POR MUITAS VIDAS - Conto Clássico Sobrenatural - Pu Songling

POR MUITAS VIDAS

Pu Songling

(1640 – 1715)

 

Algumas pessoas se lembram de cada incidente de suas existências anteriores; isto é um fato que muitos exemplos podem provar. Outras pessoas não esquecem o que aprenderam antes de morrer e nascer novamente, embora rememorem apenas confusamente do que foram em uma vida anterior.

Wang, o Aceitável, da cidade de Flor de Pessegueiro Amarelo, quando as pessoas discutiam tais questões, tinha o costume de narrar a experiência que teve com o seu primeiro filho.

O menino, tinha, à época, três ou quatro anos. Falava apenas umas poucas palavras e algumas pessoas achavam-no pouco inteligente. Um dia, Wang escrevia uma carta, quando foi interrompido por um amigo. Ele pousou o pincel sobre mesa e saiu da sala. Quando retornou, a carta estava terminada e escrita muito mais corretamente do que ele teria acreditado ser capaz de fazer. Além disso, ele não se lembrava de tê-la concluído. Todavia, o misterioso incidente não o incomodou deveras.

Outro dia, o incidente se repetiu. Wang saíra da sala, deixando uma carta inacabada sobre a mesa. Quando voltou, a carta estava quase terminada. Ninguém, salvo o garoto, estava na sala. Incomodado e desconfiado, Wang se levantou e fingiu ir embora. Todavia, retornou imediata e silenciosamente. Da porta, viu o filho ajoelhado no banquinho e escrevendo a carta.

De repente, o garotinho viu Wang e pediu-lhe perdão. O pai, claro, riu:

— Todos nós pensamos que tu fosses pouco inteligente. Se vieres a ser um erudito, imensa será a alegria desta família! Como poderíamos puni-lo?

Desde então, o garoto passou a receber ótimas lições. Muito cedo, o filho passou, com sucesso, no exame de terceiro grau e se tornou um dos mais célebres ‘neófitos eruditos’ de seu tempo.

Quando o pai lhe perguntou se se lembrava das vidas anteriores, o jovem disse que a primeira vida anterior, de que se recordava, era a de ter sido um jovem estudante. Morava, então, em um mosteiro, para economizar o máximo que pudesse de seus rendimentos. Quando morreu, o Rei das Trevas o puniu por sua mesquinhez, condenando-o a se tornar um burro no mesmo mosteiro em que vivera.

Quis, então, morrer, mas não sabia o que fazer. Os monges o amavam e eram muito cuidadosos. Certa feita, estava em uma estrada, na montanha, e foi tentado a se jogar ladeira abaixo. Mas ele tinha um homem nas costas e temia o castigo que o Rei das Trevas lhe infligiria, caso matasse o pobre coitado. Então, persistiu na vida.

 


Muitos anos se passaram. Finalmente, morreu e renasceu como um camponês. Mas, como nada esquecera de suas vidas anteriores, ele pôde falar alguns dias após seu nascimento.  Todavia, seus pais julgaram aquilo altamente suspeito; então, mataram-no.

Depois disso, renasceu na família de Wang, o Aceitável. Apreciando os arredores, e tendo em mente que morrera, na última vez, porque começara a falar cedo demais, teve muito cuidado, agora, para não pronunciar uma única palavra. Mas quando viu o papel e a tinta, não resistiu ao seu amor pela literatura e concluiu a carta.

 

Versão em português de Paulo Soriano a partir da tradução inglesa de Hebert Giles (1845 – 1935).


Comentários

  1. Paulo. Me ha gustado. La primera parte de este cuento me ha recordado al «El pequeño escribiente florentino», que para ayudar a su padre, le hacia parte su trabajo por la noche. Saludos Emilio

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