CATALEPSIA - Conto clássico de terror - Carlos Díaz Dufoó


 

CATALEPSIA

Carlos Díaz Dufoó

(1861 – 1941)

Tradução de Paulo Soriano

 

O meu espírito girou sobre si mesmo, elevou-se por um momento e, como um pássaro ferido, caiu repentinamente. Caía, rodava, em meio à noite alta. Eu deslizava na sombra, com a sensação de um imenso vazio, com a consciência de minha queda, uma queda eterna... eterna...

Minha alma estava triste, muito triste. Queria chorar e não podia. Ai! Não tinha olhos. Meus olhos! Devolvam-me os meus olhos!

Sabem o que é querer chorar e não ter olhos?

Eu caía, caía sempre. Passou uma estrela. Quis segurar-me. Ai! Eu não tinha braços. Meus braços! Sabem o que é ter vontade e não ter braços?...

E eu caía... caía...

Logo deram cinco horas no relógio da igreja.

Uma... duas... três... quatro... cinco!...

E me senti rígido, imóvel!

Aquele era eu! Sentia-me encerrado naquela armadura de aço. Meu corpo! Havia encontrado meu corpo.

Trêmula, a alma se aproximou e pousou sobre mês lábios frios, gelados!  Quão fria é a morte!

E uma conversa sem palavras se entabulou entre aquele corpo inanimado e aquela alma solitária.

Eu já não caía. Era o repouso, o nada. O nada!... Um tropel de trevas... Um frio horrível, penetrando até a medula dos ossos... E, depois, o vazio, um profundo vazio dentro daquele corpo. O sangue sem ritmos de vida nas artérias, o coração insensível como ave asfixiada, o pulmão sem o seu resfolegar de forja e, por cima daqueles despojos, a alma flutuando como uma virgem que sobrenada em um naufrágio.

E ouvia... um sopro leve de vozes humanas, fragmentos de palavras: “uma noite em vela”, “às seis...”, frases soltos, risos e, também, soluços, bem distantes, muito distantes, que apenas os ouvidos dos mortos podem alcançar.

Velavam o meu corpo. Ali estavam, em diálogo insubstancial, ao lado do meu espírito. A crepitação dos círios penetrava em meu cadáver, serpenteando ao longo da espinha dorsal. 

Então, um desejo louco, uma ânsia desesperada se apoderou de mim: minha alma queria o meu corpo, contemplar pela última vez aquele invólucro, dar-lhe um adeus derradeiro, beijar aqueles lábios sem respiração, revolutear docemente sobre aqueles restos, assomar a seus olhos como o suicida assoma ao fundo do abismo... Era meu aquele corpo!  E um imenso desespero se apoderou de minha alma, uma raiva insensata. Cheguei à imprecação!... Cheguei à blasfêmia!... E os círios continuavam a crepitar lugubremente, enquanto os homens afogavam seu o seu tédio no caudal incolor de sua conversa incolor.

Amanhecia. Ou ouvi alguém dizê-lo. Coisa estranha!  A luz do dia penetrava em minha alma com claridades resplandecentes. Sentia-me inundado de luz. Não a via. Eu a sentia como um cego deve sentir o nascimento do Sol.  Salpicava-me de partículas rubras que giravam como as chispas de um trem em movimento. Ora formavam círculos concêntricos ao redor de um ponto brilhante; ora se balançavam em grinaldas; ou revoluteavam como salpicos de espuma lançados por um mar de fogo; e, até mesmo, se elevavam em colunas para decair esfareladas em orvalho luminoso. E aquele beijo de luz, naquela alvorada tépida de primavera, veio ferir a fronte imóvel do meu cadáver.

Amanhecia. Elevavam-se da rua esses mil ruídos que tomam a vida para palpitar dentro de todas as consciências, para fundirem-se em todos os corações, prelúdio do hino da criação, ascendendo lentamente até o céu. E minha alma, ajoelhada ao lado do meu corpo, subia também, elevava-se no salmo santo que a vida canta. Minha alma sentia a felicidade, a imensa felicidade de viver. E aqueles homens ali, permaneciam a espiar o meu corpo com avidez de aves de rapina, cravando as garras de seus risos afogados em minha carne de cemitério.

Depois... uma agitação inesperada... Passos que se aproximam, ressonantes, saltos de bêbado na lousa de um sepulcro... Gritos de dor sublime, corpos que desmaiam... O ruído de uma tampa a cair sobre um ataúde...

Outra vez o frio, o horrível frio, que entra em minha medula!... E a sensação de vazio... de um vazio imenso prolongando-se na treva.

Davam seis horas no relógio da igreja!  Uma... duas... três... quatro... cinco!... Seis!...

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