que vira essa coisa acenar por o que pareciam ser milésimos de segundos.

 Foi então que se deu conta do que estava acontecendo. Tudo se passava muito rápido, mas conseguia ver o mundo em câmera lenta. Christopher, seu namorado, lindo como no dia em que se conheceram, mas diferente do que sempre fora, empurrava-na para o meio da rua com um dos braços. Ao olhar para sua direita, viu uma luz muito forte, tão forte que se imaginou nos degraus do paraíso, com Jesus Cristo abrindo pessoalmente as portas para que ela pudesse entrar. Contudo, eram apenas faróis. Dois faróis fortes que, sem dúvida alguma, viram o rosto do namorado assassino. Ele seria pego! E isso trazia alívio, não só para ela, como também para alguma parte dele, lá no fundo.

 O corpo voou por 5 metros antes de se chocar com o chão. No capô do carro e onde o ouve o impacto, havia sangue, sangue fresco. Mas o motorista provavelmente estava em um dia ruim, pois não quis se intrometer na vida alheia. Acelerou o carro e dobrou a esquina tão rápido quanto apareceu. O corpo da jovem Júlia foi deixado para os curiosos de plantão que talvez tenham escutado a batida, ou talvez não.

 Christopher virou-se tranquilamente, como se acabasse de jogar uma latinha de refrigerante na rua, sem preocupação alguma. Foi em direção a casa. Passou pelo portão e entrou. Após abrir a porta, os gatos que passeavam pelos muros provavelmente foram os únicos ao ouvir algo como:

 — Olá, vovô. Eu voltei.

 


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