EROSMANIA - Conto de Horror - Cauê Costa


 

EROSMANIA

Cauê Costa

 

Particularmente, estou cansado de pessoas ao meu redor constantemente repetirem que o amor não existe ou que sequer já existiu algum dia. Falo mais especificamente do amor entre duas pessoas apaixonadas que fazem o possível e o impossível para agradarem uma à outra. Uma relação de amor e afeto mútuo, onde ambas alimentam a ideia de viverem uma vida juntas. Eu acredito no amor. Ele existe! Não tenha dúvidas que existe, pois, todos nós podemos experienciá-lo; de uma forma ou de outra. Por este motivo, resolvi contar essa história para exemplificar meu ponto de vista.

 

 Certo dia, um rapaz no auge dos seus vinte e quatro anos estava voltando do trabalho após o fim do expediente. Seu relógio no braço direito indicava 18:53 da tarde e, apesar do cansaço e da dor de cabeça por ficar a semana toda na frente de uma tela de computador não muito moderna, sentia-se bem. Estava alegre e motivado para chegar em casa o mais rápido possível.

 O céu rosado do fim da tarde, repleto de nuvens levemente escurecidas que traziam consigo um vento forte, porém, agradável, encantava-o com sua beleza natural. Natural, assim como o azul dos olhos daquela que lhe esperava em casa. Contudo, ficou repentinamente decepcionado consigo mesmo; pois ele, justo ele, que se dizia um homem apaixonado, acabara de lembrar algo que jamais deveria ter esquecido. Como poderia? Como quase deixou passar batido seu aniversário de casamento? Tudo bem que, na realidade, não se tratava exatamente de um aniversário; mas sim, da comemoração de cinco meses juntos. Sem dúvida, uma data importante como esta merecia algo especial! Então, abotoou o único botão que restava em sua camisa, arregaçou as mangas, pegou sua maleta e andou em direção ao caminho que seu coração guiava.

 Com o entardecer, as luzes da feira, que preenchiam toda a rua, ficavam mais claras e chamativas. Havia pessoas por todo lugar e inúmeras barracas se estendiam, lado a lado. Ele se aproximou de uma.

 — Tiago! Há quanto tempo não te vejo! — bradou a senhora da barraca de artesanatos, ao vê-lo.

 — Boa noite, Sra. Irene — respondeu.

 — O que te traz aqui hoje, meu jovem?

 — Nada de mais, só estou voltando do trabalho.

 A senhora apertou os olhos para ele.

 — Não, não. Posso ver nos seus olhos o porquê veio até minha barraca! — ela continuou, com um tom brincalhão e amigável. — O que vai levar hoje?

 Tiago sorriu, e logo em seguida levou uma das mãos ao bolso, à procura de sua carteira.

 — O que eu consigo comprar com uma nota de vinte? — perguntou.

 — Vejamos… Ah! Que tal essa estátua em miniatura de um casal apaixonado? Linda, não acha?

 Ele chegou mais perto, atento aos detalhes. Certamente conhecia a origem da pequena escultura: "Psiquê reanimada por um beijo do Amor", feita de barro. Como era bela! Provavelmente a mais pura representação daquilo que julgava ser o mais puro sentimento da raça humana: o amor. Era o presente ideal!

 — Sei que adora essas coisas — a senhora completou —, e também sei que não está comprando para você!

 O jovem abriu um sorriso tímido e desajeitado.

 — Está certa. Vou levar!

 — Escolheu rápido! — ela disse, um tanto impressionada. — Mas pelo seu olhar, conhece bem que escultura é essa.

 — Sim, sim. Antonio Canova.

 — Olha, não é por nada, mas quem me dera receber um presente desses — dizia enquanto embrulhava cuidadosamente o pequeno casal. — Creio que se eu tivesse conhecido um rapaz igual a você, quando era jovem, nunca teria me divorciado!

 — Obrigado, Sra. Irene, mas eu só tento fazer o que gostaria que fizessem por mim — ele respondeu, entregando-lhe o dinheiro.

 — Você é um bom rapaz, Tiago. Fale de mim para sua esposa, está bem? — ela continuou, devolvendo o troco. — Quem sabe nós nos conhecemos algum dia.

 Os dois se despediram e Tiago continuou seu caminho, voltando-se para o próprio pensamento. Planejava e visualizava cuidadosamente seu plano. Sabia bem quais eram os tipos de presentes favoritos daquela que o fazia sorrir espontaneamente.

 O rapaz mostrava-se ainda mais enérgico e sorridente. Começou a cantarolar a música: "Com açúcar e com afeto", juntamente com o rádio da barraca de quadros e pinturas, onde havia um casal de idosos sentados na frente, conversando e gargalhando como dois adolescentes apaixonados. Tiago parou e começou a prestar mais atenção. O senhorzinho se esforçava para fazê-la dar boas risadas, e ao receber um beijo na bochecha, mexia os braços como uma dança de comemoração. Eles eram felizes juntos, Tiago percebera; e enquanto observava, seus olhos brilhavam. Eles se tornaram a maior prova daquilo que o garoto acreditava; então, não pôde evitar ir até a pequena barraca dos pombinhos.

 — Com licença… — disse.

 Ambos, ainda sentados e de mãos dadas, voltaram-se para ele.

 — Eu gostaria de ver alguns quadros.

 — Claro, meu jovem. — respondeu o velhinho, se levantando. — Qual seu nome?

 — Tiago.

 — Muito prazer, Tiago. Me chamo Benjamin. E esta é a minha Helena.

 "Minha Helena?", pensou. "Então você é desses!"

 — Tem alguma preferência de pintura?

 — Nenhuma.

 — Bem, nós temos de tudo um pouco por aqui; algumas paisagens, pinturas abstratas, algumas famosas como o "Abaporu" ou "A Criação de Adão". Temos também autorretratos…

 — Na verdade… — interrompeu. — Eu gostaria de lhe fazer uma pergunta.

 — Ora, então faça.

 — Se fosse para dar um desses à sua esposa, qual você escolheria?

 Pego de surpresa, Benjamin trocou olhares com Helena e ambos sorriram.

 — Já entendi. Sei de uma pintura perfeita para você! — Benjamin respondeu, dando-lhe uma piscadela e voltando-se para uma portinha dos fundos.

 — Aposto que ela vai gostar! — disse Helena. — É sempre bom ver jovens como você seguindo os velhos costumes do amor verdadeiro.

 Ao ouvir isso, Tiago experimentou um sentimento do qual desconhecia totalmente e nem sequer sabia que lhe carecia. Era… aprovação.

 — Para mim — respondeu — o amor é o que nos dá sentido, sabe? Temer o amor é temer a vida, e os que temem a vida já estão meio mortos.

 — Essas foram lindas palavras, sem dúvida! — ela respondeu, um tanto impressionada.

 — "O Beijo", de Gustav Klimt — disse Benjamin, ao voltar à barraca. Carregava a mencionada pintura com um tamanho aproximado de 34x49 cm.

 Mais uma vez, os olhos do rapaz brilharam. Ele pagou, e os agradeceu imensamente.

 

 Após se despedir daqueles que — sem dúvida — seriam sua maior inspiração de agora em diante, andava mais uma vez com um sorriso no rosto e cantava ainda mais alto aquela música chiclete que ouvira no rádio.

 O vozerio do local diminuía e aumentava constantemente, impedindo-o de escutar qualquer um que estivesse a mais de três metros dele. E quando os sons se suavizaram outra vez, finalmente percebeu:

 — Ei você! — gritou novamente um homem alto e fardado.

 Tiago parou e se virou.

 — Quero falar com você, cidadão — continuou, ao se aproximar

 — Pois não.

 — Posso ver seus documentos, por favor?

 — Claro! — pôs sua maleta no chão, checou o bolso da camisa, bateu as mãos nos bolsos da calça e forçou uma expressão de "puts". — Desculpe, não estou com eles, senhor.

 — Não anda com a carteira?

 — Não, senhor. O bairro onde moro é um tanto perigoso, então prefiro não me arriscar.

 — Entendi — respondeu o homem, desconfiado. Tirou de um dos bolsos da farda uma pequena caderneta, a qual começou a folhear a procura de algo. — Qual seu nome? — disse por fim, após puxar uma caneta do mesmo bolso.

 "E lá vamos nós!", pensou. "Desculpe pela demora, querida"

 — Thomas. Thomas Barbosa.

 — E está sempre por aqui, senhor Barbosa?

 — Oh, não! Fazia algum tempo que não passava nesta feira, mas hoje resolvi comprar alguns presentes para minha esposa — abriu uma das sacolas e mostrou seu novo quadro ao homem. — O que acha?

 — Muito bonito — ele disse, com uma entonação seca. — Espero que ela goste.

 — Ela vai! Eu a conheço muito bem.

 — Hmm.

 Ele folheava calmamente a caderneta, lançando olhadelas constantes para Tiago.

 — Então… eu posso saber o motivo disso tudo? — perguntou o mesmo. — Minha mulher está me esperando em casa, hoje é nosso aniversário de casamento e eu não quero me atrasar, sabe como é…

 — Tiago Barbosa… — falou, subitamente.

 O rapaz congelou por um instante, mas logo conseguiu disfarçar. Por sorte, o homem não notara, apenas terminou sua frase:

 — Tem algum Tiago na sua família, senhor Barbosa?

 — Não que seja do meu conhecimento. Mas por que a pergunta?

 — Tenho um boletim de ocorrência contra um Tiago Barbosa…

 — Ah! Entendo.

 — Branco, tamanho médio, cabelos pretos, olhos azuis; você se encaixa perfeitamente nesta descrição!

 — Nossa! — exclamou, inquieto. E foi tudo que conseguiu dizer; cogitou perguntar quem havia feito o B.O., mas sabia que não teria essa informação, apenas mais desconfiança: "porque quer saber?", o homem diria.

 — Mas não é só isso! Diz aqui que frequentemente vai à feira da rua Pioneiro Campolina e sai do trabalho por volta das 18h… está voltando do trabalho, senhor Barbosa?

 Puta merda!

 — Tecnicamente sim, mas meu horário é até às 16h. E, como eu disse, não estou por aqui regularmente, apenas em ocasiões especiais, como hoje.

 — Entendi. Então me responda uma coisa: se vem tão pouco nesta feira, como conhece tão bem a senhora Irene?

 Filho da puta! Estava me observando?

 — Bom, apesar de não vir com tanta frequência, conheço este lugar há bastante tempo. Minha mãe costumava me trazer aqui para comprarmos frutas e legumes quando eu era mais jovem; ela nunca perdia um dia sequer. Conheço a senhora Irene desde os 16 anos. — Xeque-mate.

 O policial mais uma vez apertou os olhos para ele, mas pareceu engolir sua história. Fechou a caderneta e a guardou. Soltou um sorriso nada verdadeiro e disse:

 — Acho que é só isso então. Boa noite e feliz aniversário de casamento — fez um aceno de cabeça e voltou ao seu posto.

 Tiago soltou um suspiro de alívio disfarçadamente e apanhou sua maleta.

 

 Finalmente chegou ao final da rua, onde, ao virar a esquina, se deparou com a floricultura mais luminosa e colorida de toda a cidade ainda aberta. Já passavam das 19:40, então precisava ser rápido.

 O sino da porta tocou e o vendedor viu aquele rosto familiar andando em sua direção. Obviamente ficou feliz, sabendo que venderia para aquele garoto mais flores do que conseguira durante o dia todo.

— Boa noite, seu Manoel — disse o rapaz, animado.

 — Boa noite, Tiago. Como você está? — respondeu o gentil senhor.

 — Estou ótimo!

 — O que te traz aqui hoje? Algum dia especial?

 — Com certeza!

— Você está animado demais, garoto! Espere, espere, não fale nada… aniversário de casamento! Acertei?

 Tiago riu, surpreso.

 — Bem, quase isso.

 — Ótimo! Então, nesse caso… — o senhor andou pelas variadas mudas de flores à procura da escolha perfeita para tal ocasião. — Eu sugiro um buquê de girassóis. Acha que ela gostaria?

 — Como sempre, seu Manoel, você está certo. Tenho certeza que ela vai amar!

 — Ótimo! E quer que eu enfeite com algumas rosas e margaridas?

 — Por favor! Eu adoraria. Não me importo de gastar um pouco mais hoje.

 O garoto era a salvação da loja.

 — Você é um bom rapaz, Tiago. Sua esposa tem muita sorte!

 Ele abaixou a cabeça e, mais uma vez, sorriu envergonhado.

 — Eu que tenho sorte, seu Manoel. Ela é tudo que eu preciso e muito mais do que mereço.

 — Ótimas palavras, meu garoto! Mas não precisa ficar se explicando. Eu te entendo perfeitamente. Confie em mim, já estive no seu lugar. Comprando flores, presentes, gastando mais do que podia; tudo para agradar ao máximo a mulher que eu amava. Célia e eu éramos apaixonados e inseparáveis — ponderou por alguns segundos, procurando uma fitinha vermelha para amarrar o buquê. — Mas acredite, meu rapaz. Infelizmente nada é para sempre!

 Tiago franziu rapidamente a testa.

 — O que ouve com Célia? — perguntou, pouco interessado.

 — A decepção sempre vem de quem mais amamos, meu rapaz. Sempre! Assim como a traição.

 Manoel continuava seu discurso sobre os perigos de dar tudo de si quando se está enfeitiçado pelo amor, e um sermão nada breve sobre se pôr em primeiro lugar. Contudo, Tiago, apesar de ouvir, não mais escutava. Seu rosto permanecia um tanto diferente agora. Seus olhos fitavam hostilmente o buquê de girassóis que balançava nas mãos do orador. Dentro de sua mente, milhares de pensamentos. Mantinha uma expressão séria, quase maliciosa.

 — Não estou querendo pôr medo em você, garoto. Longe de mim, fazer isso! — continuou o velho. — Apenas leve como um conselho, está bem? Tome cuidado com seus sentimentos, ou poderá se machucar.

 Os olhos cheios de cólera se viraram para o corno antiquado que tentava lhe dar conselhos de relacionamento. Contudo, sua expressão repentinamente se transformou.

 — Desculpe, seu Manoel — disse por fim, sorrindo gentilmente. — Sinto muito pelo que aconteceu com você. Mas minha doce Maria jamais faria algo assim!

 — Ah! Não me entenda mal, Tiago. Não foi o que eu quis dizer…

 — Agora, se me dá licença, preciso estar em casa antes do jantar.

 — Claro, mas… você não pagou.

 — Anote! Passarei amanhã para acertarmos, está bem?

 E antes mesmo que o pobre senhor pudesse responder, Tiago saiu pela porta da frente, tocando o sino uma última vez naquele dia.

 

 A escuridão estampava o céu e as estrelas brilhavam juntas em um mar de beleza cósmica. Tiago, finalmente passando pelo portão de sua casa, ainda cantarolava animado e mantinha um sorriso no rosto. Em um ato rápido e efetivo, trancou o robusto cadeado de 70MM do portão. Carregava a maleta e algumas sacolas com presentes em uma das mãos e um enorme buquê de girassóis com rosas e margaridas na outra.

 — Ela vai amar! — repetiu para si mesmo, girando a maçaneta da porta da frente.

 Ao entrar em casa, notou que a escuridão do lado de dentro era ainda maior que a do lado de fora; mas resolveu deixar tudo como estava e não acendeu nenhuma luz. Largou a maleta em qualquer lugar, desamarrotou a camisa, afrouxou um pouco sua gravata, penteou os cabelos com os dedos, respirou fundo, e, sem perceber, mordeu de leve seu lábio. Queria que tudo fosse perfeito.

 Por fim, andou até seu quarto, onde estava ela, a mulher em que pensara o dia todo. Parou em frente a porta e respirou fundo; esse sentimento era equivalente ao que um usuário de metanfetamina sentiria caso houvesse uma seringa cheia e pronta para ser usada do outro lado da porta.

 Isso é amor!

 Tirou do bolso um molho de chaves e abriu os quatro cadeados que lacravam a porta; até que, por fim, usou uma última para abrir a fechadura. Ao entrar no quarto, seu sorriso se expandiu ainda mais. Lá estava ela, maravilhosamente perfeita, do jeito que a deixou quando saiu.

 A única janela do quarto, a qual estava atrás da moça, deixava a luz da lua passar e incidir sobre o dourado de seus cabelos. Tiago estava paralisado e encantado com tanta beleza; e aqueles olhos… Ah, os olhos! Ele podia ouvir o som de marulhar vir do azul deles. Seu olhar voltou-se rapidamente para o corpo nu da mulher — um pouco sujo, claro, mas isso não era problema. Conseguia sentir a maciez de sua pele sem ao menos precisar tocá-la.

 Ao ver Tiago, Maria instantaneamente começou a chorar e se debater, mas isso não durou muito e logo ficou cansada demais para tentar qualquer gracinha. Ela aparentava estar fraca e até mesmo respirava com dificuldade; era realmente triste vê-la tão debilitada, mas isso não o surpreendia, afinal de contas, estava a quase cinco dias sem comer, e ficar em pé todo esse tempo, com os punhos e calcanhares amarrados em cordas que a puxavam em direções opostas não é nada confortável! Ele reconhecia seu sofrimento. Uma pena ser preciso chegar a este ponto, lamentava; mas não poderia correr o risco de deixá-la fugir outra vez.

 

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