A DOIDA - Narrativa Clássica e Verídica de Horror - Autor Desconhecido do Séc. XIX


 

A DOIDA

Autor desconhecido do séc. XIX

 

O fato que vamos contar teve lugar recentemente em Saumur, pequena cidade da França, sobre as margens do Loire.

Há nessa cidade um hospital de doidos, situado sobre o alto de uma rocha mui perto da margem esquerda do rio.

Para habitação dos doidos furiosos, abriram-se na rocha alguns beliches fechados por grossas barras de ferro. O pitoresco sítio e o belo ponto de vista que dali se goza atraem muitos espectadores a visitar aquele lugar de dor e de miséria.

Em um dos primeiros dias de setembro deste ano, uma jovem senhora, acompanhada de seu marido, e levando pela mão uma linda menina, sua filha, admirava do alto da rocha as vistosas e alegres campinas, que se estendem de Tours até Angers, e a corrente rápida e majestosa do Loire, quando uma gargalhada lhe fez despertar a atenção.

Era uma doida, a quem tinham aberto a grade do beliche para sair ao pátio. Era segura por uma longa corrente de ferro, presa ao beliche. Esta desgraçada teria apenas vinte anos. Seus olhos azuis mostravam tanta doçura, seu branco rosto oferecia tantos encanto e seus compridos cabelos loiros caíam-lhe com tanta graça sobre os ombros que causavam, forçadamente, uma grande pena vê-la, assim, naquele estado.

A jovem senhora perguntou à irmã de caridade, que a acompanhava, quem era aquela jovem e por que tal rigor para com ela.

A irmã respondeu, abaixando os olhos e corando:

— É Marie, uma costureira da cidade, que se deixou vencer pelas seduções do espírito maligno. O seu amante a abandono e ela perdeu, depois de dois anos, uma filha, única prenda que dele lhe restava. Esta perda a conduziu ao hospício. É necessário que esteja ela assim presa, porque tem repetidos acessos de furor.

A irmã calou-se e beijou a cruz do rosário, que lhe pendia da cintura. Os esposos refletiam, em silêncio, sobre a triste narrativa que acabavam de ouvir. Foi quando a doida, arremessando-se de repente, quanto o permitia a extensão de sua corrente, agarrou a menina e, com a rapidez de uma flexa, a conduziu ao seu banco de pedra.

A mãe soltou um grito de terror e se precipitou sobre a doida, que a repeliu com brutalidade.

— Oh, que linda menina! — exclamou Marie. — É ela, não há dúvida. É ela! Deus restituiu a minha filha! Oh, quantas graças eu rendo a este bem Deus!

E saltava de alegria, tendo a menina apertada nos braços, e a cobria de beijos e carícias.

O pai pretendia arrancar por força a criança, mas a religiosa o surpreendeu, dizendo-lhe que seria melhor levá-la por bons modos.

— Mas não vês que esta não é a sua filha? — disse a religiosa à louca. — Nem se parece com ela!

— Não é minha filha, bom Deus? É, é sim! Olha, irmã Marthe! Os seus olhos, a sua boca... É tudo o retrato de seu pai! Eu o reconheço nela! Ela desceu do céu! Como é linda! Como é linda a minha filha!

Entretanto, a pobre mãe, que seguia com ansiedade todos os movimentos da doida, ria e chorava seguidamente, conforme Marie estendia a menina para a religiosa ou a recolhia outra vez para si.

— Empresta-me, por um instante, a tua filha, para que eu possa vê-la — disse, então, a boa irmã.

— Que eu a empreste a ti? Sim, sim! Mas... espera! Da primeira vez, os padres me disseram que eu a emprestava por algum tempo ao bom Deus, que tinha ela a necessidade de anjos no céu; e ela esteve mais de um ano sem voltar... Oh, não! Tenho sofrido muito com a sua ausência. E não tornarei a deixá-la! Mais fácil será matá-la e guardar comigo o seu corpo.

Ao mesmo tempo, ensaiava o movimento de esmagar a cabeça da criança contra a parede.

A pobre menina, passado o susto, nem podia chorar. O medo a tornava quase insensível.

A mãe, cedendo a tão forte comoção, pálida e desfalecida, caiu de joelhos e, entre agudos gemidos, suplicava humildemente à doida que lhe restituísse a filha e que não lhe fizesse mal.

Marie nada via, nada ouvia, tão atenta que estava a embalar nos braços a menina e a beijar-lhe os olhos e a boca.

O pai havia corrido, a toda presa, chamar o diretor do hospital.

Seria difícil dizer quem era a verdadeira doida: se a mãe que, desvairada, pedia sua filha em altos gritos; ou se Maria, que ria descompassadamente, apresentando à menina seu peito ressequido. O diretor julgou acertado não empregar a força, deixar a doida retirar- se para o seu beliche e aproveitarem-se do sono, que sempre se seguia aos grandes acessos, para, então, lhe tirar a sua presa.

Assim aconteceu.

Passados mais alguns minutos, Marie entrou no beliche. Pousou a menina junto à cama, fez uma cova no colchão de palha e, com o cobertor, formou em torno do buraco um anteparo. Deitou então a menina nesta espécie de berço e começou a acalantá-la com cantigas maviosas. A voz lhe foi faltando pouco a pouco e, por fim, a louca adormeceu ao lado da menina. Entrementes, a mãe, imóvel junto à grade, com os olhos fitos sobre a cama, nem ousava respirar.

O diretor entrou, então, no beliche, pé ante pé. Levantou rapidamente a menina e veio entregá-la nas mãos da mãe, que soltou um profundo grito, partido de seu coração, e pôs-se a correr, apertando nos braços a sua preciosa carga.


 


 

Este grito acordou Marie. Não vendo a menina junto a si, levantou-se e correu à grade. Viu que lhe levavam a “filha”. Deu um berro, como a hiena a quem roubam os filhotinhos. Então caiu, inerte, no chão.

A infeliz acabara de morrer.

 

Fonte: “O Archivo Popular”/PT, edição de 2 de dezembro de 1837.

Fizeram-se breves adaptações textuais.

Imagens: Elizabeth Nourse (1859 – 1938) e Nikolaos Gyzis (1842 – 1901).

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