ANJO NEGRO - Conto de Terror - P. H. Rachinski
ANJO NEGRO
P. H. Rachinski
Ao
longo dos últimos dias, me vi de espírito renovado. Há muito que jazia na cama
de um hospital, esperando entregar meu espírito ao doce beijo da morte.
Contudo, não fui agraciado pelo destino com tal dádiva. O desdém que tenho por
este Anjo Negro, nesse momento, ultrapassa em proporções inimagináveis o horror
que se pode esperar de um cadáver que, ao remover a mortalha que o envolve,
levanta-se do caixão em meio ao seu cortejo fúnebre. Antes de continuar, é
necessário que eu esclareça as condições que me fizeram colérico e, a
posteriori, enfermo.
Minha
esposa e eu decidimos, há muito, que quedaríamos as festividades de final de ano
na residência dos T., no interior do Paraná. Ocorreu que, aquele que era
pretendente de minha amada pouco antes de nos conhecermos e cultivarmos a
paixão que nos tornou profundamente unidos em tudo, também estaria na pequena
cidade.
Era
de conhecimento de todos que Manuel, irmão de minha dulcíssima Lucy, sempre
fora mais afável com aquele truculento jagunço do que o fora com qualquer dos
outros homens que houvera pedido a mão da belíssima dama em casamento, fato tão
inegável quanto a repulsa da bela jovem em relação ao mesmo cavalheiro – se é
que assim podemos chamar.
Também
era de conhecimento de todos que nosso matrimônio se tornara, nos últimos dois
anos, um martírio. Mas não era do conhecimento de ninguém que, com aquelas
semanas que encerravam o fatídico ano, renovaríamos a esperança de regressar ao
estado letárgico da felicidade celebrando novamente as bodas e reafirmando os
votos proferidos no altar da Igreja durante nossa estada naquele casarão.
Chegamos
logo ao raiar do dia na residência dos T., que nos abrigariam durante aquelas
duas últimas semanas de dezembro, um velho cortesão da família nos informara
que Manuel decidiu, em um movimento apressado, convidar aquele que se tornara
meu carrasco a cear conosco na véspera de Natal. Sorrateiro e vil, M. traiu a
confiança de nossa amada Lucy e fez aquele neandertal conhecedor de nossas
contendas.
Tamanha
vilania se apossou de meu ser de modo que me tornei capaz de sentir um calor
como nunca em meu peito. Não preciso dizer que a ira que tomou conta de meu
corpo fez com que minha face ruborizasse por completo, tampouco precisei que
alguém me dissesse que meu cenho franzido expressava a fúria de um animal.
Externei,
ao cortesão – que era o chefe daquela família – minhas preocupações com os
modos grosseiros e desajeitados de meu nêmesis. “Não há que preocupar com isso.
O senhor F. tornou-se um cavalheiro dos melhores modos que se possa exigir de
qualquer que ocupe o trono”, respondeu[1]me
o longevo patriarca. Sem embargo, não tardou até que M. adentrasse a rústica
residência acompanhado do senhor F., surpreendendo tanto Lucy, quanto a minha
própria pessoa.
Seus
trejeitos eram típicos da realeza e as roupas de seda que vestia, apesar de não
muito extravagantes, bastante sofisticadas. O sujeito era robusto, bastante
encorpado e, com isso, não digo que era gordo, mas forte. Muito forte. Eu, por
outro lado, franzino como uma galinha.
Tão
logo entrou, galante, com seus bons modos, que tornou a cortejar cada uma das
mulheres da residência, as quais demonstrara pouco – ou quase nenhum –
entusiasmo ou interesse por ele. Dessa forma, uma a uma, se colocou à frente de
Lucy, reverenciou-a como uma princesa, tomou-lhe a mão e a beijou. Ela
entregou-se ao encanto daquele que, por debaixo da máscara de realeza, era
estúpido como uma porta e grosseiro como um chimpanzé.
Não
bastasse isso, o sujeito tomou Lucy pelo braço e a conduziu para fora da casa,
em um passeio que durara mais do que a eternidade para terminar. Quando eles
saíram todos olharam para a estátua em que me tornara. Estavam atônitos. Dei de
ombros e, com frieza, dei meia volta, entrei na sala de estar, fechei a porta e
coloquei mais lenha na lareira que crepitava, enquanto aquecera o ambiente e
sentei-me na poltrona que estava mais próxima do fogo.
Conforme
os minutos se passavam, o espírito da ira tomava conta de meu coração. Desejei
o fim deles. Não só a morte de F., mas a morte de M. por ter agido com tal
perversidade e a morte de L. por, absolutamente, ter se entregue apaixonada aos
braços daquele sujeito. Foi apenas isso: desejo. E foi só o desejo que bastou.
“Por
que não transforma o desejo em realidade?”, me perguntou uma voz sinistra.
Enchi-me de horror, pois estava certo que me certificara de trancar a porta e
de estar sozinho no cômodo. “Quem está aí?” – perguntei catatônico. Não obtive
resposta de imediato. Olhei em meu entorno, e vi que estava sozinho.
“Três
disparos bastam”, disse a sinistra e rouca voz. Então, um vento forte quebrou
as janelas, invadiu ambiente, que se enegrecia cada vez mais, e apagou a brasa
crepitante de minha fonte de calor. Senti calafrios. Senti o suor escorrendo
pelo meu rosto. Não conseguia enxergar mais que dois palmos a frente do rosto.
O ar frio invadia meus pulmões, dificultando em demasia a respiração. O medo
tomou o lugar da raiva. Ansiava por sair dali, mas meu corpo estava enregelado
pelo pânico. Escutei um ruído de arrasto e, no chão, surgira uma centelha que
tocou-me os pés.
Abaixei-me
e peguei o objeto que estava envolto por um lenço preto de cetim. Era um
revólver de outro e estava municiado com três balas de prata. “Três disparos
bastam”, repetiu a voz rouca, que se aproximara. “Quem está aí?”, indaguei
novamente. Desta vez, houve a resposta. “Sou o Anjo Negro que veio buscar
quatro almas hoje, mas apenas três disparos serão necessários”.
A
escuridão do cômodo se dissipara de imediato. Uma das filhas de meu anfitrião
me informara, através da porta, que L. e F. já haviam retornado do passeio e
estavam esperando-me para o desjejum na sala de jantar.
Mantive
a arma em minha posse, ainda no lenço e cuidei para que a ponta, que até então
estava à mostra, permanecesse oculta. Segui, pois, a moça que me aguardara e,
logrando a entrada na sala de estar, vi que L. sentara-se ao lado de F. e que o
assento vago que restara era na outra extremidade da mesa.
“Ele
ainda está cortejando ela”, pensei. “Três disparos bastam”, disse a voz, que
era a mesma que ouvira na sala, mas desta vez estava na minha cabeça.
“Três
disparos para quatro almas”, disse eu com a voz baixa. “Disse alguma coisa,
querido?”, perguntou Lucy.
Então,
empunhei o revólver, revelando-o a todos. Disparei três vezes antes que o lenço
de cetim alcançasse o chão. As balas em M. e F. atingiram seus corações e o
Anjo Negro os levou em poucos minutos e Lucy morreu de imediato: a bala atingiu
sua têmpora esquerda.
Depois
disso, fui golpeado na cabeça pelo filho de meu anfitrião. Enquanto perdia a
consciência, pensei “eu sou a quarta alma”. Então, acordei no hospital, fato
que me surpreendeu deveras, e o médico veio ter comigo. Deu-me a notícia que me
faz desejar o beijo da morte como um ato de misericórdia diante do suplício que
autoinfligido. “Sua esposa”, disse o médico, “estava grávida. Morreram ela e a
criança”
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