O CORAÇÃO DE DANKO - Conto Clássico Fantástico - Máximo Gorki
O CORAÇÃO DE
DANKO
Máximo Gorki
(1868 – 1936)
Tradução de
Silva Marques
(antes de 1868 -19--?)
Em
tempos remotos, de que não resta senão vaga memória, existia no mundo certa
tribo. Em que parte do globo, ninguém o sabe. Sabe-se apenas, que as terras que
ela ocupava eram todas cercadas de extensas matas, exceto dum lado, por onde se
estendiam numa imensa planície sem fim.
Era
um povo alegre, forte e audaz, que vivia contente do seu destino. Mas veio um
dia a adversidade. De paragens distantes chegaram outras tribos fortes e belicosas,
que forçaram os indígenas a recuarem até o fundo tenebroso da mata. Nessa
região, coberta de pântanos, reinava espessa escuridão: as árvores eram
seculares e os galhos se entrelaçavam de tal modo que ninguém podia ver o céu,
nem os raios do Sol do meio-dia, cuja vaga claridade apenas penetrava como uma
visão corposa, através da folhagem. E quando essa luz, quase imperceptível,
batia sobre as águas estagnadas dos pântanos, levantava-se um intenso nevoeiro,
podre de miasmas deletérios, a cujo contato morriam homens, uns após outros.
E
as mulheres choravam, e choravam as crianças diante dos cadáveres das vítimas.
Os homens, no auge do desespero, pensavam nos dois únicos meios de escapar
daquela imensa e tenebrosa prisão: retroceder em direção ao sítio abandonado onde
os esperava o inimigo poderoso e feroz— ou caminhar para a frente, de encontro às
árvores imensas, os velhos gigantes da floresta, unidos pelos seus grossos
ramos e suas fortes raízes, firmemente mergulhadas no solo encharcado para lhes
impedirem a passagem.
E
na meia claridade da mata, as árvores permaneciam imóveis, como que petrificadas,
numa atitude de fantasmas ameaçadores.
À
noite, ao clarão das fogueiras, elas apareciam aos olhos desses homens
acostumados à luz e a liberdade como se fossem as imensas colunas dum cárcere.
E
mais triste era ainda a solidão quando o vento, fustigando os cumes das árvores,
sibilava sinistramente como se cantasse o requiem acternam a essa gente
refugiada no seio tumultuoso da floresta.
E,
no entanto, eram valentes os homens da tribo, que podiam dar batalha ao
inimigo, morrer ou reconquistar a liberdade, mas as suas velhas lendas, o culto
dos antepassados, não lhes permitiam as aventuras da guerra, e, por isso,
passavam longas noites inativos, no meio das exalações deletérias, pensando no
seu triste destino.
E
quando procuravam repousar em torno das fogueiras, viam sombras que dançava
como duendes saídos das matas e dos paus, e de novo voltavam à vigília e aos
pensamentos tristes; como não há como a tristeza para abater as forças humanas,
todos os homens da tribo começaram a sentir as manifestações do desânimo: o
medo dominava todas as almas, encadeava todos os braços, e do meio da multidão
ouviam-se palavras indignas do homem, traduzindo o renunciar da liberdade!
Temendo
a morte, não mais temiam a vida escrava.
Foi
então que Danko, jovem e belo, saindo da multidão, disse aos companheiros de
infortúnio:
—Para
remover as pedras do caminho não bastam pensamentos e palavras. Levantai-vos e
entremos na mata; um termo nos espera, porque tudo no mundo tem um fim!
E
os homens da tribo, vendo no moço a resolução e a coragem, confiaram de novo na
sua estrela desmaiada, e, abandonando-se à vontade de Danko, puseram-se a
caminho para a difícil jornada.
A
marcha era penosa. Por toda parte a escuridão: os pântanos embaraçavam-lhes os
passos, as árvores, mudas pelos troncos e pelos ramos, interceptavam-lhes o
caminho, como se fossem grossas muralhas.
Cada
espaço conquistado custava sangue e suor.
Caminharam
assim por muito tempo, e, à medida que avançavam, tornava-se mais feia a
escuridão, mais densa e mais emaranhada a floresta. E porque a coragem os fosse
abandonando, começaram a murmurar contra o guia, que os conduzia, não para a
vida e a liberdade, mas para o desespero e a morte. Danko, no entanto,
continuava a guiá-los, cheio de amor e de esperança!
De
repente, a tempestade desaba formidável sobre a floresta e um rumor confuso
perpassa através da folhagem; vozes sinistras ecoam no meio da multidão, como se
todos os mortos, desde a origem da criação, ali estivessem reunidos para
escarnecer da tribo miseranda.
E
os homens se figuravam cada vez mais pequeninos no meio das árvores seculares,
abaladas pelos estrondos do trovão.
Os
gigantes da floresta, curvando os frondosos cabeços, ao rijo sopro do vento,
traziam aos ouvidos dos fugitivos as notas descompassadas do canto agoureiro.
Os
raios cruzavam a mata como imensas serpentes luminosas, espalhando por toda
parte uma luz fria e azulada, igual à das chamas efêmeras do fogo fátuo.
Nesse
momento, parecia aos homens da tribo que as árvores procuravam impedir-lhes a
marcha, prendendo-os entre os seus longos braços nodosos.
Da
imensa escuridão que os cercava, espreitava-os o abismo, negro e tumultuoso.
A
jornada tornava-se cada vez mais difícil, os míseros caminhantes, exaustos de
forças, perdiam também a energia de espírito; mas, envergonhados dessa
fraqueza, voltavam toda a sua cólera, todo o seu ódio contra Danko, que, não
obstante, caminhava sempre.
E
mais terríveis se tornaram as imprecações contra o guia; acusavam-no de os ter
enganado, de não saber guiá-los através da floresta, até que, esmorecidos de
todo, e com os corações transbordando de ódio, pararam de súbito, e começaram o
julgamento de Danko.
A
floresta parecia, agora, cantar o seu canto de vitória.
— Tu —disseram —, homem vil e nocivo, não nos
guiaste para a vida e para a liberdade, mas para o desespero e a morte. A morte
será o prêmio que mereces.
O
trovão, ecoando formidável, parecia confirmar a terrível sentença.
E
o guia, mostrando o peito largo e varonil, disse aos homens da tribo:
—Força
tive-a para vos conduzir até aqui. Energia ainda me sobra para vos levar mais
longe, ao passo que vós não tendes coragem nem para me seguir como as ovelhas
ao pastor!
As
palavras de Danko irritaram ainda mais a multidão.
—
Morrerás — gritaram todos!
E
o vento, sibilando, secundou-os na sua cólera: os relâmpagos rasgaram de novo
as trevas.
E
Danko, comprimido agora entre muralhas humanas, sorria para os infelizes, cujo
destino tanto o fazia sofrer. Mas, vendo que deles não podia esperar piedade, encheu-se
lhe também o coração de ódio. Sentindo, no entanto, que a cólera não
sobrepujava o seu grande amor pelos homens, condenados a morrer se alguém não
os guiasse, sorriu-se de novo para os inimigos, cheio de bondade. E sentiu que
o seu coração se enternecia de amor, do grande amor sem recompensa, e que os
seus olhos, pela luz que desprendiam, deviam brilhar agora no meio das trevas como
dois faróis.
E
os homens da tribo, vendo nos olhos do guia esse fulgor estranho, supuseram-no
louco, e, chegando-se mais para ele, fecharam-no dentro dum círculo, para mais
facilmente matá-lo.
Danko,
advinhando-lhes a intensão e os gestos, sorriu-se mais uma vez para os seus
algozes.
A
floresta continuava o seu canto lúgubre.
O
trovão estrondava pelas tranças dos arvoredos; a tempestade rugia, desmanchando-se
em pesadas bátegas, e Danko, pensando na sorte da tribo, nem sentia a cólera
dos elementos.
De
repente, os homens da tribo, a princípio tomados de pavor, viram-no rasgar o
peito, tirar dele o coração, e, num gesto rápido, erguê-lo com as mãos à altura
da cabeça. E o coração de Danko resplandecia- como o Sol. A floresta emudecera,
iluminada pela luz que nele irradiava; as trevas recuavam até as profundidades
da mata.
Os
homens, mudos de pasmo, continuavam a marcha, precedidos do guia que caminhava
silencioso, levando suspenso, na altura da cabeça, o coração resplandecente.
Agora, muitos deles, feridos pelos espinhos, arremessados para dentro dos pântanos,
sofriam a morte sem um murmúrio, nem uma queixa.
O
canto da floresta deixara de ser lúgubre para ser sonoro como a aurora da
liberdade. E a tribo seguia o seu destino através da mata, iluminada pelo
coração de Danko.
De
súbito, a floresta, abrindo-se para os lados, mostrou aos proscritos o almejado
asilo: em cima, o céu azul e imenso; em baixo, a planície imensa e iluminada,
cortada de regatos cristalinos, cujas águas marulhavam sobre areias de ouro.
Era
a tarde. O Sol mergulhava no oceano os seus últimos raios, vermelhos como o
sangue, que irrompia em torrentes, do peito dilacerado de Danko. E o guia,
lançando um olhar vitorioso pela extensão da planície, caiu inanimado sobre a
terra conquistada. Gemiam ao longe as árvores da floresta, e os homens,
orgulhosos de luz, de vida e de liberdade, nem repararam no cadáver de Danko, tendo
ao lado o coração resplendente...
Apenas
um velho da tribo, ajoelhando-se para orar, deparou com a massa luminosa e,
como tivesse medo, pisou sobre ela, deixando cair todo o peso do seu corpo. Com
a pressão sofrida, o coração de Danko diluiu-se em milhares de centelhas,
formando um clarão estranho, que pairou por instantes sobre as cabeças nuas dos
homens da tribo.
Fonte: Kosmos (RJ),
edição de agosto de 1905.
Nossa! Barão, que conto magnífico! A tradução, excelente. Este site é o melhor de contos de terror que há na internet.
ResponderExcluirMuitíssimo obrigado, amigo! Sem dúvida, o conto e a tradução são maravilhosos!!!!
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