O INSULTO A CHARLOTTE CORDAY - Conto Clássico de Terror - Alexandre Dumas
O INSULTO A
CHARLOTTE CORDAY
Alexandre Dumas
(1802 – 1870)
Tradução de Paulo Soriano
—
Eu sou — disse-nos o Sr. Ledru — filho do famoso Comus[1], médico
do rei e da rainha. O meu pai, cujo apelido burlesco fazia com que fosse
classificado entre mágicos e charlatães, era um distinto estudioso da escola de
Volta, Galvani e Mesmer. Foi ele o pioneiro, na França, no estudo da
fantasmagoria e da eletricidade, proferindo palestras de Matemática e Física na
corte.
A
pobre Maria Antonieta, que vi vinte vezes, e que mais de uma vez pegou em
minhas mãos e as beijou, quando chegou à França — eu era, então, ainda criança
—, adorava o meu pai. Quando passou por aqui, em 1777, José II declarou que jamais
vira alguém tão curioso quanto Comus.
Em
meio a tudo isso, o meu pai cuidou da educação do meu irmão e da minha, instruindo-nos
com o que sabia das ciências ocultas, e com uma grande quantidade de
conhecimentos galvânicos, físicos, magnéticos, que hoje são de domínio público,
mas que, naquela época, eram secretos, constituindo privilégios de poucos. O
cargo de médico do rei fez motivou a prisão de meu pai em 1793; contudo, graças
a algumas amizades que tive com a Montanha[2],
consegui libertá-lo.
Meu
pai, então, se retirou para a mesma casa onde moro e ali morreu, em 1807, aos
setenta e seis anos de idade.
Mas,
voltemos à minha história
Eu
lhes falei de minha amizades com a Montanha. Na verdade, eu me relacionava com
Danton e Camille Desmoulins. Quanto a Marat, conhecia-o mais como médico do que
como amigo. De toda forma, eu o conhecia. Dessa relação que tive com ele, por
mais curta que tenha sido, resultou que, no dia em que Mademoiselle de Corday[3]
foi levada ao cadafalso, resolvi assistir à sua execução.
—
Eu ia, justamente, auxiliá-lo em sua discussão com o doutor Robert sobre a
persistência da vida após a guilhotina, contando o fato que a história
registrou em relação a Charlotte de Corday — disse-lhe eu, interrompendo-o.
—
Estamos chegando lá — disse-me Monsieur Ledru. — Deixe-me prosseguir. Eu fui
uma das testemunhas da execução. O que eu digo é, portanto, digno de crença.
Às
duas horas da tarde, eu me pus nas proximidades da Estátua da Liberdade. Era
uma manhã quente de julho. O tempo estava pesado; o céu, nublado, prenunciava uma
tempestade.
Às
quatro horas, desabou o temporal. Foi justamente neste instante — dizem — que
Charlotte subiu à carroça.
Um
jovem pintor fazia seu retrato quando a tiraram da prisão. A morte ciumenta
parecia querer que nada da jovem sobrevivesse, nem mesmo a sua imagem.
A
cabeça foi esboçada na tela e — que coisa mais estranha! — quando o carrasco
entrou, o pintor laborava, justamente, naquela região do pescoço que a lâmina
da guilhotina iria traspassar.
Vieram
os relâmpagos; a chuva caiu; o trovão ribombou... Nada, todavia, foi capaz de
dispersar a curiosa multidão. Os cais, as pontes, as praças estavam
sobrecarregados. O rumores da terra quase abafavam os do céu.
Algumas
mulheres — que eram chamadas pela enérgica alcunha de lambedoras de
guilhotina — perseguiam a prisioneira, lançando-lhe maldições. Esses rugidos
chegavam até mim como os estrondos de uma catarata. Muito antes que qualquer
coisa pudesse ser notada, a multidão agitou-se. Finalmente, como um fatídico
navio, a carroça surgiu, abrindo caminho entre as ondas, e, então, eu pude
distinguir a condenada (que eu não conhecia, pois nunca a havia visto).
Era
uma bela jovem de vinte e sete anos. Tinha olhos magníficos, nariz
perfeitamente delineado e lábios de suprema regularidade. Estava de pé, com a
cabeça levantada. Mas não era uma postura que insinuava o domínio sobre a
multidão: as suas mãos, amarradas nas costas, coagiam-na a manter a cabeça erguida.
A chuva cessou; mas, como a mulher havia suportado a chuva durante três quartos
do caminho, a água, que escorria sobre o ela, traçava os contornos de seu corpo
encantador sob lã úmida: dir-se-ia que a moça havia acabado de sair do banho. A
túnica vermelha, com a qual o verdugo a vestira, conferia-lhe um aspecto
estranho, impingindo um esplendor sinistro àquela cabeça orgulhosa e enérgica.
Quando
a carroça alcançou a praça, a chuva cessou. Um raio de Sol, deslizando entre
duas nuvens, veio brincar em seus cabelos, que, como um halo, fazia-se
radiante. Em verdade — juro-lhes —, embora houvesse, por trás dessa jovem
mulher, um homicídio — que é uma ação terrível, mesmo quando vinga a humanidade
—; malgrado aquele assassínio me enchesse de repulsa, eu não poderia saber se o
que via era uma apoteose ou uma tortura.
Avistando
o cadafalso, a jovem empalideceu. E a sua lividez era perceptível,
principalmente por conta da túnica vermelha, que lhe chegava ao pescoço.
Todavia, quase de imediato, ela fez um esforço e se virou para o patíbulo,
olhando-o com um sorriso nos lábios.
A
carroça parou. Charlotte saltou, recusando qualquer ajuda em sua descida. Depois,
subiu os degraus do cadafalso — escorregadios por causa da chuva que acabara de
cair — tão rapidamente quanto lhe permitiam o arrastar de sua túnica e o incômodo
provocado pela atadura em seus pulsos. Sentindo a mão do carrasco pousar-lhe no
ombro, para lhe arrebatar o lenço que cobria o seu pescoço, empalideceu novamente;
um último sorriso, contudo, desmentiu aquele livor. Por vontade própria, sem
que fosse preciso submetê-la à abertura da máquina infame, num sublime e quase
alegre impulso, a jovem enfiou a cabeça na hedionda cavidade. O cutelo deslizou.
A cabeça, destacada do tronco, caiu sobre a plataforma e rolou.
Foi
então — escute isso, doutor; ouça isso, poeta! —, foi então que um dos ajudantes
do carrasco, chamado Legros, agarrou, pelos cabelos, a cabeça decepada e, por
uma vil adulação à multidão, deu-lhe uma bofetada em pleno rosto. Sim, eu vi! E
afianço-lhes que, àquele golpe, todo o rosto enrubesceu! Eu vi encher-se de
vermelhidão a cabeça inteira, não apenas uma das faces! Ouvem-me bem? Não só a
face afetada pela bofetada! Sim, ambas as faces tingiram-se do mesmo rubor,
pois ainda perdurava sensibilidade naquela cabeça, indignada por ter padecido daquela
vergonha sem fim.
O
povo também notou aquela vermelhidão e tomou partido dos mortos contra os
vivos, dos torturados contra o algoz. Então exigiu, prontamente, a vingança por
essa indignidade. O desgraçado Legros, de imediato, foi entregue aos gendarmes
e levado à prisão.
Espere!
— disse Monsieur Ledru, entrevendo que o médico queria falar. — Há algo mais.
Eu
queria saber o que motivara aquele homem à prática de um ato tão infame.
Procurei saber onde ele fora encarcerado. Pedi licença para visitá-lo na prisão
da Abadia, onde ele estava agora. Autorizado, eu fui vê-lo.
Uma
sentença do tribunal revolucionário acabara de condená-lo a três meses de
prisão. Ele não entendia por que havia sido condenado em razão de algo tão natural
como o que fizera.
Perguntei-lhe
o que poderia tê-lo levado àquela atitude.
—
Eis uma bela pergunta! Eu sou um Maratista. Eu, que tinha acabado de puni-la em
nome da lei, queria, também, puni-la em meu nome.
—
Mas — disse-lhe eu — você não compreende que há quase um crime nesta violação
do devido respeito à morte?
— Oh, aquilo! — disse Legros, olhando-me
fixamente. — Então você acha que os condenados estão mortos somente porque
foram guilhotinados, não é mesmo?
—
Sem dúvida que sim.
—
Pois bem! Vê-se que você nunca olhou para a cesta quando as cabeças estão todas
juntas; e não viu como elas estremecem os olhos e rangem os dentes — por mais de
cinco minutos — após a execução. Nós temos que trocar as cestas a cada três
meses, pois as cabeças rasgam-lhes o fundo com os dentes. É um monte de cabeças
aristocráticas — note bem —, que não querem se decidir a morrer, e eu não
ficaria surpreso se um dia uma delas começasse a gritar: “Viva o rei!”.
Imagem: Charles Louis Lucien Muller (1815-1892).
Fonte: Excerto de “Les Mile et Un Fantomes”,
Calmann-Lévy Éditeur, 1849.
[1]
Nicolas-Philiooe Ledru, conhecido como Comus (1731 – 1807), médico e
ilusionista francês, membro da Academia Nacional de Medicina da França.
[2]
Grupo político, bastante diversificado, existente ao tempo da Revolução
Francesa.
[3]
Charlotte Corday (1768 – 1739), assassina do líder revolucionário Jean-Paul
Marat (1743 – 1793).
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