PIERRE BOURGOT, O LOBISOMEM - Narrativa Clássica de Horror - Sabine Baring-Gold


 

PIERRE BOURGOT, O LOBISOMEM

Sabine Baring-Gold

(1834 – 1924)

Tradução de Paulo Soriano

 

Em dezembro de 1521, Boin, o inquisidor-geral da diocese de Besançon, tomou conhecimento de um caso de natureza suficientemente terrível para produzir uma profunda sensação de alarme na vizinhança. Dois homens foram acusados de bruxaria e canibalismo. Seus nomes eram Pierre Bourgot — ou Pierre, o Grande, como o povo o apelidara em razão de sua estatura — e Michel Verdung. Pierre não ficou muito tempo sob julgamento antes de fazer uma confissão completa de seus crimes. Ei-la:

Há cerca de dezenove anos, por ocasião da feira de Ano Novo em Poligny, uma terrível tempestade caíra sobre a região, e, entre outros danos causados pela tormenta, registrara-se a dispersão do rebanho de Pierre.

— Em vão — dissera o prisioneiro — eu trabalhei, acompanhado por outros camponeses, para encontrar as ovelhas e reuni-las. Procurando-as, fui a todos os lugares possíveis. Foi então que surgiram três cavaleiros negros. O último deles me disse: ‘Para onde vai?  Parece que tem problemas’.

“Contei a ele o meu infortúnio com o meu rebanho.  Disse-me ele que recuperasse meu ânimo e prometeu-me que, doravante, o seu mestre cuidaria e protegeria as minhas reses. A tanto, seria bastante que eu lhe depositasse confiança. Disse-me, ademais, que eu encontraria minha ovelha perdida muito em breve e prometeu me dar algum dinheiro.

“Combinamos de nos encontrar novamente em quatro ou cinco dias.  Pouco tempo depois, localizei o meu rebanho reunido. Em meu segundo encontro, soube que o estranho era um servo do Diabo. Renunciei a Deus, à Nossa Senhora e a todos os santos e habitantes do Paraíso. Abdicando do cristianismo, beijei a sua mão esquerda, que era escura e gelada como a de um cadáver. Então caí de joelhos e entreguei minha lealdade a Satanás. Fiquei dois anos a serviço do demônio, e nunca entrei em igreja antes de findar-se a missa.

“Toda a ansiedade que eu sentia, por conta de meu rebanho, foi removida, pois o diabo se comprometeu a protegê-lo e afastar das reses os lobos.

“Esta liberdade nos cuidados com o rebanho, no entanto, fez com que eu começasse a me cansar do serviço do Diabo. Recomecei a frequentar a igreja, até que fui trazido de volta à obediência ao maligno por Michel Verdung. Foi quando renovei o meu pacto, imbuído da esperança de que ganharia muito dinheiro.

“Numa floresta perto de Chastel Charnon, encontramos muitos outros adeptos que eu não conhecia. Dançamos, e cada um deles tinha na mão um círio verde com uma chama azul. Obnubilado pela ilusão de que obteria dinheiro, fui convencido por Michel a agir com a maior celeridade. Para isto, depois de me despir, Michel untou-me com uma pomada; então, julguei-me transformado em lobo. A princípio, fiquei um tanto horrorizado com minhas quatro patas de lobo e com o pelo que me cobria, mas descobri que, doravante, eu podia viajar com a velocidade do vento. Isto jamais poderia ter acontecido sem a ajuda de nosso poderoso mestre, que estava presente durante nossa excursão, embora eu não haja percebido a sua presença até que recuperei minha forma humana. O mesmo se deu com Michel.

“Depois de uma ou duas horas no estado de metamorfose, Michel nos lambuzou novamente e, rápido como um pensamento, recobramos as nossas formas humanas. A pomada nos foi dada por nossos mestres. Moyset deu-me o unguento; Michel o recebeu de seu próprio mestre, Guillemin.”

Pierre declarou que não sentia exaustão após suas excursões, embora o juiz haja, particularmente, indagado se ele sentia aquela prostração após seu esforço incomum, do qual as bruxas, em geral, reclamavam. De fato, o esgotamento resultante de um ataque de lobisomem era tão grande que o licantropo muitas vezes ficava confinado em sua cama por vários dias e a custo conseguia mover as mãos ou os pés.

Em uma de suas corridas, convertido em lobisomem, Pierre caiu sobre um menino de seis ou sete anos, com os dentes, pretendendo rasgá-lo e devorá-lo. O garoto, todavia, gritou tão alto que o licantropo foi obrigado a bater em retirada, em busca de suas roupas, para lambuzar-se novamente, a fim de recuperar sua forma e original e escapar. Ele e Michel, porém, um dia despedaçaram uma mulher, enquanto ela colhia ervilhas; e um senhor de Chusnée, que veio em seu socorro, foi por eles atacado e morto.

Noutra ocasião, eles caíram sobre uma garotinha de quatro anos e a comeram, com exceção de um braço. Michel considerou a carne da garotinha o mais delicioso entre os manjares.

Outra menina foi por eles estrangulada e teve o sangue derramado. De um terço das vítimas, eles comiam apenas uma porção do estômago.

Certa noite, ao entardecer, Pierre saltou o muro de um jardim e se deparou com uma garotinha de nove anos, ocupada na capina dos canteiros do terreno. De joelhos, a menina implorou a Pierre que a poupasse. Mas este partiu-lhe o pescoço e abandonou o seu cadáver estirado ente as flores do jardim.  Noutra ocasião, ele não parecia estar em sua forma de lobo: caiu sobre uma cabra, que encontrou no campo de Pierre Lerugen, e a mordeu na garganta; matou-a, contudo, com uma faca.

Michel transformava-se em lobo ainda vestido, mas Pierre era obrigado a se despir: a metamorfose só se lhe ocorria se estivesse completamente nu.  Ele, contudo, não sabia explicar como o seu pelo desaparecia quando recuperava a sua natural condição. 

As declarações de Pierre Bourgot foram totalmente corroboradas por Michel Verdung.

 

Fonte: “The book of Were-Wolves”, Smith, Elder & Co., Londres, 1865.

 


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