O MAUSOLÉU - Conto Humorístico de Terror - Paulo Soriano
O MAUSOLÉU
Paulo Soriano
1
— Sempre que me
perguntam como fiquei rico, invento uma história e dou boas risadas com a
credulidade das pessoas — disse o velho comerciante Jules Cocard a seu jovem
amigo Gervais Desmolins. — Já ganhei na
loteria, já fiz parte de um bando de corsários, já desenterrei um tesouro
imemorial, imenso, habilmente escondido por piratas marroquinos nas areias de
uma praia remota do Mediterrâneo. Esta, aliás, é versão mais interessante e a
que mais se aproxima da realidade, malgrado menos fúnebre. Ah, Gervais, vejo
uma curiosidade imensa brilhar nos seus olhos! A você, meu amigo, contarei a
verdade. Você é merecedor de toda a minha confiança e sei que não dará com a
língua nos dentes nesta ou em outras tavernas de Amiens. E verá que não rirei
no final.
— Você garante?
— perguntou Gervais Desmoulins.
— Garanto —
respondeu o ancião. — Quando jovem — prosseguiu —, eu era um andarilho sem eira
nem beira. Um vagabundo que, à época da vindima, oferecia os meus serviços aos
pequenos agricultores ou grandes proprietários de terra em troca de comida,
abrigo e um punhado de moedas de pouco valor. Ah, que época maravilhosa do ano
era aquela! O trabalho era alegre, os abrigos eram frescos, as moedas eram a
garantia de noites felizes junto às prostitutas do vale do Oise.
“Certa feita,
por um motivo que você logo saberá, ofereci os meus serviços a um enfiteuta de
G***, que monopolizava a produção de uvas e grãos na região, mesmo sabendo que
ele não fornecia alimento aos seus trabalhadores e descontava do salário a
noite de alojamento. Era um homem velho, baixo, curvo, de pequeninos e
assustadores olhos azuis. Chamava-se Le Poittevin e era a avareza em pessoa. Eu
me divertia à beça quando o velho fazia o pagamento diário aos trabalhadores de
suas quintas. Aquilo era-lhe uma tortura. O homem suava, arfava, bufava como um
rocim velho e cansado. A sua mão tremia quando separava, de uma ou outra pilha
de moedas, as que seriam dadas em pagamento ao diarista. A mão ia e voltava
diversas vezes, hesitante. E quando ele, finalmente, despejava as moedas na mão
do labrego, fechava os olhos num esgar doloroso. Era como se lhe arrancassem
uma generosa fatia de carne das ancas magras.
“Sempre que
terminava a colheita, eu amarrava a minha trouxa ao cajado e partia em buscas
de novas aventuras. Mas em G*** foi diferente. Assim que cheguei à cidade,
apaixonei-me perdidamente por uma garota de dezoito anos, filha da lavadeira
Fleuriot. Então, procurei emprego naquelas paragens aprazíveis — apesar das
adversas condições impostas pelo avarento Le Poittevin — e, passada a vindima,
resolvi ficar por lá e conquistar o coração da garota mais linda que já vira em
minha vida, embora ela tivesse o gênio de um furacão.
“— Quanto mais
difícil a mulher — dissera-me o coveiro Labouret, piscando-me um olho maldoso
—, mais saboroso é o prêmio.
“Embora eu
vislumbrasse sabedoria naquelas palavras, não via bom gosto nelas. A um jovem
apaixonado como eu, parecia-me aviltante aquele comentário, mas, nem por isto,
deixei de ouvir o coveiro concluir o seu pensamento:
“— Mas o amigo
há de arranjar um argumento irrefutável e vencer a resistência da donzela
enfezada.
“Qual seria
aquele argumento, eu não sabia. Mas sabia que o coveiro Labouret seria a minha
salvação naquele distante outono de 1862. Graças a ele, consegui um lugar para
morar e pude economizar umas boas moedas que — acreditava — me seriam úteis no
inverno.
“— Não tem onde
dormir, certo? Venha comigo.
“Labouret me
levou ao cemitério que circundava a igreja de Notre Dame de G***. Lá, parou
diante de um antigo e circunspecto mausoléu revestido de mármore negro. Meteu a
mão no bolso do casaco e dele retirou um imenso molho de chaves. Rapidamente,
como num passe de mágica, escolheu uma delas e com esta abriu a pesada porta de
nogueira. Entrou e ordenou que eu o acompanhasse.
“— Este é o meu
refúgio secreto — disse ele, contemplando com orgulho a sua obra de arte. —
Doravante, será o seu lar. Somente duas pessoas estão sepultadas aqui. São os
dois filhos gêmeos do Sr. Sallambier. Ele pretendia que todos os membros de sua
família aqui tivessem o seu descanso eterno. Mas veio a Revolução e o Sr.
Sallambier, que era nobre de origem, embora carecesse de títulos, fugiu para as
Antilhas, estabelecendo-se depois, ao que parece, na Louisiana. Por meio de um
procurador, liquidou os seus negócios na região do Oise. Há mais de quarenta
anos que não se ouve falar dele e de seus descendentes.
“O interior do
mausoléu era um recinto primoroso. Os nichos onde estavam sepultados os irmãos
Sallambier e, bem assim, os que deveriam receber os seus familiares, situados
nas paredes laterais do grande túmulo, haviam sido cobertos com uma alvenaria
esmeradamente caiada de branco. No centro, havia dois catafalcos de mármore
negro, apoiados sobre pilotis. No da esquerda, Labouret criara um altar dedicado
à Nossa Senhora. Nele, eternamente ardia um imenso círio. No da direita, o
coveiro fizera uma espécie de leito confortável, com colchão, cobertores e
travesseiros de pena de ganso. Havia, no fundo, encostados à parede, um armário
de pinho, uma penteadeira antiga, trabalhada com esmero (item indispensável,
segundo o coveiro galanteador), uma mesinha manca, um tamborete e um baú.
“— Você pode ver
que, no alto da parede dos fundos, há quatro seteiras. Elas permitem que entre
a luz do Sol e que o ar circule, mas a chuva não passa pela greta, graças à
espessura da parede. Veja que as paredes e o chão estão maravilhosamente
limpos. Se você quiser ficar aqui, há de me prometer que manterá o ambiente
sempre limpo e arejado. Todo mês, as paredes serão lavadas com água aromática;
o chão, bem escovado com sabão. Quando for comer, lembre-se de limpar a mesinha
e varrer o chão. Como eu lhe disse, este é o meu refúgio sagrado. É aqui que
recebo as minhas impávidas namoradas.
“O mausoléu
abandonado da família Sallambier passou, portanto, a ser o meu lar; e os
gêmeos, ali sepultados há coisa de oitenta anos, os meus discretos confidentes,
para cujas almas eu sempre orava, agradecendo a atenção e a companhia.
“Segui à risca
as instruções de meu camarada coveiro, que parecia satisfeito com a minha
conduta obediente. Todos os dias, ao retornar de minhas andanças, eu
encontrava, sobre a toalha do oratório, um pedaço de pão, uma rodela de salame
e um pouco de vinho. Às vezes, ele me pedia a chave do mausoléu e me mandava
dormir na fria guarita, que servia de escritório e depósito de materiais. Sem
dúvida, eram noites em que Labouret tinha companhia feminina.
“Certa tarde,
com o coração oprimido pela obstinada resistência de Sabine — a loura linda e
feroz que eu amava —, retornei ao cemitério, após mais um dia de tediosa
vagabundagem. Mal havia transposto o
portão, deparei-me com uma cena singular. À distância de duas dezenas de
passos, Le Poittevin, meu antigo patrão, saía de um mausoléu, bem próximo ao
que eu habitava, e o trancava a chave. Para não ser notado, eu havia me
escondido por detrás do tronco de um cipreste, sob as pernadas macabras e
sinuosas, e, assim, pude ver o sovina mergulhar a chave no bolso, limpar com um
lenço puído as bagas de suor que lhe inundavam a fronte calva, bufar,
resfolegar e sair pressurosamente do cemitério, olhando às furtadelas, como se
temesse ser visto por ali.
“Comentei aquele
incidente com o meu amigo coveiro.
“— Ele sempre
vem aqui, às escondidas, quando retorna de uma de suas viagens rotineiras a
Paris — confidenciou-me Labouret. —
Aquele é, obviamente, o mausoléu de sua família. Lá estão sepultados o seu pai,
a sua mãe, os seus irmãos e alguns sobrinhos. Le Poittevin é um católico tão
devoto quanto Calvino ou o arcebispo de Canterbury. Aí tem coisa... Tem treita,
sim...
“Um mês após
esse incidente, Labouret me contou uma história fúnebre, conquanto divertida —
pelo menos para mim —, em que o odiado avarento era o protagonista.
“— Ninguém sabe
ao certo — disse-me o coveiro — o que Le Poittevin tanto faz — ou melhor, fazia
— em Paris. Dizem que trocava as notas bancárias, recebidas em pagamento de
suas safras, por moedas de ouro. O fato que aconteceu hoje à tarde reforça a
verdade contida nesta suposição. Mal desceu do trem, voltando de sua misteriosa
viagem à capital, o velho avarento foi abordado pelo oficial de justiça
Delatour e conduzido ao Mosteiro de Saint Benoît de Nursie. Delatour me relatou, rindo muito, tudo o que
aconteceu.
“‘Todos sabem
que Le Poittevin era o enfiteuta das terras que cultivava. Por isso, tinha de
pagar um foro anual ao senhorio, que é o Mosteiro de Saint Benoît de Nursie.
Mas era um Deus nos acuda ver a cor do dinheiro de Le Poittevin. Em seu
sobretudo, ele conservava sempre um saco de veludo púrpura, onde ficavam,
contadas e recontadas, as moedas destinadas ao pagamento do foro anual, mas
postergava a entrega o quanto podia. O dinheiro estava sempre ali, num dos
bolsos do sobretudo cinza esgarçado; todavia, o velho muquirana evitava a todo
custo tirá-lo dali, como se o bolso fosse um terrível ninho de cobras.
“‘Neste ano,
como nos anteriores, o velho atrasou o pagamento. O abade Largent, antes de
tomar qualquer providência judicial, apelou ao meirinho, que levou o
avarento, a cabresto, ao mordomo do mosteiro.
“‘— Diabos! —
exclamou Le Poittevin, dirigindo-se ao mordomo. — Que os diabos o carreguem,
senhor! Isto são modos de tratar um enfiteuta honesto e generoso como eu? Havia
a necessidade da escolta de um oficial de justiça?’
“‘Le Poittevin
estava visivelmente transtornado. Seus olhos azuis estavam injetados de um ódio
rubro e os seus lábios tremiam de indignação.
“‘— É o foro que
o senhor deseja? É o foro? Então, ei-lo aqui.
“‘O avarento
levou uma mão trêmula a um dos inúmeros bolsos de seu velho e andrajoso
sobretudo, mexeu e remexeu lá no fundo, e extraiu um saco de moedas.
“‘Furiosamente,
atirou o saco sobre a mesa, dizendo:
“‘— Eis aqui o
seu foro! Eis aqui o seu maldito foro!
“‘E acresceu,
com absoluta confiança:
“‘— Se houver um
centavo a menos, mande-me à forca. À forca! Aqui está o meu pescoço! Se houver
um centavo a mais, que fique de esmola a este maldito mosteiro! Isto mesmo: que fique de esmola ao maldito
mosteiro! E que os diabos o carreguem, senhor! Passe bem!’”
“Dizendo isto —
prosseguiu o coveiro em sua narrativa —, Le Poittevin limpou o suor da testa e
das bochechas e marchou para casa. Foi
lá que aconteceu a tragédia.
“— Tragédia? —
perguntei a Labouret.
“— Escute-me.
Marie Madeleine contou-me tudo.
“— Quem é Marie
Madeleine?
“—Não se lembra
dela? É uma pobre infeliz, criada de Le Poittevin. Ela assistiu a tudo.
“— O que
aconteceu?
“— Escute-me.
Apenas escute o que eu lhe digo — disse-me Labouret, com impaciência. — Le Poittevin chegou em casa afobado, com o
rosto em chamas, e se recolheu ao escritório. Marie Madeleine, que era muito
devotada ao patrão, apesar do salário de fome que recebia, ficou deveras preocupada
ao vê-lo tão furibundo. Embora o avarento se aborrecesse com frequência — algo
que é absolutamente natural num muquirana —, daquela vez o velho passara dos
limites. Chutara a porta, dera um pontapé na gata Colombine (que, é claro, não
era sua, mas Marie Madeleine, já que gatos implicam despesas), e subira ao
gabinete, onde se enfurnou.
“‘Passados uns
instantes, Marie Madeleine seguiu o patrão e, por uma das diversas e
centenárias frestas na porta do escritório, viu o que lá dentro acontecia.
“‘Le Poittevin
sentou-se à escrivaninha, tirou um saco de moedas do bolso, abriu-o e despejou
o conteúdo sobre a tampa.
“‘Ao fazê-lo,
soltou um grito de terror.
“‘— Diabos! — gritou. — Eu, de tão transtornado, me
enganei! Entreguei ao convento não o saco do pagamento do foro, mas o da venda
de minha safra! Entreguei dez vezes mais que o devido. Vou, agora mesmo,
reclamar a diferença.
“‘Levantou-se
com um sorriso macabro no rosto. Já se dirigia à porta, quando, de súbito,
estacou. Uma palidez mortal subiu-lhe a face e o seu corpo pequeno tremeu como
se acometido por uma febre convulsiva.
“‘— Santo Deus!
Santo Deus! — balbuciou. — O que eu disse? O que eu fiz? Eu dei de esmola o
excedente ao convento! E o oficial de justiça é a ilibada testemunha. Estou
pobre! Estou pobre! Estou pobre!
“‘E caiu, como
se fulminado por um raio, no chão.
“‘Estava
morto’”.
2
— Quatro dias
depois — prosseguiu Cocard, levando aos lábios uma taça de conhaque fino —, o
corpo de Le Poittevin foi sepultado no mausoléu da sua família. Somente uma
pessoa — além de mim, do coveiro e do sacerdote — estava presente à cerimônia. Era um tal
de Henri Dufaÿs, sobrinho-neto do falecido e seu único herdeiro.
“Tão logo o
mausoléu foi fechado à chave, Dufaÿs correu à casa do defunto, onde iniciou uma
frenética busca pelo cofre em que o tio-avô deveria ter guardado a sua imensa
fortuna. Todos sabiam que o velho falecido vivia miseravelmente, juntado cada
centavo que lhe caía nas mãos e entesourando todos os fartos rendimentos que
obtinha com as colheitas de suas quintas. O velho jamais se casara. Dizia, em
alto e bom som, que as mulheres eram todas gastadeiras e os filhos eram todos
pródigos, perdulários incorrigíveis, sem exceção. Quanto aos banqueiros, dizia
que não havia um que não fosse ladrão e agiota, e que preferia pôr o seu
dinheiro na mão de Satanás a fazer qualquer depósito numa instituição
financeira. Não havia, pois, dúvida alguma quanto à existência de um vultoso
tesouro, acumulado por mais de cinquenta anos.
“Foram dois dias
de uma busca rigorosa. Todos os locais foram esquadrinhados. Marie Madeleine
foi presa e interrogada. A velha mulher disse que nunca vira qualquer cofre na
casa do enfiteuta. Definitivamente, não sabia onde o finado guardava o seu
dinheiro. O padre teve de intervir, pois sabia que a abnegada serva era um
exemplo de honestidade e retidão.
“'— Essa mulher sempre se confessa e comunga aos domingos — disse o padre. — Como sacerdote, posso afirmar que a cobiça não está entre os seus pecados. E, se minha palavra de pároco católico não basta, rememoro-lhes, senhores, que as moedas de ouro do falecido foram encontradas onde ele as deixou. O oficial de justiça as confiscou para amortecer os débitos do defunto para com o fisco. Se essa senhora fosse uma ladra, certamente o dinheiro não seria encontrado.
“Liberada a
mulher, o herdeiro mudou de tática. Convocou um exército de desocupados,
prometendo uma generosa gratificação a quem encontrasse o butim.
“Eu fui um dos
voluntários.
“Foi uma semana
de buscas incansáveis. A casa foi posta
abaixo: não ficou pedra sobre pedra. As fundações foram removidas. O jardim e o
quintal foram escavados a uma profundidade de dois metros. Nada foi encontrado.
“Por fim, o
herdeiro desistiu da busca na casa. Passou a procurar nas quintas lavradas pelo
falecido, mas sem sucesso. Sabia que não poderia pôr abaixo as demais construções, já
que a isto o Mosteiro de Saint Benoît de Nursie se oporia veementemente. Além
disso, muito duvidava que o velho tivesse ocultado o seu tesouro nas terras do
mosteiro. Haveria de ser um lugar seguro
e exclusivamente seu. Mas qual? Dando-se
por vencido, resolveu partir. Todas as terras enfitêuticas do tio-avô estavam
hipotecadas e o jovem senhor não tinha como remi-las. Não sem o tesouro
perdido.
“— Velho
desgraçado! Unha de fome! Eis o que eu encontrei entre os seus pertences: uma
moeda de prata. Uma única, solitária, infeliz e pestilenta moeda de prata! —
disse ele ao seu exército de desolados.
“E prosseguiu:
“— Sabem de uma
coisa? Que esse velho infeliz, cúmplice do Diabo, fique com o tesouro para si e
faça bom uso dele em seu túmulo. Renuncio a esse tesouro maldito!
“E, dizendo
isto, me chamou.
“— Faça bom uso
dessa prata. Renuncio a essa herança desgraçada em seu favor — disse-me,
depositando a moeda em minha mão. — Adeus!
“Então, partiu
da cidade de G*** para nunca mais voltar”.
3
— Naquela noite,
na companhia dos silenciosos gêmeos Sallambier, com os quais eu me habituara a
conversar em meus momentos de solidão, não consegui conciliar o sono.
“As palavras do
herdeiro, que me causaram uma imensa impressão, ressoavam em meus ouvidos como
uma ladainha fúnebre.
“— Na verdade,
Sr. Sallambier aîné, eu acabei sendo o herdeiro do velho sovina — disse ao mais
velho dos gêmeos falecidos. — Eis aqui a
moeda de prata. Foi tudo o que o sobrinho-neto pôde encontrar em suas
propriedades. Foi tudo o que restou de uma fortuna incomensurável...
“No fundo de meu
espírito, o Sr. Sallambier aîné me respondia com um suspiro enfadado,
dizendo-me, numa voz espectral, mas perfeitamente articulada:
“— E de pensar,
meu jovem Jules Cocard, que o velho avarento está, agora mesmo, a fazer uso de
seu imenso tesouro em seu mausoléu...
“Naquele
instante, como se à luz intensa e fugidia de um relâmpago, tudo ficou claro
para mim.
“Voltei os olhos
para a parede à minha esquerda. À luz frouxa e trêmula do círio, parecia
assomar, vinda do fundo do sepulcro, à superfície da alvenaria caiada de
branco, uma réstia brilhante, que assumia os contornos de um jovem cavalheiro.
“— Sr.
Sallambier aîné, muito obrigado por responder-me —, disse eu ao defunto,
sinceramente agradecido, com uma mesura respeitosa.
“Já amanhecia.
Corri ao portão do cemitério e esperei, pacientemente, pela vinda do coveiro
Labouret.
4
“— Se você
estiver certo — disse-me Labouret —, então será um homem rico. O jovem Dufaÿs renunciou à herança em seu
favor. E na presença de uma dezena de testemunhas.
“— Dufaÿs ficou
com a chave do mausoléu de Le Poittevin.
Você tem uma cópia?
“— Há sempre
duas chaves para os mausoléus. Uma fica com a família; outra, comigo. O que a
Igreja me paga, para enterrar e exumar os mortos, e zelar pelos jardins do
cemitério, é muito pouco. O que me garante os vinhos, os manjares e a companhia
das audazes mulheres é a conservação de túmulos e mausoléus. Algumas famílias
me pagam razoavelmente bem pelo serviço. E, como você pode ver, eu mantenho
tudo em perfeita ordem.
“Era noite.
Labouret abriu, com a sua chave, o mausoléu onde Le Poittevin repousava. Com
uma lamparina na mão, segui o meu amigo.
“— Por onde começamos?
“— Pelos caixões
mais acessíveis, é claro.
“No centro do
mausoléu havia três catafalcos e, sobre cada um deles, um ataúde.
“— Vejamos este
aqui — disse-me Labouret. — Parece ser o do pai do sovina. Veja, está lacrado.
Vamos ao segundo.
“Passei a
lamparina por sobre o segundo caixão. Os parafusos haviam sido removidos.
“O coveiro
solicitou a minha ajuda e abrimos a tampa do ataúde. Um odor acre, de coisas
deletérias, tomou conta do ambiente.
“— Traga a
lamparina — disse-me.
“Aproximei a
lamparina do caixão. Dentro dele jazia o esqueleto de uma mulher. Passei o lume ao longo do sudário, mas nada
vi.
“— Não há
nada... — disse a Labouret, decepcionado.
“— Vamos remover
o pano mortuário e ver o que há embaixo dele.
“Labouret
murmurou uns pedidos de desculpas à falecida mãe do velho sovina e, vagarosamente,
descobriu o cadáver até os ossos dos pés.
“Entre os ossos
do cadáver, uma miríade de saquinhos de moeda, todos púrpura, como se
cuidadosos ornamentos, saltou aos meus olhos.
“De fato, eu
estava rico. E de pensar que o jovem Dufaÿs estivera, há poucos dias, tão perto
de sua inacessível herança...
“Recolhemos os
sacos de moedas e, em meu lar sepulcral, contamos o butim. Era uma imensa
fortuna — sobretudo para um pobre órfão como eu — em resplandecentes moedas de
ouro.
“Agradeci ao meu
amigo pela inestimável ajuda, e não somente com palavras emocionadas, mas com
dez por cento de minha recente riqueza, o que fez dele um próspero e respeitado
senhor de terras. No dia seguinte, procurei Sabine Fleuriot. Mostrei a ela uma
pequena parcela de meu tesouro, que, mui convincentemente, falou por si
próprio. Persuadida com tão eloquente e irrefutável argumento, Sabine capitulou
num instante, e fugiu comigo naquela mesma noite. Estamos casados há cinquenta
e dois anos.
“Eis, meu caro
Gervais, a história da gênese de minha riqueza, honestamente adquirida graças a
uma mãozinha de um dos gêmeos Sallambier”.
Dizendo disto, Jules Cocard esvaziou a sua taça de conhaque e partiu. Desta vez, não riu da credulidade alheia.
Gostei
ResponderExcluir