A CABEÇA CORTADA - Narrativa Clássica de Horror - Ítala Gomes Vaz de Carvalho
A CABEÇA CORTADA
Ítala Gomes Vaz de Carvalho
(1882 – 1948)
Nos
arredores de Florença, a Villa Salviati, gracioso edifício de estilo medieval,
surge ainda hoje sobre os fundamentos do antigo Castelo Montegazzi, mudos
testemunhos dos horrores que se desenrolaram entre suas paredes e nos andares
superiores do vetusto edifício.
Em
1529 a cidade suportava dias muito tristes e a fúria devastadora do populacho irado
contra os invasores e a prepotência dos senhores, embora estes vivessem, por
seu lado, horas não menos trágicas e dolorosas.
A
família Cybo, altaneira e poderosa, gabando-se até de ter tido entre os seus
ascendentes um papa (Inocêncio VII), que havia assentado as bases grandiosas de
sua linhagem, tinha consolidado o seu domínio contraindo matrimônios úteis e
proveitosos. Já um Cybo tinha desposado uma das filhas de Lourenço de Mediei (O
Magnífico) e depois conseguira um seu bisneto casar com uma Malaspina, família
quase tão poderosa quanto os Cybo e que partilhava, havia séculos, embora em
segundo plano, do governo da cidade e de toda a região florentina.
De
1611 até 1687 fora chefe da ilustre família Alberico Cybo, senhor de Massa e
grande mecenas, que assumira o título de Alberico I, Cybo Malaspina.
Atento
sempre a manter a proveitosa política dos antepassados, Alberico conseguira realizar
o consórcio de sua irmã Verônica, mulher feia, lunática, colérica e vingativa, com
Jacopo Salviati, duque de S. Juliano, cuja aliança moral e material seria de
grande vantagem para a família Cybo.
Jacopo
contava apenas vinte anos quando o pai o obrigara a resignar-se ao repelente consórcio
com Dona Verônica, quinze anos mais velha e que nem sequer o amava, embora,
orgulhosa e autoritária, pretextasse um ciúme irrefreável para justificar a sua
tirânica prepotência em querer sempre ser homenageada e animada publicamente
pelo jovem esposo, vítima da ambição paterna. A vida dos esposos tornou-se,
todavia, rapidamente, um verdadeiro inferno. Jacopo Salviati era belo homem,
amável e encantador e tinha uma brilhante inteligência que o fazia sobressair
entre a mais culta mocidade de seu tempo. Com a morte de sua mãe, havia herdado
vultosa fortuna que o tornara independente até mesmo da autoridade paterna,
que, infelizmente, ainda tinha conseguido, quando ainda menor, ligá-lo pelos
laços do matrimônio a uma odiosa mulher.
Desesperado,
não podendo suportar mais a odiosa convivência com a consorte, Jacopo havia
abandonado o teto conjugal, indo morar no Castelo Montegazzi; na estrada que conduz
de Florença a Bolonha, em companhia de seu avô materno, o ancião Giovanni S.
Gallo, para lá curtir o desespero de sua vida prematuramente amargurada. A
mocidade, todavia, sempre reclama os seus direitos e Jacopo havia de fatalmente
encontrar, no seu caminho, a criatura que o devia consolar e recompensar de tão
amarga desdita.
O
destino feliz tomou as angélicas feições de uma jovem dama florentina, que o
povo havia denominado "O louro querubim", tão linda e luminosa
aparecia a formosa criatura, também desgraçada na sua vida íntima por ter
desposado, para obedecer à vontade paterna, o senhor Canacci, nobre florentino,
um velho avarento, feio e repelente pelo descuido em que mantinha a sua pessoa
a espalhar um mau cheiro repelente, denotando absoluta falta da mais elementar
limpeza.
Canacci
contava mais de sessenta anos, era viúvo e pai de cinco filhos já homens e de duas
mocinhas, quando o seu capricho senil levou-o a obter que o pai do "louro querubim"
lhe vendesse aquela filha tão linda e suave, verdadeira "filha de
Maria", de quem tinha o nome e a incomparável candura! Caráter cheio de
retidão e de nobres sentimentos, procurou Maria angariar o amor e o respeito
que lhe deviam dedicar os sete enteados, porém o mais velho, Bartolomeu, olhava
com olhos de cobiça a lindíssima madrasta, seguindo-a e importunando-a com
desejos torpes que ela repelia horrorizada. Envolvendo-a com palavras cheias de
calor, tentava seduzi-la formulando propostas entontecedoras, mas em vão, e o
amor de Bartolomeu transformou-se assim num ódio surdo e implacável. Foi quando
o duque Jacopo Salviati e Maria Canacci se encontraram, ambos infelizes, ambos
lindos e sedutores, vítimas de um destino estupidamente cruel que devia
inflamar com maior força o amor irresistível que os atirou nos braços um do
outro! O sentimento, que os consumia como chama abrasadora, não lhes deixava
pensar no perigo que corriam, na prudência que deviam empregar sempre e não
tardou que Bartolomeu descobrisse os amores clandestinos da madrasta e que logo
informasse Verônica Cybo de que o seu belo e guapo consorte, a traía
ostensivamente com a mulher de seu pai. A Cybo, indignada, e obtidas algumas
provas do adultério do marido, jurou vingança!
E
não lhe faltariam os meios de destruir aquela felicidade que fazia sombra a sua
vida tão cheia de maldade e de ira.
*
Dias
depois, na Catedral de Florença, rezava-se a última missa do ano, e, no
silêncio do templo, só se ouvia de tempos em tempos o sussurrar do sacerdote:
—
"Pax Vobiscum!... Oremus frates!"
Uma dama alta, corpulenta, o rosto velado por
espessa mantilha preta, ajoelhou-se ato lado de outra dama, muito loura jovem e
lindíssima, que rezava de mãos postas e toda absorta em Deus. De súbito, uma
voz dura, de timbre masculino e ameaçador, saiu de sob a mantilha que cobria o
rosto de sua incógnita vizinha e sibilou:
—
"Se tendes amor a vida, renunciai ao amor de Jacopo Salviati!"
Maria
Canacci, com um brilho mais vivo nos olhos admiráveis, voltou-se devagar o lado
de onde tinha vindo aquela voz assustadora, mas não viu ninguém.
A dama misteriosa sob o negro véu espesso
tinha desaparecido.
*
Maria
regressou inquieta para a casa, mas a sua sorte já estava marcada e não mais
poderia fugir à inveja e ao ódio de sua poderosa inimiga. Verônica Cybo tinha
já tudo combinado com o infame Bartolomeu:
—
"A tua madrasta mancha o nome de teus irmãos! E pela honra de tua família."
E abaixando a voz, num tom lúgubre e cavernoso,
tinha acrescentado:
—"Se
aquela mulher indigna, desaparecer, terás proteção e recompensa regias!"
Bartolomeu,
também saturado de ódio e ciúme, aceitou ser o instrumento da vingança, e
Verônica apresentou, minutos depois, ao criminoso, os dois cúmplices que havia
feito chamar de suas terras com as armas necessárias. Sozinho ele não poderia
levar avante o trágico intento e logo foram tomadas indicações precisas:
—
"Quando agiremos?"
—"No
último dia do ano!"
—
"A que horas?"
—"Às
três da madrugada."
A
noite escura deixava ver, ao lume de alguma lamparina ante as imagens santas na
esquina das ruas, as três sombras que deslizavam cautelosas envoltas em negros
mantos. Chegando à porta do Palácio Canacci, o vulto mais delgado bateu com
força:
—
"Quem é?" — perguntaram de dentro.
—"Bartolomeu!
Abre, Babá!"
Não
havia motivo para que a velha aia dos sete irmãos Canacci não abrisse ao mais
velho dos meninos que ela havia ajudado a criar e amamentar.
Apenas
entreaberta a porta, os dois sicários saltaram sobre a velha ama, matando-a a
golpes de punhal, enquanto Bartolomeu irrompia no quarto da madrasta,
agarrando-a pelos cabelos para melhor lhe enterrar a espada no coração.
—"Não
me mates!... não me mates! Tenho outra vida dentro de mim e será duplamente
criminoso.”
O
grito desesperado findou no último estertor da morte!
Os
assassinos deceparam os dois cadáveres e a cabeça linda do "louro
querubim" foi posta cuidadosamente num saco para ser entregue à cruel
Verônica! Os restos mortais de Maria Canacci foram atirados no rio Arno e os
da ama num fundo poço no campo chamado dos Pentolini.
*
Mas chegou, como de costume, a manhã radiosa
do novo ano que era o de 1639. Gritos festivos, correrias de crianças, o ruído alegre
das carrocinhas transportando os presentes e as iguarias dos festins do Ano
Novo enchiam as ruas e os pátios das casas e dos palácios fidalgos.
Verônica
Cybo mandava, como de costume, ao marido a roupa branca da semana, lavada e
engomada, com o acréscimo de algum presente de doces e flores, devido a data festiva
do primeiro dia do ano. O servo, encarregado da entrega, subiu com o pesado cesto,
até ao antigo castelo Montegazzi. Jacopo Salviati recebeu festivamente o
enviado da duquesa, e, agradecendo os votos de feliz Ano Novo, foi enumerando
as roupas lindas e cheirosas, as flores e os doces que a sua áspera mulher lhe
havia preparado com desusado carinho, mas eis que, no fundo do cesto, apareceu
uma larga sopeira, que Jacopo destapou insensivelmente, contando encontrar
outra surpresa culinária, mas recuou horrorizado, dando um grito horrendo que
fez acudir o seu velho avô! O presente de Verônica, no fundo da sopeira de prata,
era a linda cabeça decepada do "louro querubim!"
Loucuras
de amor! Horas de suave felicidade! Promessas e carícias passaram como relâmpagos
ante os olhos enevoados do amante desesperado, que via a sua amada reduzida a
um crânio, apresentado como o de João Batista numa bacia de metal, e sobre a
trágica surpresa, sobre a incomensurável dor alastrou-se, de súbito, um
indizível furor!
*
O
duque, agarrando a espada e vociferando as maiores ameaças e maldições,
investia contra tudo e todos sem ver, sem compreender, ainda que em redor dele
e do cesto onde surgia a cabeça lívida de Maria, ainda composta em sua
extraordinária formosura, só estavam o seu velho avô e os fâmulos todos eles
mudos, e como que petrificados, ante tamanha perversidade e tão grande
desgraça.
Verônica
Cybo galopava já longe, temendo a ira do marido, acompanhada pelos seus sicários
pela estrada de Massa.
Nem
lá, porém, ela se devia sentir garantida. Desconfiando de tudo e todos,
refugiou-se em Roma, desprezada até pelos membros de sua própria família,
abandonada dos amigos e perseguida pelo ódio e o rancor do marido, permaneceu
longos anos como que enterrada numa sepultura de desprezo e asco.
Bartolomeu
Canacci, preso e torturado por ordem de Jacopo, acabou confessando o crime e
morreu sob o machado do carrasco na praça de Santo Appolinário, enquanto que da
mais alta torre de Florença caiam os toques do sino, que anunciava ao povo a
execução da justiça!
O
antigo castelo Montegozzi não mais viu sorrir o jovem Jacopo, que se fez monge,
longe das paredes que haviam assistido. impassíveis, ao espetáculo divino de Maria,
imobilizado por uma morte horrenda.
E
o castelo mudou de proprietário, mudou de nome e finalmente ruiu para dar lugar
a Vila Salviati em memória do infeliz Jacopo, que lá sofreu a maior dor que
possa estraçalhar o coração de um homem!
Narrativa originalmente
publicada em “A Noite Ilustrada”/RJ, edição de 10 de julho de 1945.
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