O TESTAMENTO DO VELHO CLÉRIGO - Conto Fúnebre - Paulo Soriano


 

O TESTAMENTO DO VELHO CLÉRIGO

Paulo Soriano

 

A Isaac Alonso Estraviz.

 

Não era comum que recebêssemos a visita do mestre Facal. Por isso, muito animados, ordenamos ao nosso comum criado que saísse à rua para comprar um vinho de melhor qualidade, charutos brasileiros e algo tenro e saboroso de comer. Como quaisquer estudantes de Compostela — ricos ou pobres —, vivíamos quase sempre sem dinheiro e um tanto quanto famintos. Mas, à súbita presença do mestre Facal, cada um de nós remexeu os bolsos, revirou as carteiras e rompeu os cofrinhos. Feito o milagre do aparecimento das pesetas, que contou com a aprovação de nosso mentor — Facal igualmente contribuiu com uma cédula de pequeno valor, porque também, como nós, era pródigo em pouco dinheiro —, escolheu ele a cadeira de treliças junto à lareira, onde se sentou confortavelmente. Esperou pacientemente o retorno de nosso criado, serviu-se do vinho tinto vede e adocicado, que bebia cuidadosamente misturado à aguardente de uva, e começou:

 — Amigos, infelizmente terei de ser breve. Um velho professor jubilado tem, também, as suas responsabilidades, ainda que não tão imperiosas quanto as de um acadêmico em vias de graduar-se.

Pablo Martínez, o único castelão entre nós, concordou com um sonoro e profundo suspiro. Voltamos todos o olhar para ele, e esperamos que dissesse alguma coisa, mas ele apenas solicitou, em bom e claro galego, ao gentil Facal, que continuasse, desculpando-se pela tácita interrupção. Facal percorreu os seus sagazes olhos azuis sobre aquela confraria silenciosa, que o cercava em ávida expectativa, sorriu amavelmente para cada um de nós, e desfiou a tão esperada narrativa:

“— Foi há mais de setenta anos, nos tempos em que a D. Fernando de Bourbon ainda reinava absoluto na Espanha. Havia em Vigo um velho cura — um homem de uma avareza sem igual — que, dispensado dos votos de pobreza por uma bula especial, cuidou de acumular riquezas. Assim que morresse, o clérigo deixaria uma considerável fortuna. Como não tinha herdeiros necessários, e poderia dispor em testamento livremente de seus bens, era constantemente adulado por seus únicos parentes vivos, dois rapazes mandriões, que viviam à sua custa, filhos da única irmã que o clérigo tivera, e da qual fora ferrenho inimigo.

Astutamente, o padre Afonso fez circular a notícia, que fatalmente chegaria aos ouvidos dos sobrinhos, de que finalmente redigira um testamento secreto. Como já imaginara, intensificaram-se as adulações e as lisonjas interesseiras. É claro que os sobrinhos, sem saber se seriam agraciados com um legado, cuidaram de manter a condição de herdeiros designados, se de fato o eram; ou, se não o eram, obter uma derrogação do testamento, para que nele fossem incluídos a título de exclusivos beneficiários. E isto implicava o refinamento na arte da bajulação e da subserviência hipócrita.

Debalde foram as tentativas — todas aparentemente casuais, mas bem calculadas e bem furtivas — dos sobrinhos em arrancar do austero ancião qualquer pista quanto ao conteúdo da solene escritura. Seria mais fácil extrair do cura um belo par de moedas de ouro (algo que, evidentemente, estava fora de qualquer excogitação).

Quando, alguns poucos anos depois, o velho desceu à sepultura — um lindo mausoléu que o cura mandou construir ainda em vida, em homenagem própria —, os sobrinhos, como ávidas ratazanas, puseram a baixo todo o solar do ancião, devassaram os velhos baús, abriram cada uma das gavetas, esmiuçaram cada documento dos cofres e escaninhos, vasculharam cada palmo de chão, cada ranhura nas paredes. Tudo em vão. Não se encontrava o maldito testamento.

Tinha o clérigo um velho criado, homem de sua estrita confiança, que acompanhava os frenéticos movimentos dos sobrinhos, mas sem dada dizer ou indagar.

Vendo, porém, que os dias se passavam, e que nada era encontrado, apiedou-se o bom homem daqueles irmãos tão desesperados — finalmente puseram as mãos e o cérebro para trabalhar —, e, chamando-os reservadamente, indagou, como se não soubesse em absoluto a resposta:

— O que estais a procurar, caros jovens?

Os mancebos fizeram pouco caso do ancião. Ainda assim, disseram que procuravam o testamento secreto deixado pelo tio.

— Ah, sim, o testamento!

— Existe mesmo um testamento? — inquiriu Pedro, o mais velho dos irmãos.

— Tanto quanto há um Deus no paraíso zelando por todos nós, os mortais. Eu vi o padre Afonso redigi-lo. Com estes olhos que a terra há de comer.

— Mas, onde estaria? — perguntou Nuno, o mais jovem.

— Está em um lugar bem secreto, não há dúvida. Num lugar aonde ninguém gostaria de ir, mas que não é de todo inacessível.

— Ah, então sabes tu onde o nosso querido tio o guardou?

— Perfeitamente — respondeu o ancião. — Eu mesmo cuidei de ocultá-lo.

— E onde está? — perguntaram em uníssono os irmãos.

— Não seria mais prudente, meus prezados jovens, saber se o vosso finado tio vos legou alguma coisa? Afinal, posso vos garantir, e mesmo jurar em nome do Padre Eterno, que não vos seria fácil chegar ao documento. Digo mais: ser-vos-ia extremamente penoso.

— Ora, se tu, homem idoso, pôde guardá-lo, por que não poderemos nós, mancebos hígidos que somos, resgatá-lo de onde tu o puseste? De toda forma, tu nos concedes um bom favor em nos informar, desde já, das cláusulas do testamento. Ao menos, aplacarás a nossa curiosidade.

— Vosso tio, em toda a sua sapiência e justiça, e para que não houvesse entre vós, seus sobrinhos, nem uma nesga de divergência, houve por bem deixar a um de vós terra; e, ao outro, dinheiro. Mas não me pergunteis o que caberá a cada um, porque eu não me lembro.

Grande foi a alegria dos rapazes ao ouvirem tais palavras. Todos aqueles anos de subserviência e fingida devoção valeram a pena! Finalmente, viera a recompensa, a justa retribuição por denodados e extenuantes esforços servis. O mais velho prosseguiu:

— Agora, conta-me onde está o testamento.

­— Sentindo que se aproximava a morte, chamou-me o vosso tio e me ordenou que trouxesse a sua mais nova e mais formosa batina. Depois, mandou-me que despegasse uma parte do forro de cetim, e que lá encerasse o testamento.

— Ah, como era astuto o meu querido tio! — disse Pedro, com o brilho da cobiça nos olhos. — Em nenhum momento ocorreu-me procurar no forro das batinas. Mas, diga-me, que dificuldade haverá em puxar de panos descosidos de uma batina um papel? Tu não nos disseste que seria muito dificultoso resgatar a escritura?

— Sim, eu o disse, e não menti — afirmou o velho serviçal. — Sucede que o vosso tio me deu uma ordem final.

— Qual? — inquiriu Pedro, cada vez mais impaciente com o ancião.

— Que eu fizesse daquela batina a sua mortalha. O vosso tio foi sepultado com o testamento metido no forro da batina nova. Se quiserdes o testamento, tereis de violar sepulcro onde repousa o cadáver de vosso tio."

O mestre fez uma pausa para respirar e sorver com meditativa intensidade a doçura do vinho tinto. Depois, prosseguiu:

“— Ora, era verão. E, tão certo quanto eram sinceras as palavra do velho criado, era vero o fato de que o cadáver do velho tio, àquelas alturas, já estava bastante deteriorado. Assim, puseram-se os irmãos a discutir e contender para saber quem iria recuperar o testamento do corpo putrefato do clérigo maldito. Até mesmo na morte o velho miserável protegia as suas riquezas, impondo obstáculos imensos aos que delas pretendiam legitimamente apoderar-se.

Resolveram os irmãos, porque a conciliação entre eles era impossível, deixar à sorte a resolução daquela lide. Lançaram os dados. Pedro, o mais ambicioso e preguiço dos irmãos, tirou um ás. Orou fervorosamente por um empate, por mais uma oportunidade divina. O dado lançado pelo irmão girou, girou novamente e, após uma sôfrega cambalhota, exibiu na face voltada para cima um desgraçado... seis!

Levando consigo apetrechos adequados, rumou Pedro à cripta do tio. Durante o caminho, temeu a ronda. Certamente seria preso, confundido com um ladrão. Lá chegando, servindo-se de um pé de cabra, removeu da urna mortuária o pesado mármore que, arrojado ao chão, partiu-se em vários pedaços. Depois, pendurando num gancho da parede a lamparina, cuidou de erguer a tampa do ataúde.

Não é preciso dizer que o sobrinho estava certo em suas especulações. Fico a imaginar qual não foi o seu horror ao contemplar a face corrompida do seu tio, e qual não foi a sua repulsa ao mergulhar as mãos naquelas carnes frias, podres e miasmáticas, na busca desesperada da riqueza que de direito lhe pertencia. Fico mesmo a especular se, em algum momento, Pedro não considerou, consigo mesmo, se a riqueza valia todo aquele hediondo sacrifício.

Mas o certo é que sobre o peito do ancião putrefato reluzia, à luz do candil, uma moeda de um cêntimo. Ela, consoante instrução do velho serviçal, era um sinal, e indicava lugar onde o rapaz haveria de meter a tesoura para chegar ao testamento.

Com grande esforço, o sobrinho logrou o êxito desejado. Cambaleante e enojado, fugiu do mausoléu às apalpadelas e, finalmente, respirou com sofreguidão o ar puro da madrugada. Somente depois de descansar um bocado sobre um túmulo contíguo, e de sentir-se aprumado pelo efeito restaurador da aura refrescante, baixou ansiosamente os olhos ao testamento.

À luz do candeeiro, este dizia, na primeira das folhas:

 

Eu, padre Afonso de Fraga e Castro, natural em Tui e sacerdote em Vigo, em são e perfeito juízo, determino, com a graça de Deus, e por força exclusiva de minha vontade que, depois de minha morte, todos os bens terrenos que possuo passem ao poder e domínio dos meus sobrinhos Pedro e Nuno Rodrigues Fraga...'


Pedro exultou. Levou solenemente ao peito a página primeira do testamento. E o fez com tanto ímpeto, com tanto ardor, que quase a amarrotou em razão da pressão que com ela exercia contra o coração acelerado. E agradeceu a Deus tão maravilhosa dádiva. Chegou, mesmo, a bendizer o tio falecido:

— Eu sabia, tio, que no cerne de teu coração aparentemente empedernido jazia, dormente, um poço de generosidade. Sabia, também, que foi a vida difícil de clérigo, com as suas imensas obrigações e responsabilidades, o que reprimiu e abafou o teu instinto caridoso, a benevolência inerente à tua magnânima natureza!

Pedro Rodrigues orava, prolongando o gozo da sublime expectativa. E orava assim, olhando para os céus nevoentos:

— Queira Deus que não seja o dinheiro o meu legado. Sei que o bom tio comprou muita coisa. Solares e herdades; campos arados e campos incultos; depósitos portuários e armazéns. Se eu vender metade dos bens — os menos proveitosos —, terei o dobro do que caberá ao meu irmão. A outra me renderá alugueres e foros para toda uma vida suntuosa e descansada!

Desta feita, Deus atendeu ao seu clamor. Pois que, baixando vagarosamente a vista à segunda e última das folhas, Pedro leu, boquiaberto:

 

‘...Declaro, sob juramento, que os únicos bens que possuo sobre a terra são os que abaixo declinarei. Ao primeiro herdeiro instituído, caberá o único imóvel de minha pertença, a saber: o meu mausoléu, do qual espero ardentemente que meu herdeiro designado faça bom uso num futuro não muito distante; e, ao segundo herdeiro instituído, porque para com o testador mui mais respeitoso, deixo uma velha moeda de um cêntimo, que é a justa medida de seu caráter. Esta é a moeda mesma que, com certeza, já foi encontrada sobre o meu peito de defunto.’"

 

Como o mestre Facal acabara de falar, e parecia que não mais iria prosseguir, não tive qualquer constrangimento em indagar:

— Mestre, era autêntico o testamento?

— Sem dúvida que sim. Não apenas autêntico: válido, também.

— E o que aconteceu com os bens do clérigo Fraga?

— O serviçal chamava-se Carlos Álvares e, apesar de irônico, era um homem fiel, e de imenso coração. Em vida, ao concluir o testamento, o padre Afonso Fraga lhe havia doado tudo o que tinha, entre móveis e imóveis, até o penúltimo centavo... O derradeiro coube, como sabemos, a Nuno Rodrigues. Dentre inúmeras mui boas obras suas, do solar do clérigo Carlos Álvares fez uma casa para custódia e ensino de meninos pobres e abandonados, onde se ensinavam as letras e se preparavam os jovens a uma digna profissão. Pedro e Nuno, sem meios de vida, tornaram-se serviçais seus. E, por também não ter Carlos Álvares herdeiros necessários, e apesar da lição que lhes impusera o velho tio, os irmãos Rodrigues continuaram indolentes, e importunaram o velho homem até a morte com suas constantes e inconvenientes bajulices...”

 

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