A LIÇÃO DE ANATOMIA - Conto Clássico de Horror - Oscar D'Alva


 

A LIÇÃO DE ANATOMIA

Oscar D’Alva

(Início do século XX)

 

Entre os meus colegas de ano, nenhum havia mais fanático pelas disseções anatômicas do que o Gustavo Rebouças, o Gustavinho, como o chamavam. Passava dias inteiros encerrado no anfiteatro da escola, escalpelo em punho, avental branco à cinta, mangas arregaçadas, frasco de formol ao lado, a retalhar tecidos, dissecar músculos e artérias, no gozo macabro de revolver cadáveres para conhecer os detalhes mais Íntimos do organismo. Verificar os mistérios do corpo, já revelados por outros, já reproduzidos por muitos em admiráveis estampas, era o prazer esquisito do laborioso estudante. Habituou-se tanto ao sinistro ofício que adquiriu uma habilidade pasmosa, de que se ufanava com orgulho.

Era em vão que um pequeno grupo de rapazes, estudantes, como ele, mas guiados por uma ciência nova, lhe procuravam convencer e persuadir da imoralidade dessas práticas, só excepcionalmente justificadas. Respondia-lhes que eram uns teóricos, uns sonhadores; conheciam palavras, mas não sabiam das cousas. Isto de estudar anatomia por livros, lendo tratados ou contemplando mapas, é querer descobrir estrelas sem olhar para o céu. É uma verdadeira utopia.

Para firmar ainda mais o valor da sua opinião, apelava para autores de nomeada acadêmica, advogados intransigentes das disseções. Atacava os positivistas, que queriam, dizia ele com ênfase, reproduzir os tempos de obscurantismo da idade média; queriam fazer com os anatomistas de hoje o que os católicos fizeram com os anatomistas de ontem, principalmente com o imortal fundador da anatomia moderna, o grande André Vésale!

E o Gustavinho, nesse tom, ao mesmo tempo ardoroso e dogmático, cercado de colegas que o aplaudiam com fragor, ia levando de vencida os poucos que lhe contrariavam as funestas convicções. O número derrotava o altruísmo e a razão. Breve irrompia a chalaça grosseira, a malícia obscena, e os companheiros de Gustavo, exaltando-o sempre, apupavam-lhe os raros antagonistas, vencidos, enfim pela força numérica. A discussão acabava pela vitória aparente dos gritadores. O Gustavinho sorria triunfante e continuava a dissecar, cada vez mais concentrado e mais perito no seu lúgubre mister.

 Os mestres, os professores da escola, quase todos apologistas de princípios idênticos, pasmados da perícia consumada do aluno em manejar o seu instrumento predileto, não cessavam de proclamar a ciência precoce do rapaz e ver nele uma glória por vir da cirurgia nacional.

*

Ora, o moço estudante, apegar de viver em família com os cadáveres, profanando-os quotidianamente em nome da ciência, possuía, contudo, uma alma sensível às seduções do amor.

Assim é que em seu torrão natal se tinha apaixonado, aos dezessete anos, por uma senhorita pouco mais jovem do que ele, formosa e inteligente, mas de extrema pobreza. Durante dois anos cultivara o prazer adorável de uma afeição pura, doce e lealmente correspondida.

Num dos seus arrebatamentos de namorado, prometera à linda moça recebê-la um dia como esposa, não vendo nela a fortuna e a posição que não tinha, mas somente a beleza do rosto, a graça encantadora das maneiras, a elegância senhoril do porte, o fino ouro das madeixas, a pompa luxuriante de uma formosura helênica, e, sobretudo, a ternura do seu bem formado coração, que encerrava um tesouro de inesgotáveis delícias.

A formosa Madalena, a Madá, como Gustavo a tratava, sentia-se feliz com esse amor, cheio de esperanças nunca por ela sonhadas. Quando ouvia as palavras ardentes do noivo afagarem-lhe os ouvidos ávidos de guardar as confissões de amor, toda ela tremia de inocente volúpia: o coração pulsava-lhe mais célere, a alma lhe sorria contente. Era preciso apenas esperar, dizia consigo. Gustavo iria estudar no Rio; iria formar-se em medicina, e depois voltaria para casar-se, e viver perpetuamente junto dela. Para este futuro, rendilhado por sonhos de inaudita felicidade, convergiam todos os seus ideais de virgem, que amava e se sentia ternamente amada.

Mas Gustavo partiu e não voltou. Os amores fáceis e os estudos áridos a que se consagrou extinguiram no moço os ardores do adolescente.

Madá, ansiosa por tornar a vê-lo, veio-lhe à procura, acompanhada da sua velha mãe, alquebrada pelos anos e por longa enfermidade.

Ao chegar ao Rio, tentou improficuamente conhecer do destino que tomara o amado noivo. Nada soube e sofreu dolorosamente.

Ao mesmo tempo, a sua mãe morria, deixando-lhe já empolgada pelo flagelo tremendo que a miséria e os desgostos provocaram em ambas.

Tuberculosa e miserável, mas sempre pura, recolheu-se a um hospital, buscando ingenuamente alívio às suas dores físicas, que para as morais não tinha remédio.

Foi no catre abandonado de uma enfermaria dessas antecâmaras das necrópoles, que Madá exalou o último alento.

*

No dia seguinte ao da morte de Madá, anunciava-se com estrepitoso ruído, pelos corredores da Escola, a abertura de um curso livre de anatomia, professado pelo novo médico, Dr. Gustavo Rebouças, o mesmo Gustavinho dos bancos acadêmicos, o aluno mais distinto da academia naquela disciplina, sobretudo notável, celebre mesmo, pela sua perícia em dissecar.

À hora marcada, penetrou no anfiteatro o esperado docente. Rodearam-no os alunos em número considerável, e atentos ouviam-lhe a erudita preleção.

Cuidando sempre da prática anatômica, Gustavo falava diante de um cadáver ligeiramente velado, que breve se propunha a retalhar, para melhor instruir os discípulos sobre cada um dos pontos que minuciosamente explicava.

Deixando as divagações teóricas, propôs-se a uma preparação. Descobriu o cadáver. Era o de uma virgem morta no verdor dos anos, vítima da tuberculose.

 Gustavo, absorvido na sua brilhante lição, nem sequer reparou na identidade da infeliz que a indigência arrastara ao grabato do hospital e lhe conduzira o cadáver para ser profanado no mármore sombrio de uma mesa de disseção.

Iniciou o trabalho. Tomou da pinça e do escalpelo e deu o primeiro golpe. Mas nisto, seus olhos encontrando-se por acaso com a fisionomia da morta, fixando-lhe o rosto descarnado, uma ideia horrorosa súbito o assaltou. Empalideceu, deixou cair os instrumentos e desmaiou nos braços dos alunos.

Aquele rosto que ali estava enregelado e desfeito, aquele corpo devastado por uma magreza hedionda, aquelas madeixas douradas que a moléstia e a morte não puderam deslustrar nem corromper, eram de alguém que ele tinha conhecido e amado. O que ali estava diante dele e de seus alunos, para servir de pasto à curiosidade de todos, como instrumento de estudo, como aparelho indispensável à sua lição de anatomia, era o corpo inerte do seu primeiro amor, era o cadáver de Madá.

 

Fonte: Kosmos (RJ), edição de dezembro de 1907.

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