PERNAS DE MÁRMORE - Conto Clássico Fantástico - Carlos Mesía de la Cerda


 

PERNAS DE MÁRMORE

Carlos Mesía de la Cerda

(Antes de 1865 - 1919)

Tradução de Paulo Soriano

 

Havia um grande escultor italiano que era casado com uma das mais belas mulheres de seu país.

Entre as muitas obras de cuja execução se encarregara, uma delas era a de uma Vênus, encomendada por um príncipe muito rico e dado às artes.

Tinha já o nosso artista escolhido a grande pedra da qual resultaria toda uma deusa do amor e, depois que os aprendizes deram alguma forma ao formoso pedaço de mármore de Gênova, o mestre pegou o martelo e o cinzel e começou a extrair a linda figura em que deveriam estar reunidas todas as graças e beleza corporal da mulher.

Escolheu para modelo a sua própria, por ser admiravelmente bem-feita, excetuando-se as pernas, que eram um pouco curtas, defeito muito comum no belo sexo.  E, como não podia valer-se de sua cara metade para copiar esta parte do corpo, teve de valer-se de outro modelo que as tivesse completamente bem formadas e perfeitas.

Passavam os dias, a obra ia adiante, e a mulher do artista admirava cada vez mais o seu marido, assim como aumentava o seu amor por ele, por aquele talento que ela sabia apreciar.

Concluída toda a parte que podia copiar, serviu-se ele, depois, de uma inglesa jovem, que não era uma beleza de rosto, mas cuja nudez formava admirável modelo, com a vantagem, sobre a outra modelo, de ter pernas perfeitíssimas, às quais aquele homem se pôs a copiar com uma extraordinária exatidão.

A mulher do escultor era extremamente ciumenta, e este ciúme aumentou naqueles dias. Então, ficava sempre a especular se o marido poderia ser infiel com aquela outra que, tão linda em suas formas, bem poderia competir com ela e ainda superá-la em formosura, mesmo levando-se a beleza de seu rosto, porque, se a mulher do escultor tinha a face de um anjo, sabia bem que não podia sequer remotamente comparar-se com ela no tocante às pernas, e estas eram tudo o quanto invejava para ser de todo perfeita, e poder entusiasmar o marido, como grande conhecedor e sábio na matéria.

Coisa alguma tão bem-acabada e primorosa havia saído das mãos do escultor, e diziam as pessoas que, se fossem comparadas, muito abaixo daquela Vênus ficariam a de Médici e a de Milo.

Estava tão aficionada a esposa do artista pelo seu retrato parcial,  que chegou a ficar enamorada da mulher de mármore, assim como Pigmaleão estivera de sua própria obra.

Retardou o quanto foi possível a entrega da estátua ao príncipe, e passava o dia inteiro trabalhando ou fazendo os seus labores no estúdio de seu marido para ver continuamente a sua adorada e invejada efígie.

Por este tempo, a mulher do artista engravidou, e ficou grandemente triste no dia em que levaram a Vênus da casa para nunca mais voltar.

Com isto, ficou ela muito preocupada e triste, sem poder esquecer a sua deusa, pensando sobretudo nas pernas, que era o que ela mais havia admirado, e não podia apagá-las de sua imaginação.

Sonhava com aquelas pernas quando dormia; quando acordava, tinha-as à sua frente. E isto era assim, ainda que soubesse muito bem que não estavam em sua casa e que nunca estiveram em outro lugar, senão no estúdio onde fora lavrada a imagem. Mas, nem por isso, deixava de vê-las continuamente.

A mulher as via caminhando à sua frente quando andava, parando quando parava, permanecendo imóveis quando sentava, sobre a mesa quando comia. E a perseguiam por todo canto aquelas malditas pernas, que, sem levar sobre si corpo algum, estariam sempre diante de seus olhos.

Continuou com esta monomania — ou melhor, alucinação — até que, ao fim e ao cabo, pariu uma menina tão linda como a mãe que a levara no ventre.  A criança, como qualquer outra, era de carne e osso, mas tinha as perninhas de mármore. 

Isto causou grande comoção nos pais, naturalmente. Viam que a filha nunca chegaria a andar, porque sempre teria umas perninhas muito pequenas: sendo inanimadas, nunca chegariam a se desenvolver.

Procuraram os mais afamados médicos da Itália, estes consultaram a academia alemã e outras. Mas disto tudo resultou que aquele caso era tão extraordinário que nada se podia esperar, senão realizar a amputação daqueles membros quando a menina tivesse mais idade para resistir à operação, à qual sempre estaria exposta, e, depois de estar curada, colocar-lhe, em vez daquelas pernas tão duras e pesadas, outras de madeira ou borracha, as quais arrastaria mais facilmente.

O pai se conformou com o prognóstico, para quando fosse a ocasião, mas a mãe se opôs abertamente a que fizessem sofrer a sua filha.

Chorava como uma Madalena e exigiu ao marido que desistisse daquilo e que deixassem a menina tal qual viera ao mundo, já que o Senhor assim a havia mandado.

A isto anuiu completamente o pai. Passou o tempo e passou também o sofrimento daquele casal que — e não poderia ser diferente — se acostumou àquela situação, e viram crescer a filha sem aflição alguma.

O mais extraordinário que havia em tudo, e o que a todos admirava, era que as pernas cresciam em relação ao resto do corpo, mantendo sempre a exata proporção.

Chegou aos três anos aquela menina, e corria como se fosse uma pequena perdiz. Tinha a mesma agilidade que qualquer criança de sua idade e movimentava as pernas com a maior desenvoltura, notando-se apenas um certo ruído ao andar, como se batessem no solo com um corpo duro.

A menina tornou-se mulher e era tão bonita e sensível que todos a queriam. Seu coração era tão delicado e terno que tudo a fazia sofrer. Afeiçoava-se a tudo que a rodeava, chorava por qualquer coisa e se comovia com qualquer desgraça que via ou lhe narravam.

Toda a sensibilidade que lhe faltava nas pernas se lhe havia acrescentado ao coração, e os pais temiam que chegasse o dia em que se apaixonaria, porque ela haveria de sentir as emoções mais que qualquer outra pessoa.

Distraíam a sua imaginação o quanto podiam, para que não fixasse a sua atenção em um homem. Mas muitos foram os que começaram a galanteá-la, sendo um de seus adoradores um jovem afetado, que tinha o coração duro como uma pedra, e por quem era impossível que alguém sentisse alguma afeição. Mas não quis ele deixar de marcar presença onde os outros o faziam e se dedicou — não podendo fazer algo melhor — a enganar a pobre e inocente moça.

Pôs-se a olhar à santa de pernas de mármore — era assim que a chamavam — e ela o preferiu aos demais, sem dúvida pela relação que existia entre as suas pernas e o coração daquele jovem, que eram da mesma matéria.

Depois de algum tempo, tanto se havia impressionado a pobre donzela, que só vivia por seus amores e para seus amores. Mas chegou a hora em que aquele homem se cansou daqueles amoricos, que só lhe davam por resultado ternura e pureza, que ele em nada apreciava, e, de um dia para a noite, abandonou a pobre enamorada, sem alegar qualquer pretexto, pois, com razão, nunca poderia tê-lo feito, porque aquele anjo de candor e formosura jamais lhe havia dado qualquer motivo a tanto.

Caiu doente a pobre abandonada por aquela desilusão. Começou por chorar e por entristecer-se e terminou por sofrer convulsões e ataques epiléticos.

Deram-lhe tantos tratamentos quanto a ciência médica conhecia para tais casos, aplicaram-lhe sinapismo nas panturrilhas, para o caso de que tivesse ela ali alguma sensibilidade, que nela fizeram tanto efeito quanto se lhe houvessem posto para que a curassem.  Deram-lhe fricções, pedilúvios, e não sei quantas coisas mais. Mas tudo foi inútil, porque ela tinha completa insensibilidade naquela parte do corpo.

Não cogitaram na sangria dos pés, porque mal se podia tirar sangue de onde não havia, nem teriam veias que punçar, e, ainda que tudo isto houvesse, significaria o alijamento das regras da arte curativa, por mais que alguns discípulos de Hipócrates opinassem pela evacuação do sangue.

A própria Ordem dos Médicos queimava os neurônios, tentando curar a pobre enferma, porque todos a queriam e a todos ela interessava.

Conseguiram, depois de muito empenho, que desaparecessem os ataques, mas ela ficou num estado de prostração e abatimento do qual não puderam libertá-la nem as carícias e conselhos dos pais, nem o interesse com que lhe falavam as suas amigas de infância, ou mesmo a ternura que demonstravam os homens verdadeiramente apaixonados por ela. Debalde empregaram-se todos os meios para fazer voltar a alegria ao seu coração, pois só conseguiam aumentar o seu penar.

Nada era potente para tirá-la do estado de melancolia em que havia caído. Nada conseguia melhorar a situação da pobre garota. Por mais que fizessem, não conseguiam extinguir aquela perturbação de ânimo.

A doença progrediu ao definhamento. A cada dia, via-se a paciente mais pálida e emagrecida. Uma febre lenta foi-lhe consumindo e acabou por conduzi-la ao sepulcro, depois tê-la feito sofrer horrivelmente.

Todos os que a conheciam sentiram e prantearam a sua morte, recaindo sobre o seu assassino o ódio de todos que sabiam do caso.

A mãe viveu com a sua dor, e o desconsolado pai lhe lavrou um mausoléu, esmerando-se no seu trabalho, pois era a única coisa que permitia provar-lhe o seu intenso carinho.

Quando foram colocar no referido sepulcro a pobre vítima do amor, cujo cadáver estivera depositado algum tempo em uma gaveta, ao destapar-se o caixão, para que seus amigos e achegados a vissem pela última vez, encontraram aquele corpo conservado como se tivesse acabado de expirar, o que era muito singular, porque não estava embalsamado.  Mas o que mais surpreendeu foi que faltavam as pernas ao cadáver.

Isto causou uma grande admiração. Ninguém podia atinar para como as pernas poderiam ter desaparecido, por isto se formavam mil hipóteses extravagantes e absurdas. Mas eu as vi em Londres, na casa de um senhor muito rico, o qual fez uma longa viagem com o exclusivo objetivo de consegui-las, e as comprou a peso de ouro ao coveiro, no dia em que enterraram quem as possuía.

O referido inglês havia seguido de longe a menina, desde o dia em que soube que havia vindo ao mundo coisa tão extraordinária, e estivera esperando que morresse a dona das pernas de mármore para adquirir tão precioso e raro objeto. Mas, para o caso de morrer ele antes, havia deixado uma cláusula em seu testamento, determinando que se empregassem quantos meios fossem possíveis e toda a imensa fortuna que deixava, para adquirir as tais pernas, que deviam figurar no museu de coisas excêntricas, que herdara de seus avós e legava aos seus descendentes.

Como o inglês sobreviveu à infeliz garota, já não havia lugar para a cláusula testamentária, pois ele adquiriu por si e por quase nada, como ele mesmo disse, aquelas pernas, que lhe haviam custado uns quantos anos de paciência e a módica quantia de duas mil libras esterlinas, ou seja, cerca de dez mil duros[1].



[1] Duro: moeda de cinco pesetas.

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