RATOS NAS PAREDES - Conto Clássico de Terror - H. P. Lovecraft
RATOS NAS
PAREDES
H. P.
Lovecraft
(1890 – 1937)
Tradução de Alfredo Ferreira
(1865 – 1942)
Em
16 de julho de 1923 me mudei ao priorado de Exham, depois do último operário
terminar o serviço. A restauração fora uma empreitada monumental, porque do
edifício abandonado restava pouco mais que uma ruína em formato de concha.
Contudo, como fora o berço de meus antepassados, não deixei a despesa me deter.
O local não fora habitado desde o reinado de Jaime I, quando uma tragédia de
natureza hedionda, se bem que nunca devidamente explicada, fizera desaparecer o
dono, cinco filhos e diversos criados e afastara sob uma nuvem de suspeita e
horror o terceiro filho, meu ancestral em linha direta e único sobrevivente da
odiada raça.
Com
seu único herdeiro denunciado como assassino, a propriedade revertera à coroa,
e o acusado não tentou se justificar pra reaver o bem. Abalado por um horror
maior que o da consciência ou da lei e demonstrando apenas um desejo frenético
de fazer desaparecer o velho edifício de sua vista e memória, Walter de la
Poer, undécimo barão de Exham, fugira à Virgínia e ali fundara a família que no
decorrer do século seguinte se tornara conhecida como Delapore.
O
priorado de Exham ficara desabitado, embora mais tarde anexado à família Morres
e muito estudado por causa da arquitetura peculiarmente compósita, que
compreendia torres góticas repousando sobre uma estrutura saxônica ou romana,
cujas fundações, ainda mais, eram duma ordem ou mistura de ordens mais antiga
ainda, romana ou mesmo druida, ou címbrico nativo, se as lendas falam a
verdade. Essas fundações eram algo muito singular, estando encravadas num lado
na sólida pedra calcária do precipício, de cuja borda o priorado dominava o
desolado vale três milhas ao oeste da aldeia de Exham.
Arquitetos
e antiquários gostavam de examinar aquela estranha relíquia de séculos passados
mas a gente da região a odiava. A odiou centenas de anos antes, quando meus
antepassados ainda viviam lá, e a odiavam agora, com o musgo e o bolor do
abandono a recobrindo. Ainda não fazia um dia que eu estava em Anchester, e já
sabia que era descendente duma casa maldita. E nesta semana operários fizeram
voar ao ar o priorado de Exham, e estão ocupados em obliterar os traços das
fundações. Eu sempre conhecera a simples árvore genealógica de meus
antepassados e sabia que meu primeiro antecessor americano viera às colônias
sob uma estranha nuvem. Quanto a detalhes, porém, sempre fora mantido na mais
completa ignorância graças à política de reticência sempre adotada pelos
Delapore. Ao contrário de nossos vizinhos plantadores, raramente nos
vangloriávamos de antepassados entre os cruzados ou outros heróis medievais e
da renascença. Nem me fora transmitida tradição, exceto o que pode ter sido
mencionado dentro do envelope lacrado deixado antes da guerra civil por cada
varão a seu filho mais velho, para ser aberto pós-morte. As glórias que
estremecíamos eram as logradas depois da migração. As glórias duma família
honrada e altiva, embora talvez um pouco retraída e insociável, da Virgínia.
Durante
a guerra nossas fortunas se extinguiram e toda nossa existência mudara, devido
ao incêndio de Carfax, nossa propriedade nos bancos do rio Jaime. Meu avô,
avançado em anos, morrera naquele incêndio criminoso, e consigo se perdera o
envelope que nos ligava ao passado. Me lembro daquele incêndio ainda hoje como
quando o vi, com a idade de sete anos, com os soldados federais dando viva, as
mulheres gritando e os negros berrando e rezando. Meu pai estava no exército,
defendendo Ricamundo, e depois de muitas formalidades minha mãe e eu fomos
passados através das linhas pra nos reunirmos a ele.
Quando
a guerra terminou nos mudamos ao norte, donde minha mãe viera. Fiquei adulto,
depois homem maduro e ultimamente rico, como um legítimo ianque. Nunca meu pai
nem eu chegamos a saber o que continha o envelope hereditário, e quando
mergulhei na monotonia da vida comercial de Massachussetts, perdi todo o
interesse pelos mistérios que evidentemente se ocultavam muito longe no passado
de minha árvore genealógica. Se suspeitasse a natureza de tais mistérios, quão
alegremente deixaria o priorado de Exham entregue ao musgo, morcegos e teias de
aranha!
Meu
pai morreu em 1904, mas sem mensagem pra me deixar, nem pra meu único filho,
Alfredo, órfão de mãe com dez anos. Foi esse rapaz quem reatou o fio da
história da família porque, embora eu lhe pudesse apenas fornecer algumas
conjeturas jocosas sobre o passado, escreveu a mim a respeito dalgumas lendas
ancestrais muito interessantes, quando a última guerra o levou em 1917 à Inglaterra
como oficial aviador. Aparentemente os Delapore tinham uma história bastante
colorida e talvez sinistra, porque um amigo de meu filho, capitão Edward
Morrys, do corporação real de aviação, habitava perto da residência da família
em Anchester e lhe contara algumas superstições locais que poucos romancistas
poderiam igualar em selvageria e incredibilidade. Morrys, naturalmente, não as
levava a sério, mas divertiam meu filho e lhe davam vasto material pràs cartas
que me escrevia. Foram essas lendas que me chamaram definitivamente a atenção a
minha herança transatlântica e me fizeram comprar e restaurar o solar da
família que Morrys mostrara a Alfredo em seu pitoresco abandono, e se oferecera
pra o conseguir pra ele por uma quantia surpreendentemente razoável, visto que
seu tio era o atual proprietário.
Comprei
o priorado de Exham em 1918, mas fui quase imediatamente distraído de meus
planos de restauração pela volta de meu filho como inválido mutilado. Durante
os dois anos que viveu nada pensei além de tratar de si, tendo mesmo entregue
meu negócio à direção de sócio.
Em
1921 eu era um industrial aposentado, sozinho e sem fito certo na vida. Resolvi
dedicar os anos que me restavam a minhas novas propriedades. Visitando Exham em
dezembro, fui procurado por capitão Morrys, que se lembrava muito de meu filho,
e prometeu auxílio em obter plantas e anedotas pra servirem de base à projetada
restauração. Vi, sem emoção, o priorado de Exham, que era naquela época um
amontoado de oscilantes ruínas medievais cobertas de líquen e cheias de ninho
de gralha, empoleiradas perigosamente sobre um precipício e despidas de
assoalhos ou outros pertences internos além das paredes de pedra das torres.
À
medida que ia reconstituindo gradualmente a imagem do edifício conforme fora
quando meus antepassados o deixaram, havia mais de três séculos, comecei a
contratar trabalhadores para reconstrução. De cada vez que fui obrigado a me
dirigir às localidades do arredor, porque os aldeãos de Exham tinham um medo
quase inacreditável e aversão ao lugar. Esse sentimento era tão grande que se
comunicava às vezes aos trabalhadores de fora, ocasionando numerosas deserções.
Ao mesmo tempo parecia atingir tanto o priorado quanto a antiga família.
Meu
filho me dissera que o evitavam um pouco durante suas visitas porque era um de
la Poer, e de repente me achei relegado de todos por motivos semelhantes, até
que convenci os aldeãos do pouco que sabia de minha herança. Mesmo então
teimosamente antipatizavam comigo, de maneira que tive de obter a maioria das
tradições da aldeia por intermédio de Morrys. O que aquela gente não me podia
perdoar, talvez, era o ter eu vindo restaurar um símbolo tão odiado por eles.
Porque, racionalmente ou não, consideravam o priorado de Exham nada menos que
um covil de demônios e lobisomens.
Ajustando
umas com as outras as histórias que Morrys me contava, e acrescentando as
informações de diversos sábios que estudaram as ruínas, deduzi que o priorado
de Exham se erguia no sítio onde existira um templo pré-histórico. Uma coisa
druida ou antedruida que fora contemporânea da idade da pedra. Que ritos
indescritíveis foram celebrados ali poucos duvidavam, e havia histórias
desagradáveis sobre a transformação desses ritos no culto a Cibele, que os
romanos introduziram.
Inscrições
ainda visíveis nos subterrâneos do subsolo mostravam algumas letras
inconfundíveis, tais como DIV... OPS... MAGNA. MAT..., sinal da magna mater,
cujo negro culto fora uma vez inutilmente proibido aos cidadãos romanos. Exham
servira de acampamento à terceira legião de Augusto, como muitos remanescentes
o atestam, e se dizia que o templo de Cibele era esplêndido e estava sempre
apinhado de fiéis que se entregavam a cerimônias inomináveis sob as ordens dum
sacerdote frígio. As fábulas acrescentavam que a queda da velha religião não
interrompera as orgias no templo e que os sacerdotes continuaram a viver ali
mesmo após o advento da nova fé, com muito pequena diferença. Igualmente se
dizia que os ritos não terminaram com o poderio romano e que alguns saxões
edificaram sobre o que restava do templo e dado ao edifício as linhas
essenciais subsequentemente preservadas, o tornando o centro dum culto que fora
temido durante várias gerações. Cerca do ano 1000 o lugar foi mencionado numa crônica
como um grande priorado de pedra no qual se abrigava estranha e poderosa ordem
monástica, e cercado de extensos jardins que não necessitavam de muro pra
manter afastada uma populaça assustada. Nunca fora destruído pelos
dinamarqueses, embora depois da conquista dos normandos deva ter declinado
enormemente, visto que não houve impedimento quando Henrique III doou as terras
a meu antepassado Gilberto de la Poer, primeiro barão de Exham, em 1621.
De
minha família antes dessa época não há notícia, mas algo estranho deve ter
acontecido ulteriormente. Uma crônica se refere a um de la Poer como
amaldiçoado de Deus em 1307, enquanto a tradição da aldeia menciona apenas um
terror pânico espalhado no castelo, que se ergueu sobre as ruínas do velho
templo e do priorado. As histórias ao canto da lareira eram medonhas, ainda
mais fantásticas devido à assustada reserva que as cercava e a uma ambiguidade
desconcertante. Apresentavam meus antepassados como uma raça de demônios
hereditários ao lado dos quais Gilles de Retz e o marquês de Sade teriam
parecido verdadeiros novatos, e insinuavam à boca pequena que eram responsáveis
pelo desaparecimento de aldeãs durante várias gerações.
Os
piores membros, aparentemente, eram os barões e seus herdeiros diretos. Ao
menos muito se murmurava a respeito deles. Quando demonstrava melhor
inclinação, se dizia, o herdeiro morria cedo pra dar lugar a um rebento mais
típico. Parecia haver um culto íntimo, na família, presidido pelo chefe da
casa, e algumas vezes vedado, exceto a alguns membros. A base do culto era,
evidentemente, mais o temperamento d que a ancestralidade, porque fora aceito e
praticado por vários membros de fora que se casaram na família. Dona Margarete
Trevor, da Cornualha, esposa de Godofredo, filho segundo do quinto barão, se
tornara o bicho-papão favorito de todas as crianças do arredor, e a heroína
demoníaca duma velha balada ainda não desaparecida na fronteira galesa.
Conservada através de baladas, também, se bem que não exemplifique o mesmo
ponto, ficou a história de dona Maria de la Poer, que pouco depois de seu
casamento com o conde de Shrewsfield foi morta por ele e pela mãe dele, tendo
ambos os assassinos sido absolvidos e abençoados pelo padre a quem confessaram
o que não ousaram revelar ao mundo.
Esses
mitos e baladas, sendo típicos duma superstição absurda, me desagradavam muito.
Sua persistência e aplicação a uma linha tão grande de meus antepassados eram
especialmente fastidiosas, tanto mais que a imputação de hábitos monstruosos
podia se relacionar de maneira pouco agradável a um escândalo recente dum
parente imediato, o caso de meu primo, o jovem Randolf Delapore, de Carfax, que
se metera no meio dos negros e se tornara um sacerdote vudu depois de voltar da
guerra do México.
Me
senti muito menos perturbado com as vagas histórias de lamento e uivo escutados
no estéril vale varrido pelo vento, que ficava sob o despenhadeiro de pedra
calcária, de cheiro de cemitério depois das chuvas da primavera, da coisa
branca, ondeante e gemebunda com a qual o cavalo de sir João Clave se assustara
numa noite num campo deserto e do criado que ficara louco com o que vira no
priorado em plena luz do dia. Essas coisas eram histórias banais de
assombração, e nesse tempo eu era um cético convicto. As referências a
camponeses desaparecidos eram menos pra desprezar, se bem que pouco
significativas em vista dos costumes medievais. Curiosidades indiscretas
significavam a morte, e mais duma cabeça decepada fora publicamente exibida nos
bastiões, agora desaparecidos, em volta do priorado de Exham.
Algumas
das histórias eram especialmente pitorescas e me faziam desejar ter aprendido
um pouco mais de mitologia comparada em minha mocidade. Havia, por exemplo, a
crença de que uma legião de demônios com asas de morcego celebrava reuniões de
bruxaria todas as noites no priorado, legião cuja subsistência poderia ser
explicada pela enorme abundância de vegetais bravos plantados nos vastos
jardins. E, mais vívido de todos, havia o dramático episódio épico dos ratos, o
exército de obscena vermina em debandada, que se precipitara a fora do castelo
três meses depois da tragédia que o condenara ao abandono, o magro, pestilento
e voraz exército que varrera tudo na frente e devorara caça, gatos, cachorros,
porcos, carneiros e até dois desgraçados seres humanos antes que a sua fúria se
apaziguasse. Em torno desse inesquecível exército roedor gira um ciclo separado
de mitos, porque se espalhou entre as casas da aldeia e trouxe maldição e
horror em seu séquito.
Tais
eram as lendas que chegavam a meu conhecimento enquanto eu, com teimosia de
velho, levava adiante a restauração de meu lar ancestral. Não se deve imaginar
que essas histórias fossem meu principal ambiente psicológico. Por outro lado,
eu era constantemente louvado e animado por capitão Morrys e os antiquários que
me cercavam e ajudavam.
Quando
o serviço ficou pronto, mais de dois anos depois de iniciado, examinei os
grandes salões, as paredes apaineladas, os tetos abobadados, as janelas ogivais
e as vastas escadarias, cum orgulho que largamente me recompensava da enorme
despesa feita com a restauração.
Cada
atributo da idade média fora cuidadosamente reproduzido, e as partes novas se
ligavam perfeitamente às paredes originais e fundações. O solar de meus
ancestrais estava reerguido e eu tencionava redimir ao menos a fama local da
linhagem que terminava em mim. Residiria ali permanentemente e provaria que um
de la Poer (porque eu adotara de novo a grafia original do nome) não devia ser
olhado como um demônio. Meu talvez conforto fosse aumentado pelo fato de que,
embora o priorado de Exham fosse uma reprodução da era medieval, seu interior
era, na realidade, inteiramente novo e livre da velha vermina assim como dos
velhos fantasmas.
Como
disse, me mudei em 16 de julho de 1923. Meu pessoal doméstico se compunha de
sete criados e nove gatos que eu gostava particularmente. Meu gato mais velho,
Nigger-Man, tinha sete anos e viera comigo de minha casa de Bolton,
Massachustes. Os outros eu fora adotando enquanto morava com a família de
capitão Morrys durante a restauração do priorado.
Durante
cinco dias nossa rotina se processou com a maior placidez, sendo meu tempo
mormente empregado na codificação de velhos dados de família. Acabara obtendo
algumas narrações muito, detalhadas da tragédia final e da fuga de Válter de la
Poer, as quais calculei que constituiriam o conteúdo provável dos papéis
hereditários destruídos no incêndio de Carfax. Se verificava que meu
antepassado fora acusado, com sobeja razão, de ter assassinado os outros
membros da família, exceto quatro criados seus cúmplices, durante o sono, cerca
de duas semanas depois duma chocante descoberta que transformara completamente
seu procedimento, mas que, exceto por indução, ele não revelara, salvo, talvez,
os criados que o ajudaram e depois fugiram e desapareceram.
Aquela
deliberada carnificina, que incluía pai, três irmãos e duas irmãs, fora
largamente perdoada pelos aldeãos, e tão benignamente encarada pela justiça que
seu perpetrador se ausentara com honra, sem sofrer e sem disfarce, à Virgínia.
Sendo a impressão geral que purgara a terra duma maldição imemorial. Que
descoberta motivara um ato tão terrível é o que eu dificilmente podia
conjecturar. Walter de la Poer devia ter conhecimento, havia anos, das
sinistras histórias que corriam sobre sua família, de maneira que esse material
não poderia o impulsionar. Então fora testemunha dalgum assombroso rito ou
tropeçara nalgum espantoso símbolo revelador no priorado ou no arredor? Constava
que fora um moço tímido e bondoso na Inglaterra. Na Virgínia parecia mais
assombrado e apreensivo que mau ou azedo. Francis Harley of Bellview, outro
cavalheiro aventuroso, fala dele em suas memórias como sendo um homem de
justiça sem exemplo, de honra e urbanidade.
Em
22 de julho ocorreu o primeiro incidente que, embora considerado ligeiramente
no momento, tomou significação sobrenatural com relação a acontecimentos mais
recentes. Foi uma coisa tão simples que quase passaria despercebida, e
possivelmente não seria notada, porque se deve ter em mente que eu estava num
edifício praticamente recente e novo, exceto as paredes, e cercado por uma
criadagem bem equilibrada. Portanto toda apreensão seria absurda, mesmo a
despeito do local.
O
que agora me lembro é simplesmente que meu velho gato preto, cujo temperamento
conheço tão bem, andava irritado e irrequieto, de maneira que se afastava de
seu feitio habitual. Vagueava de sala a sala, desassossegado e ansioso, e
farejava constantemente junto das paredes que faziam parte da estrutura gótica.
Compreendo como isso deve parecer trivial, como o inevitável cachorro das
histórias de almas do outro mundo, que sempre rosna antes que o dono veja a
figura fantasmagórica, contudo não posso suprimir o fato.
No
dia seguinte um criado se queixou de inquietação entre todos os gatos da casa.
Me procurou em meu estúdio, um salão do segundo andar, com arcos ogivais,
paredes apaineladas de carvalho preto e tríplice janela gótica dominando o
desfiladeiro de pedra calcária e o desolado vale. E mesmo enquanto o ouvia eu
podia ver o vulto de Nigger-Man se arrastando ao longo da parede ocidental e
arranhando os painéis novos que recobriam a antiga pedra.
Disse
ao homem que devia ser algum cheiro ou emanação singular da velha alvenaria,
imperceptível aos sentidos humanos, apenas afetando os órgãos delicados dos
gatos, mesmo através da madeira nova. Isso era o que eu realmente acreditava, e
quando o camarada sugeriu a presença de camundongos ou ratos, fiz notar que não
houvera rato ali durante trezentos anos, e que até os ratos-do-campo das terras
circunvizinhas dificilmente poderiam ser encontrados naquela altura, onde nunca
constara que aparecessem. Nessa tarde fui visitar capitão Morrys, que me
garantiu que seria incrível que os ratos-do-campo infestassem o priorado de
maneira tão inesperada e sem precedente.
Naquela
noite, dispensando, como de costume, o camareiro, me recolhi ao quarto da torre
ocidental que escolhera pra mim, ao qual se chegava através do estúdio, e numa
escada de pedra e uma curta galeria, a primeira parcialmente antiga, a segunda
inteiramente restaurada. Esse quarto era circular, muito alto e sem
revestimento de madeira, sendo forrado com pano de arrás, que eu próprio
escolhera em Londres.
Vendo
que Nigger-Man estava comigo, fechei a pesada porta gótica e me despi à luz das
lâmpadas elétricas que tão inteligentemente imitavam vela, finalmente apagando
as luzes e mergulhando no vasto leito lavrado e com dossel, tendo o venerável
gato no lugar costumeiro junto a meus pés. Não corri as cortinas e olhava a
fora na janela do lado norte, que tinha em minha frente. Havia um prenúncio de
aurora no céu, e os delicados rendilhados da janela se recortavam graciosamente
sobre o fundo claro.
A
certa altura devo ter adormecido calmamente, porque tenho a vaga sensação de
ter emergido de estranhos sonhos quando o gato saiu violentamente da plácida
posição. O vi, à frouxa claridade da aurora, com a cabeça esticada a diante, as
patas da frente pousadas em meus tornozelos e as traseiras esticadas a trás.
Estava olhando intensamente a um ponto da parede um pouco à esquerda da janela,
um ponto que a meus olhos nada tinha de especial mas sobre o qual toda minha
atenção estava agora concentrada.
Observando,
verifiquei que Nigger-Man não se excitara em vão. Se o pano de arrás realmente
se moveu, não posso dizer. Acho que sim, muito de leve. Mas o que posso jurar é
que atrás dele ouvi um chiado baixo e distinto, como de rato ou camundongo. No
mesmo instante o gato pulou agilmente sobre a tapeçaria, arrastando a parte
suspeita ao chão com seu peso e deixando exposta a velha, e úmida parede de
pedra, remendada aqui e ali pelos restauradores e na qual não se via sinal dos
ladrões roedores.
Nigger-Man
ficou andando dum lado a outro junto àquele pedaço de parede, arranhando o
pedaço caído do pano de arrás e aparentemente tentando às vezes meter a pata
entre a parede e o soalho de carvalho. Nada achou, e depois dalgum tempo voltou
cansadamente ao lugar, nos pés da cama. Não me mexi, mas não dormi o resto da
noite.
Na
manhã interroguei todos os criados, e verifiquei que nenhum notara algo
anormal, exceto a cozinheira, que se lembrava do procedimento dum gato, que
ficara no peitoril da janela de seu quarto. Esse gato miara a uma hora
indeterminada da noite, acordando a cozinheira a tempo de o ver se precipitar
resolutamente na porta aberta e descer a escada. Cochilei um pouco depois do
almoço, e na tarde procurei de novo capitão Morrys, que ficou muito interessado
no que contei. Os singulares incidentes, tão sem importância e, no entanto, tão
curiosos, despertavam seu senso do pitoresco e provocaram uma série de
reminiscência de crendice local sobre fantasma. Ambos estávamos sinceramente
perplexos com a presença de rato e Morrys me emprestou algumas ratoeiras e um
pouco de trigo roxo, que mandei os criados espalhar em lugares estratégicos
quando voltei.
Me
recolhi cedo porque estava com muito sono, mas fui perturbado pelos mais
horríveis sonhos. Parecia que estava olhando de imensa altura para dentro duma
gruta escura, cheia de imundície até a altura dos joelhos, e no qual um homem
de barba branca, em traje de porqueiro, pastoreava seu rebanho de animal
flácido e esponjoso cujo aspecto me enchia de invencível asco. Depois, quando o
homem parou, acenando com a cabeça, um formidável enxame de rato começou a cair
no imundo abismo, e se atirou a devorar os animais e o homem ao mesmo tempo.
Fui
bruscamente despertado daquela terrífica visão pelos movimentos de Nigger-Man,
que estivera dormindo, como de costume, atravessado em meus pés. Nessa vez não
tive de indagar o motivo das rosnadelas e bufos, e do medo que o fazia cravar
as unhas em meus tornozelos, inconsciente de minha dor. Porque em toda a volta
do quarto as paredes ressoavam com o nauseante som, o chiado nojento de enormes
ratos enfurecidos. Não havia claridade da aurora pra deixar ver os panos de
arrás, mas eu não estava tão assustado a ponto de não poder acender a luz.
Quando
as lâmpadas brilharam vi toda a tapeçaria se agitando horrivelmente, fazendo
com que os desenhos um tanto originais executassem uma singular dança da morte.
Aquele movimento desapareceu quase logo, e o som também. Pulando da cama,
tenteei a parede com o cabo comprido dum esquentador que estava perto, e
afastei um pano da tapeçaria, para ver o que havia atrás. Nada vi além da
parede de pedra, e até o gato perdera aquele aspecto tenso que denunciava a
presença de coisas anormais. Quando examinei a ratoeira circular colocada no
quarto, encontrei todas as aberturas desarmadas, se bem que não restasse
indício de que algum fora apanhado e fugira.
Continuar
dormindo era impossível, e assim, acendendo uma vela, abri a porta e saí à
galeria, em direção à escada, pra descer a meu estúdio, com Nigger-Man seguindo
em meus calcanhares. Antes de atingirmos os degraus de pedra, no entanto, o
gato se precipitou em minha frente e desapareceu escada abaixo. Desci atrás e
subitamente percebi, no grande salão embaixo, ruídos de natureza inconfundível.
As
paredes apaineladas de carvalhos estava cheias de rato, chiando e roendo,
enquanto Nigger-Man corria dum lado a outro com a fúria dum caçador malsucedido.
Me dirigindo ao interruptor, acendi as luzes, que nessa vez não fizeram cessar
o ruído. Os ratos continuaram o motim, se precipitando com tal força e clareza
que pude finalmente determinar uma direção definitiva a seus movimentos.
Aquelas criaturas, em número aparentemente inesgotável, estavam empenhadas numa
estupenda migração de inconcebível altura a profundidade incomensurável.
Naquele
momento ouvi passos no corredor e logo depois dois criados abriram a pesada
porta maciça. Estavam percorrendo a casa pra descobrir o que levara todos os
gatos a um pânico assanhado e os fizera se precipitar em vários lances de
escada abaixo até se deterem, miando, diante da porta fechada do subsolo.
Perguntei se ouviram os ratos mas responderam negativamente. E quando lhes
chamaria a atenção aos ruídos nos painéis, verifiquei que o barulho cessara.
Com
os dois homens, desci à porta do subsolo, mas os gatos já se dispersaram. Mais
tarde decidi explorar a cripta inferior, mas no momento fui apenas inspecionar
as ratoeiras. Todas estavam desarmadas, embora vazias. Me convencendo de que
ninguém ouvira os ratos, exceto os felinos e eu, me sentei em meu estúdio até a
manhã, pensando profundamente e recordando todos os fragmentos de lendas que
conseguira desenterrar, referentes ao edifício que eu estava habitando.
Dormi
um pouco nas primeiras horas da tarde, recostado numa confortável cadeira da
biblioteca que meu plano medieval de mobília não conseguira abolir. Mais tarde
telefonei a capitão Morrys, que veio e me ajudou a explorar o subsolo.
Não
encontramos algo desagradável, se bem que não pudéssemos reprimir um
estremecimento ao nos lembrarmos que aquelas abóbadas foram construídas pelas
mãos dos romanos. Todos aqueles arcos baixos e pilares maciços eram romanos,
não o romanesco desfigurado dos saxões mas o severo e harmonioso classicismo da
era dos césares. De fato, nas paredes abundavam inscrições familiares aos
antiquários que repetidamente exploraram o local, tais como P. GETAE. PROP...
TEMP... DONA ... e L. PRAEC... VS PON T IFI ... ATYS... A referência a Átis me
fez estremecer, porque eu lera Catulo e sabia algo sobre os horríveis ritos do
deus oriental, cujo culto estava tão misturado ao de Cibele. Morrys e eu, à luz
duma lanterna, tentamos decifrar os desenhos singulares e meio apagados de
certos blocos de pedra irregularmente retangulares, geralmente considerados
altares, mas nada conseguimos. Nos lembrávamos de que um, uma espécie de sol
irradiando raio, fora considerado, pelos estudiosos, pertencendo a uma origem
não romana, sugerindo que aqueles altares foram meramente aproveitados pelos
sacerdotes romanos doutros templos mais antigos e talvez aborígenes que
existiram no mesmo local. Num dos blocos havia manchas castanhas que me fizeram
pensar. O maior, no meio do aposento, tinha uma configuração na face superior,
que indicava algo relacionado ao fogo, provavelmente oferenda de incenso.
Tais
eram as perspectivas naquela cripta diante de cuja porta os gatos miavam, e
onde Morrys e eu resolvemos passar a noite. Mandamos os criados trazerem
enxerga, a quem dissemos para não se importar com demonstrações noturnas dos
gatos, e Nigger-Man foi admitido, tanto pra auxiliar quanto pra nos fazer
companhia. Resolvemos conservar a grande porta de carvalho, uma reprodução
moderna, com fenda pra arejamento, hermeticamente fechada. Feito isso, nos
recolhemos com as lanternas ainda acesas, para esperar o que pudesse acontecer.
A
abóbada ficava muito funda nos alicerces do priorado e, indubitavelmente, muito
abaixo da superfície do escarpado precipício de pedra calcária que dominava o
vale deserto. Que ela fora a meta dos ratos brigões e inexplicáveis eu não
tinha dúvida, embora não pudesse dizer o motivo. Enquanto estava deitado,
esperando, tive a vigília ocasionalmente interrompida por sonhos imprecisos,
dos quais os movimentos inquietos do gato deitado a meus pés me despertavam.
Aqueles
sonhos não eram agradáveis e sim horrivelmente semelhantes ao que eu tivera na
noite anterior. Via de novo a obscura gruta e o porqueiro com os indescritíveis
animais esponjosos, fossando na imundície, e olhando aquelas coisas, que me
pareciam mais próximas e distintas, tão distintas que eu podia quase observar a
feição. Então observei a feição abatida dum deles, e acordei com tal grito que
capitão Morrys, que não dormira, riu muito. Talvez risse mais, ou menos, se
soubesse o que me fizera gritar. Mas só me lembrei mais tarde. Um horror
extremo paralisa às vezes a memória, de grata maneira.
Morrys
me acordou quando o fenômeno começava. No meio do mesmo sonho aterrador fui
despertado por ele me abanando de leve e me concitando a escutar os gatos. De
fato, havia muito a escutar, porque além da porta fechada ao topo dos degraus
de pedra, se elevava verdadeiro pandemônio de felinos miando e arranhando,
enquanto Nigger-Man, sem se importar com seus semelhantes lá fora, corria
excitadamente em volta das paredes de pedra lisa, nas quais eu ouvia a mesma
babel de ratos correndo que me perturbara na noite anterior.
Então
um terror agudo despertou em mim, porque aquilo era anomalia que nada normal
podia explicar. Aqueles ratos, se não eram o fruto duma loucura que eu
compartilhava com os gatos, deviam estar perfurando e deslizando dentro de
paredes romanas que eu julgara serem de blocos de sólida pedra calcária. A
menos, talvez, que a ação da água durante mais de 17 séculos perfurasse túneis
sinuosos que os roedores alargaram e ampliaram. Mesmo assim o horror espectral
não era menor, pois se eram animais vivos, como Morrys não os ouvia? Por que me
dizia pra observar Nigger-Man e escutar os gatos lá fora, e por que tentava
descobrir vagamente o que os pôde despertar?
Quando
consegui dizer, tão racionalmente quanto pude, o que julgava estar escutando,
meus ouvidos receberam a última impressão da debandada dos ratos que se
afastavam, sempre mais abaixo, muito além da cripta mais profunda, até parecer
que toda a rocha embaixo estava crivada de ratos em fuga. Morrys não se mostrou
tão cético quanto eu esperava. Ao contrário, pareceu profundamente
impressionado. Me fez notar que o clamor dos gatos à porta cessara como se
dessem os ratos por perdidos. Enquanto Nigger-Man tinha um ataque de renovada
inquietação, e estava arranhando freneticamente a superfície do grande altar de
pedra no meio do aposento, a qual ficava mais perto do enxergão de Morrys que
do meu.
Meu
medo do desconhecido foi enorme. Algo assombroso acontecera e eu via que
capitão Morrys, um homem mais moço, mais forte, e presumivelmente mais
materialista, estava tão impressionado quanto eu, talvez por causa de sua
permanente e íntima familiaridade com as lendas locais. No momento só podíamos
observar o velho gato preto enquanto arranhava com decrescente fervor a base do
altar, olhando ocasionalmente a mim e miando como costumava fazer quando queria
que eu fizesse algo.
Enfim
Morrys pegou uma lanterna, a pousou perto do altar e examinou o lugar onde
Nigger-Man estava arranhando, se ajoelhando silenciosamente e raspando o líquen
de séculos que uniam o maciço bloco pré-romano ao pavimento lajeado. Nada
encontrou e estava a ponto de desistir, quando notei uma circunstância trivial
que me fez estremecer, embora nada indicasse além do que eu já imaginara.
Falei
sobre minha descoberta e ambos olhamos sua manifestação quase imperceptível com
uma fixidez fascinada. Era apenas isso, a chama da lanterna, pousada no chão
perto do altar, se inclinava de leve, porém claramente pelo efeito duma
corrente de ar que não incidia sobre ela antes e que indubitavelmente vinha da
fenda entre o altar e o pavimento e da qual Morrys estava raspando o líquen.
Passamos
o resto da noite no estúdio brilhantemente iluminado, discutindo nervosamente o
que devíamos fazer em seguida. A descoberta duma cripta mais profunda que a
mais profunda alvenaria romana conhecida, e que jazia sob aquele edifício
amaldiçoado, alguma abóbada cuja existência os antiquários de três séculos não
suspeitaram, seria suficiente pra nos excitar, mesmo sem fundo sinistro. Em
nossa circunstância a fascinação era dupla ficamos na dúvida se desistiríamos
de nossa pesquisa e abandonaríamos o priorado a sempre por uma prudência
supersticiosa, ou se seguiríamos nosso impulso de aventura e enfrentaríamos
todos os horrores que pudessem nos esperar naquela profundidade desconhecida.
Na
manhã nos decidíramos e resolvêramos ir a Londres reunir um grupo de
arqueólogos e cientistas capazes de desvendar o mistério. Devo mencionar que
antes de abandonarmos o subsolo tentáramos, em vão, remover o altar central que
sabíamos ser a porta de novo poço de inominável terror. Homens mais
inteligentes que nós descobririam o segredo que abria aquela porta.
Durante
vários dias, em Londres, capitão Morrys e eu apresentamos os fatos, conjeturas,
e lendas, a cinco eminentes autoridades, todos homens que se podia ter a
certeza de que respeitariam segredos de família possivelmente revelados pela
exploração que empreenderíamos. Encontramos a maioria pouco inclinada a zombar,
e, ao contrário, muito interessada e sinceramente simpática. Não é necessário
os nomear, mas posso mencionar que entre eles estava sir Guilherme Brinton,
cuja escavação no Troad interessou ao mundo inteiro em sua época. Quando todos
tomamos o trem a Exham, me senti à beira de revelações assombrosas, e essa
sensação parecia simbolizada pelo luto de muitos ianques à notícia inesperada
da morte do presidente, no outro lado do mundo.
Na
tarde de 7 de agosto chegamos ao priorado de Exham, onde os criados me
asseguraram que nada de anormal acontecera. Os gatos, até o velho Nigger-Man,
estiveram perfeitamente calmos. Nenhuma ratoeira se desarmara em toda a casa.
Devíamos começar a exploração no dia seguinte, e até lá indiquei os quartos
destinados aos hóspedes.
Fui
dormir em meu quarto da torre, com Nigger-Man a meus pés. O sono veio rapidamente,
mas tive sonhos horrorosos. Houve uma visão duma festa romana, como a de
Trimálquio, com uma coisa horrenda numa travessa coberta. Depois veio a maldita
coisa periódica, o porqueiro e sua imundície mergulhados na gruta escura. No
entanto quando acordei era dia claro e havia sons normais na casa em baixo. Os
ratos, vivos ou fantásticos, não me perturbaram e Nigger-Man estava ainda
calmamente adormecido. Ao descer, soube que a mesma tranquilidade reinara na
casa toda, coisa que um dos sábios convidados, um camarada chamado Thornton,
dedicado à física, atribuiu absurdamente ao fato de que já vira o que certas
forças quiseram mostrar a mim.
Tudo
estava pronto e às 11h nosso grupo, composto de sete homens levando poderosas
lanternas elétricas e apetrechos pra escavação, desceu ao subsolo, e a porta
foi aferrolhada por dentro. Nigger-Man estava conosco, porque os pesquisadores
não viam razão para desprezar sua irritabilidade, e desejavam que ele estivesse
presente no caso de haver alguma obscura manifestação de roedor. Observamos as
inscrições romanas e os desenhos desconhecidos dos altares apenas por alto,
porque três dos sábios já os viram, e todos sabiam as características. Nossa
atenção se concentrou no monumental altar do centro, e dentro duma hora sir
Guilherme Brinton o fizera girar atrás, balanceado por algum contrapeso
invisível.
Então
surgiu um espetáculo horroroso, que nos desorientaria se não estivéssemos
preparados. Além duma abertura quase quadrada no pavimento lajeado, espalhada
sobre um lance de degraus de pedras tão prodigiosamente gastos que no centro
formavam pouco mais que um plano inclinado, havia uma profusão de ossos humanos
ou semihumanos. Os que ainda conservavam a forma de esqueletos mostravam
atitudes de pavor pânico, e em todos se viam marcas de serem roídos. As
caveiras e crânios revelavam pertencer a idiotas, cretinos ou primitivos seres
meio macacos.
Sobre
os degraus recobertos por aqueles despojos horrendos se cavava uma passagem
aparentemente cinzelada na sólida rocha, e na qual vinha uma corrente de ar.
Essa corrente não era o bafo súbito e deletério escapado duma cripta fechada e
sim uma leve brisa fresca. Não nos detivemos muito ali, e, estremecendo,
começamos a abrir caminho nos degraus abaixo. Foi então que sir Guilherme,
examinando as paredes cortadas na rocha, fez a estranha observação de que a
galeria, de acordo com a direção dos entalhos, teria sido escavada de baixo acima.
Agora
devo ser muito explícito e escolher as palavras.
Depois
de descermos alguns degraus entre os ossos roídos, vimos que havia luz adiante.
Não uma fosforescência miasmática, mas uma luz do dia coada, que só podia
proceder de fendas desconhecidas na estrutura rochosa que dominava o vale
deserto. Não era de admirar que tais fendas passassem despercebidas fora,
porque não só o vate era absolutamente desabitado quanto o despenhadeiro tão
alto e tão a pique que só um aeronauta poderia estudar a superfície com
cuidado. Alguns passos mais, e ficamos literalmente sem respiração, ao
contemplar o que tínhamos diante dos olhos. Tão literalmente que Thornton, o
pesquisador físico, desmaiou nos braços do homem assombrado que estava atrás.
Morrys, com o rosto gordo flácido e branco, soltou um grito inarticulado,
enquanto eu, acho que o que fiz foi abrir a boca e tapar os olhos.
O
homem que estava atrás de mim, o único do grupo que era mais velho que eu,
resmungou o trivial meu-deus! com a voz mais trêmula que já ouvi. De sete
homens cultos, só sir Guilherme Brinton manteve a compostura, com maior honra
ainda, por ser o que ia na frente e, portanto, ter sido o primeiro a divisar o
espetáculo.
Era
uma gruta de enorme altura, envolta em penumbra, tão profunda que as paredes se
perdiam de vista. Um mundo subterrâneo de ilimitado mistério e horrível
sugestão. Havia construção e outros restos arquitetônicos. Num relance de
olho,s apavorado, vi formas desgastadas de túmulos, um círculo selvático de
saxão e uma construção de madeira da Inglaterra primitiva. Mas tudo isso
passava despercebido ante o fantástico espetáculo apresentado pela superfície
geral do terreno. Vários metros em volta dos degraus se estendia um insano
amontoado de ossos humanos, ou ossos ao menos tão humanos quanto os dos
degraus. Como um mar encapelado, se espalhavam, uns completamente separados,
mas outros inteira ou parcialmente articulados em esqueletos, que,
invariavelmente em postura de demoníaco frenesi, lutando contra alguma ameaça
desconhecida ou segurando outras formas com intenções canibalescas.
Quando
doutor Trash, o antropologista, começou a classificar os crânios, encontrou uma
raça inferior que o desconcertou inteiramente. Eram muito inferiores ao homem da
caverna na escala da evolução, mas em todos os casos positivamente humanos.
Muitos eram de grau mais alto e alguns eram crânios de tipos sensivelmente mais
desenvolvidos. Os ossos estavam roídos, em grande parte por ratos: Membros
caídos do exército letal que encerrara a antiga tragédia.
Me
admiro de como algum de nós sobreviveu e conservou o juízo depois daquele
horrendo dia de descoberta. Não Hoffmann nem Huysmans poderiam conceber uma
cena mais selvagemente incrível, mais freneticamente repelente, ou mais
goticamente grotesca que aquela gruta mergulhada em penumbra, através da qual
nós sete avançamos vacilantes, cada qual tropeçando de revelação a revelação, e
com o propósito de não pensar nos acontecimentos que desenrolariam naquele
lugar há 300, 400, 1000 ou 10 mil anos. Era a antecâmara do Inferno, e o pobre
Thornton desmaiou outra vez quando Trash disse que alguns daqueles esqueletos
foram descendentes de quadrúpedes havia mais de vinte ou trinta gerações.
O
horror se juntava ao horror quando começamos a interpretar as ruínas
arquitetônicas. Os quadrúpedes, com seus ocasionais suplementos de bípedes,
foram guardados em jaulas de pedra, das quais deviam ter escapulido no último
delírio de fome ou de medo dos ratos. Houvera grandes rebanhos, evidentemente
engordados com os vegetais bravos cujos restos se podiam ainda ver como uma
espécie de resíduo pestilento no fundo de vastas celas de pedra mais velhas que
Roma. Eu sabia agora por que meus antepassados possuíam tão vastos jardins. A
finalidade dos rebanhos não era mais mistério pra mim.
Sir
Guilherme, em pé com a lanterna elétrica na ruína romana, traduziu em voz alta
o mais chocante ritual que jamais ouvi. E falou da dieta do culto antediluviano
que os sacerdotes de Cibele encontraram e misturaram com o deles. Morrys,
apesar de habituado às trincheiras, não podia andar direito quando saiu do
edifício de construção inglesa. Era açougue e cozinha. Já esperava isso, mas
era demais ver utensílios familiares ingleses no meio daquilo e ler grafia
familiar inglesa ali, alguns escritos datados de 1610. Não me atrevi a entrar
naquele edifício cujas atividades demoníacas foram interrompidas apenas pela
adaga de meu antepassado Válter de la Poer.
No
que me atrevi a entrar foi na construção saxã cuja porta de carvalho caíra, e
ali encontre uma terrível fila de dez celas de pedra com barras enferrujadas.
Três tinham ocupante, todos esqueletos de evolução avançada, e no dedo ósseo
dum encontrei um anel de sinete com meu escudo de arma. Sir Guilherme descobriu
uma cúpula com celas ainda muito mais antigas, sob a capela romana, mas estavam
vazias. Sob elas havia uma cripta com caixões de ossos arrumados em ordem,
alguns com terríveis inscrições gravadas em latim, grego e frígio.
Entretanto
doutor Trash abrira um dos túmulos pré-históricos e tirara crânios que eram
pouco mais humanos que o dum gorila e que exibiam indecifráveis gravações
ideográficas. No meio de todo aquele horror meu gato passeava, imperturbável.
Uma vez o vi monstruosamente trepado no alto duma pilha de ossos e tive vontade
de conhecer os segredos que estariam escondidos atrás de seus olhos amarelos.
Tendo
observado até certo ponto as espantosas revelações daquela área envolta em
penumbra, tão horrendamente antevista em meu sonho intermitente e nos voltamos
à profundidade aparentemente incomensurável da lôbrega caverna, onde nenhum
raio de luz da ribanceira podia penetrar. Nunca saberemos que invisíveis mundos
fantásticos jaziam além da pequena distância onde nos aventuramos, porque
decidimos que aqueles segredos não eram próprios à humanidade. Mas víramos o
bastante pra nos mantermos bem perto uns dos outros, porque não avançáramos
muito quando a luz das lanternas elétricas nos mostrou aquela maldita
infinidade de buracos nos quais os ratos se banquetearam e cuja súbita falta de
reabastecimento levara a raivosa hoste de roedores primeiro a se lançar sobre
os rebanhos de seres vivos enfraquecidos pela inanição e depois a se
precipitarem a fora do priorado naquela histórica orgia de devastação que os
aldeãos nunca esquecerão.
Meu-deus!
Aqueles negros buracos putrefatos cheios de ossos roídos e crânios perfurados!
Aqueles abismos de pesadelo, entupidos com ossos de pitecantropos, celtas,
romanos e ingleses, de incontáveis séculos! Alguns estavam cheios, e ninguém
saberia dizer a profundidade. Outros não revelavam ainda o fundo à luz de
nossas lâmpadas elétricas e pareciam povoados por sombras hostis. O que fora
feito, pensei, dos desgraçados ratos que se precipitaram naqueles buracos, no
meio da escuridão daquele dédalo?
Uma
vez meu pé escorregou perto dum daqueles abismos hiantes, e tive um momento de
pavor indizível. Devo ter ficado suspenso durante algum tempo, porque não via
alguém do grupo além do gordo capitão Morrys. Então veio um som daquela
vastidão negra e sem fim, que julguei conhecer, e vi meu velho gato preto
passar por mim como um deus egípcio alado, direto adentro do ilimitado abismo
do desconhecido. Mas também não demorei muito, porque dentro de mais um segundo
não me restava dúvida. Era a cavalgada horripilante daqueles ratos fantasmas,
sempre buscando novos horrores, e determinados a me arrastar ainda mais ao
fundo daquelas tremendas cavernas do centro da Terra, onde Nyarlathotep, o
louco deus sem rosto, uiva cegamente na escuridão, ao som das flautas de dois
faunos idiotas.
Minha
lâmpada elétrica se extinguiu, mas continuei correndo. Ouvia voz, grito e
ressonância, e acima de tudo se erguia aquele tropel implacável, insidioso, se
erguendo pouco a pouco, como um cadáver rígido sobre um rio oleoso que corre
sob pontes intermináveis de ônix a um mar negro e pútrido.
Algo
pulou sobre mim, macio e mole. Devem ter sido os ratos, o exército viscoso,
nauseante, que se banqueteia com mortos e vivos. Por que não comeriam os de la
Poer, como os de Poer comiam coisas proibidas? A guerra comeu meu rapaz, diabos
levem a todos. E os yanks comeram Carfax com chamas e o grão-senhor Delapore e
seu segredo. Não. Já disse que eu não sou aquele demônio pastor de porco na
caverna crepuscular! Não era o rosto gordo de Edward Morrys naquela coisa
balofa e asquerosa! Quem diz que sou um de la Poer? Estava vivo mas meu filho
morreu! Pode um Morrys ficar na posse das terras dum de la Poer? É vudu! Aquela
víbora malhada. Maldito sejas, Thornton. Te ensinarei a desmaiar com medo do
que minha família fazia! Te sangrarei, miserável. Ensinarei o que é bom. Magna
Mater! Magna Mater!... Átis... Dia ad aghaidh's aodaun... agus bas dunach ost!
Dhonas’ s dholas ost, agus leat-sal... Ungi... rrlh... chchch...
É
o que dizem que eu dizia quando me encontraram na escuridão depois de três
horas. Me encontraram encolhido no escuro sobre o corpo gordo meio devorado de
capitão Morrys, com cochichos assustados sobre minhas proezas hereditárias.
Agora fizeram voar ao ar o priorado de Exham, me tiraram Nígger-Man e me
fecharam neste quarto gradeado, em Harnwell, com cochichos assustados sobre
minhas proezas hereditárias. Thornton está no quarto contíguo, mas me proíbem
de falar consigo. Também tentam alterar muitos fatos ocorridos no priorado.
Quando falo do pobre Morrys, me acusam duma coisa horrenda, mas devem saber que
não fiz aquilo. Devem saber que foram os ratos, os nojentos ratos tumultuosos,
cuja cavalgada nunca me deixará dormir. Os ratos-fantasmas que correm atrás do
reboco neste quarto e me querem arrastar a maior horror que os que já conheci.
Os ratos que nunca poderão ouvir. Os ratos nas paredes!
Comentários
Postar um comentário