A HISTÓRIA DO CAPUZ AZUL - Conto Clássico de Terror - Ueda Akinari
A HISTÓRIA DO
CAPUZ AZUL
Ueda Akinari
(1734 – 1808)
Havia
— há muito, muito tempo — um monge extraordinariamente virtuoso chamado Kaian,
que viajava por todo o país.
Certo
dia, ele passou por uma aldeia. O Sol já se punha, anunciando o crepúsculo. Na
penumbra do ocaso, alguns aldeões, que voltavam para casa, fugiram em disparada
quando o viram; outros, puseram-se a gritar.
Vendo
aquilo, Kaian perguntou a si mesmo o que se passava por ali.
Como
já escurecera, parou à porta de uma grande casa e pediu hospedagem noturna. O proprietário saiu com um porrete e quase o
atacou. Mas esse homem era mais sábio do que os demais aldeões. Olhou
cuidadosamente para monge, que estava de pé e usava um capuz azul, além de um manto
escuro e sujo. Kaian explicou-lhe que era apenas um monge débil e indefeso. O
homem sorriu para Kaian e o recebeu em sua casa. Depois de servir-lhe uma
refeição, o anfitrião contou-lhe a estranha história do que acontecera naquela
aldeia
—
Há um templo sobre a colina, por detrás da aldeia. O sacerdote que vivia nele
vivia era muito sincero e todos nós confiávamos nele. Na última primavera, o sacerdote foi a Niigata,
trazendo consigo um futuro discípulo, que era um belo menino de dois anos. O monge,
cheio de amor pela criança, negligenciou seus deveres como sacerdote. Em abril
passado, o menino adoeceu e ficou sob os cuidados de seu guardião. Mas, ao final, o menino morreu. Chocado, o
monge passava todos os dias perdido em sua dor.
Malgrado
morta a criança, o religioso conservou consigo o pequeno corpo, que já se
decompunha, para que pudesse acariciá-lo todos os dias. Finalmente, o monge
comeu-lhe as carnes e chupou-lhe os ossos. Por conta disto, o monge
transformou-se num ogro devorador de seres humanos. Porque escurecia, os
camponeses confundiram o senhor com o monge transformado em monstro.
Ao
ouvir a história, Kaian lamentou-se pela sorte do padre e dos aldeões. Disse ao
hospedeiro que se propunha a enfrentar o monge — agora ogro — e persuadi-lo a
cessar aquelas tão terríveis ações.
Na
noite seguinte, Kaian visitou o templo da colina, agora completamente negligenciado.
A área do templo estava coberta por ervas daninhas e a habitação do monge
toldada de musgos. Kaian bateu à porta e perguntou ao emaciado monge, que lhe
abrira a porta, se ele poderia ali pernoitar. O monge respondeu-lhe que não
tinha condições de proporcionar qualquer cuidado a um visitante naquele lugar. Mas
Kaian respondeu-lhe que isto não o incomodava minimamente.
Kaian
sentou-se no chão. Logo, a noite caiu. À meia-noite, ouviu um barulho estranho,
vindo da sala ao lado. Foi quando chegou o monge, procurando o hóspede, para
devorá-lo.
—
Onde estará o monge Kaian? O que aconteceu com ele? Ele deveria estar aqui, mas
não está. Onde estará ele?
Kaian
permaneceu no lugar onde estava e o padre passou por ele várias vezes. O monge
não podia vê-lo, embora Kaian estivesse sentado bem à sua frente. O monge procurou
por Kaian a noite inteira, mas não conseguiu encontrá-lo. Por fim, desmaiou e
caiu no chão.
O
Sol nasceu e o monge acordou de repente. Viu, então, Kaian sentado exatamente no
lugar de sempre. Por um tempo, olhou para Kaian, que se aproximou do monge e
disse-lhe:
—
Caso queira, você pode me devorar.
O
monge abanou a cabeça.
—
Você deve ser um verdadeiro monge budista — disse —; por isto, não pude vê-lo
ontem à noite. Envergonha-me comer carne humana, especialmente a de um monge
sagrado como você.
Respondendo-lhe,
Kaian disse que sabia que o companheiro, ocasionalmente, se tornava um ogro.
Disse-lhe, além disto, que o propósito, que o animara a vir àquele lugar, não
era outro senão o de ajudá-lo. Perguntou-lhe, com sinceridade, se gostaria de
recuperar sua alma humana.
—
Sim — respondeu-lhe o monge.
Kaian
colocou o capuz azul, que usava, sobre a cabeça do sacerdote e ensinou-lhe duas
preciosas frases budistas. Kaian orientou-o a recitar aquele sutra repetidas
vezes, até que, finalmente, por si mesmo, viesse a entender o seu significado.
Depois
disso, os aldeões não mais viram o ogro e puderam passar os seus dias em paz.
No
inverno seguinte, Kaian voltou à aldeia para ver como iam as coisas. Nenhum
aldeão tinha visto o ogro desde a sua última visita; todavia, desde então,
ninguém tivera a coragem de subir ao templo.
Kaian
decidiu retornar ao santuário, que, agora, cobria-se de ervas daninhas. Não
havia qualquer sinal de que alguém o habitasse. Então, abriu caminho através do matagal e
encontrou uma massa disforme que exibia, sobre a cabeça, um capuz azul. Ouviu
uma fraca voz a repetir o sutra — as duas frases budistas — que havia ensinado ao
monge no ano anterior. Kaian tocou-lhe com o báculo, dizendo:
— Qual é o significado dessas frases?
Instantaneamente,
aquela massa caiu em pedaços e apenas o capuz azul e os ossos permaneceram.
Kaian reconheceu que o monge, finalmente, havia recuperado a sua alma humana.
Depois
disso, os aldeões subiram ao templo para limpá-lo. Pediram a Kaian que lá
residisse, a fim de que lhes ensinasse a doutrina budista. O monge se dedicou a
reviver o templo, que, desde então, prosperou.
Mais
tarde, uma glicínia cresceu no local onde Kaian havia colocado o seu báculo.
Mas, de alguma forma, a glicínia não tinha raízes no solo. É possível ver a glicínia
na parte interna do templo, atrás do salão principal. E lá é possível
encontrar, também, as lápides de Kaian e do monge que se tornou um ogro.
Versão em português de
Paulo Soriano.
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