O BARRILETE - Conto Clássico Cruel - Guy de Maupassant


 

O BARRILETE

Guy de Maupassant

(1850 – 1893)

Tradução de Paulo Soriano

 

O mestre Chicot, estalajadeiro de Épreville, parou a sua carriola em frente à granja de tia Magloire. Era um homem de quarenta anos, corpulento, barrigudo, de rosto vermelho, que tinha a fama de malicioso.

Prendeu o cavalo ao poste do portão e entrou no pátio da herdade. Tinha ele uma quinta contígua às terras da velhota, glebas que há muito cobiçava. Vinte vezes ele tentou comprá-las, mas a tia Magloire, obstinadamente, recusara-se a vendê-las.

— Onde nasci, morrerei — dizia ela.

Encontrou-a à porta, descascando batatas. Tinha a velhota setenta e dois ano. Era seca, enrugada e curva, mas infatigável como uma jovem. Chicot deu-lhe uns tapinhas amigáveis nas costas e sentou-se num banquinho ao seu lado.

— Olá, tia Magloire! Como vai de saúde? Tudo bem?

— Nada mal! E você, vigoroso como sempre?

— Bem, sinto algumas dores; assim não fosse, estaria perfeitamente bem.

— Ora, está tudo em ordem.

E ela não disse mais nada. Chicot ficou a contemplá-la em sua faina. Seus dedos tortos, nodosos e duros como patas de caranguejo agarraram, como se fossem pinças, os tubérculos acinzentados que estavam numa cesta. Com rapidez, ela os girava com uma das mãos, descascando-os, em longas tiras, com a lâmina de uma velha faca. E quando a batata estava inteiramente amarela, a velha a jogava num balde cheio de água. Três galinhas ousadas vieram, uma após a outra, até as suas saias para recolher as cascas, e, então, fugiram a correr de suas pernas, carregando o espólio no bico.

 


 

Chicot parecia embraçado, hesitante e ansioso. Tinha, dentro de si, algo que não ousava externar. Por fim, decidiu-se:

—Diga-me, tia Magloire...

— O que posso fazer por você?

— Esta quinta, que você nunca se dispôs a me vender...

— Não! Não conte com isto. O que lhe disse já está dito. Não me venha mais com isto.

— É que eu descobri um arranjo que beneficiará a mim e a você.

—E qual é o arranjo?

— Ei-lo aqui: você me vende a propriedade e conserva o direito de ficar com ela... Não me escuta? Siga, pois, o meu raciocínio.

A velha parou de descascar os legumes e fitou o estalajadeiro com olhos vivos sob as pálpebras enrugadas.

Ele disse:

— Deixe-me explicar. Dou-lhe, todos os meses, cento e cinquenta francos. Ouve-me? Todo mês venho aqui, com a minha carriola, e dou-lhe trinta coroas de cem soldos. E nada há de mudar: absolutamente nada. Você ficará em casa, não se importará comigo, e nada me deverá. Não terá que fazer nada: apenas ficará com o dinheiro. Está de acordo?

Olhava-a com um ar alegre, de muito bom humor.

A velha o fitava com desconfiança, entrevendo a armadilha. Ela perguntou:

— Entendo o que me caberia. Mas a fazenda, eu não tenho que dá-la a você?

— Não se preocupe com isto —acrescentou. —Você permanecerá na quinta enquanto o bom Deus permitir que viva. Estará em sua casa. Só terá que assinar, no cartório, um pedaço de papel para que, em caso de sua morte, a quinta seja minha. Você não tem filhos, apenas sobrinhos com os quais não se importa minimamente. De acordo? Fica a senhora com os seu bens por toda vida e eu lhe dou trinta coroas de cem soldos por mês. O ganho é todo seu!

A velha ficou surpresa, preocupada, malgrado tentada.

Respondeu:

—Não estou recusando a proposta. Só quero pensar algo mais sobre a sua oferta. Não toque no assunto até a próxima semana. Em breve, eu lhe darei uma resposta.

E mestre Chicot partiu, contente como um rei que acaba de conquistar um império.

Tia Magloire permaneceu pensativa. Naquela noite, não dormiu e por quatro dias esteve em febril hesitação. Pressentiu algo de traiçoeiro naquela proposta... Todavia, a ideia das trinta coroas por mês — a imagem daquela fina prata, retumbante, que escorreria ao seu avental, como que caída do céu, sem qualquer contraprestação — devastou-a de desejo.

Então Magloire correu ao tabelião e contou-lhe o caso. O notário aconselhou-a a aceitar a proposta de Chicot. Mas a instruiu a pedir-lhe cinquenta coroas em vez de trinta; com efeito, a sua quinta valia, no mínimo, sessenta mil francos.

— Se você vivesse mais quinze anos — disse-lhe o tabelião —, ele ainda não lhe pagaria, desta forma, mais que quarenta e cinco mil francos.

A velha estremeceu com a perspectiva de cinquenta coroas de cem soldos por mês. Mas continuava cautelosa, temendo mil imprevistos e astúcias ocultas. Assim, ficou até o anoitecer fazendo-lhe perguntas, sem decidir-se a ir embora. Por fim, mandou que preparasse a escritura. Depois, voltou para casa perturbada, como se tivesse bebido quatro jarras de cidra recém-colhida.

Quando Chicot voltou para inteirar-se da resposta, ela se fez de rogada por muito tempo, declarando-lhe a recusa, mas sempre com o receio de que ele não lhe quisesse dar as cinquenta moedas de cem soldos. Como ele tanto insistia, finalmente participou-lhe as pretensões.

O estalajadeiro deu um sobressalto de desapontamento e recusou a contraproposta.

Então, para convencê-lo, ela começou a raciocinar sobre a provável duração de sua vida.

— Não tenho mais que cinco ou seis anos de vida pela frente. Vou fazer setenta e três anos e já não sou nenhuma criança. Noite passada, pensei que ia morrer. Parecia que o meu corpo se esvaía e foi preciso que me carregassem para a cama.

Mas Chicot não se deixou enganar.

— Vamos, vamos, velha pragmática! Você é tão rija quanto o campanário da igreja. Viverá pelo menos cem anos. É você quem vai me enterrar, com certeza!

Passaram o dia inteiro discutindo. Como velha, todavia, não cedeu, o estalajadeiro teve que anuir, por fim, às cinquenta coroas.

No dia seguinte, assinaram a escritura. E a tia Magloire exigiu dez coroas pelas jarras de vinho.

 

* * *

 

Passaram-se três anos. A boa mulher era um encanto. Não aparentava ter envelhecido um dia sequer. Chicot estava desesperado. Parecia-lhe que estava pagando a maldita renda há meio século. Julgava-se ludibriado, enganado, arruinado. Ia, de vez em quando, visitar a mulher como se vai ao campo, em julho, para constatar se o trigo está maduro para a colheita. Ela o recebia com malícia no olhar. Dir-se-ia que se parabenizava pela boa peça que lhe pregara. E ele, pressurosamente, voltava ao coche, resmungando:

— Sabe Deus quando você morre, carcaça!

Chicot não sabia o que fazer. Seria prazeroso estrangulá-la, quando a visse. Ele a odiava ferozmente, com a ira dissimulada de um camponês surrupiado.

Então procurou um meio de aplacar aquela ira.

Certo dia, foi visitá-la, esfregando as mãos de satisfação, como no dia em que concluíra a avença.

E, depois de alguns minutos de conversa, disse:

— Diga-me, tia Magloire, por que você não vai comer na estalagem quando for para Épreville? Diz-se por aí que não somos amigos, e isto me entristece. Você bem sabe que, na minha casa, não precisa pagar nada, e um jantar nada me custa. Vá lá quando quiser, sem qualquer receito. Terei o prazer de recebê-la.

Tia Magloire não esperou que ele repetisse a oferta, e, alguns dias depois, quando seguia ao mercado em sua carriola, guiada por seu criado Célestin, deixou, sem pressa, o seu cavalo no estábulo do mestre Chicot, e tratou de pedir a refeição prometida.

O estalajadeiro, radiante, tratou-a como uma dama. Serviu-lhe frango, chouriço, carne assada e presunto com couve. Mas pouco ela comia, pois estava sóbria desde a infância e vivia apenas de um pouco de sopa e pãozinho com manteiga.

Chicot, desapontado, insistia. A velha senhora nada bebia e se recusava a tomar café.

—Pelo menos você aceitará uma bebidinha — disse ele.

—Ah, não digo que não aceito...

E o estalajadeiro gritou, a plenos pulmões, através da estalagem:

— Rosalie, traga o melhor conhaque, o mais fino dos finos!

E a criada apareceu, segurando uma garrafa comprida e enfeitada, com uma folha de parreira no rótulo.

E encheu dois pequenos copos.

— Prove isto, tia Magloire! É de primeira!

E a boa mulher bebeu bem devagar, em pequenos goles, degustando prazerosamente. Quando esvaziou o copo, estalou a língua e disse:

—Sim, está excelente!

Mal acabara de falar e Chicot já lhe estava servindo outro copinho. Ela quis recusar o mimo, mas era tarde demais. Ela o degustou tão prazerosamente quanto o primeiro.

Ele, então, quis fazê-la aceitar outro bocado, mas ela resistiu.

Chicot insistiu:

— Isto é como leite. Beba-o. Veja que eu tomo dez ou doze copinhos sem qualquer constrangimento. Desce como se fosse açúcar. Não afeta o ventre ou a cabeça. É como se evaporasse na língua. Não há nada melhor para a saúde!

 

 


Como queria muito outro copinho, ela cedeu; mas pediu que só o enchesse até a metade.

Então Chicot, numa explosão de generosidade, exclamou:

—Olhe, já que você gostou, vou te dar um barrilete, para mostrar que somos bons amigos.

A boa mulher não disse não e se foi. Estava um pouco tonta.

No dia seguinte, a estalajadeiro entrou na quinta de tia Magloire e tirou da carriola um pequeno barril com aro de ferro. Depois, quis fazê-la provar o conteúdo, para mostrar-lhe que era o mesmo de antes. E, quando o tomaram — três copos cada um —, Chicot disse-lhe, à despedida:

— Sabe você que, quando acabar, há mais na estalagem. Não se preocupe, pois apraz-me ofertar-lhe. Quanto antes terminar, mais contente ficarei.

E subiu na carriola.

Quatro dias depois, ele voltou. A velha estava à porta, ocupada em cortar o pão para a sopa.

Aproximou-se dela e deu-lhe bom-dia. Falava-lhe com proximidade, para lhe sentir o hálito. Reconheceu uma lufada de álcool. E o seu semblante iluminou-se.

— Ofereça-me um copo de conhaque — disse ele.

E eles beberam dois ou três copinhos.

Logo se espalhou pela região o boato de que tia Magloire andava embriagando-se sozinha. Ora a levantavam, bêbada, na cozinha; outras vezes, no pátio da quinta ou nas estradas ao redor; e tinham que levar a velha, inerte como um cadáver, para casa.

 

 


Chicot deixou de visitá-la. E quando lhe contavam sobre o estado da camponesa, ele respondia, assumindo um triste semblante:

—É lamentável, na idade dela, ter-se viciado. Veja você: quando se é velho, escapa-se-lhe toda a resistência. Isto ainda acaba mal!

E realmente acabou muito mal. Ela morreu no inverno seguinte, perto do Natal, caída, bêbada, na neve.

E mestre Chicot, tendo-lhe herdado a quinta, declarou:

— Se aquela desgraçada não se tivesse rendido à bebida, teria vivido mais dez anos!

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