DE PRESENTE, UM CADÁVER - Conto de Mistério - Alexandre Braga
Às vezes, é verdade; às vezes, é só
uma mentira bem contada, baseada em situações irreais, mas que, sob as
circunstâncias do momento, poderiam acontecer.
—
Provérbio Hitaísta.
Tasrro
se lembrava bem. Já no decorrer da década do retorno de Adrag, O Senhor do Caos
e da Destruição, sua vida começara a desandar, acompanhando o rumo que o mundo
parecia ter tomado. Ele só não sabia.
Sua
mãe bem que avisou. Seus irmãos. Todos o alertaram para o mesmo fato: que o seu
casamento com Ramara, fadado ao fracasso desde o começo, uma hora culminaria em
desastre.
E
foi exatamente o que aconteceu. Entretanto, demorou pelo menos uns dez anos
para entender a real profundidade daquelas palavras. Havia total verdade nelas.
Isso com certeza explicava por que Ramara o havia deixado por outro, justo
quando o casamento parecia florescer.
“Meu
novo homem é mais rico e muito melhor de cama!’’, foi a primeira coisa que
ouvira dela quando descobrira a traição. Era impressionante, Ramara parecia
sentir um prazer doentio em insultá-lo! Por quê?
Havia
rumores de que essa infidelidade datava desde antes do casamento, segundo sua
irmã, Tatiar. Mas não estava a fim de averiguar essa informação. Já sabia mais
do que o que gostaria de saber e, àquela altura, desconfiava que fosse mesmo
verdade, embora a opinião de Tatiar sobre Ramara sempre tendesse a ser
enviesada; as duas se detestavam, e ela, assim como a mãe e os irmãos, a
considerava uma psicopata, por conta de certas atitudes. Mas Tasrro discordava
veementemente. Ramara podia ser o que for, mas chamá-la de psicopata seria um
exagero muito grande. Havia sido uma namorada e uma esposa amorosa durante
parte do casamento. Além disso, era fissurada pelo filho. Mas, sim, era rude.
Sim, não costumava ser muito gentil ou prestável. Nada gentil ou prestável, e
muito menos sensata. Sim, tinha um difícil temperamento. Sim, não merecia a
dedicação de nenhum cavalheiro. Adorava insultá-lo e humilhá-lo. Isso era
verdade. Tudo isso era verdade.
“Como
pude ter sido tão burro?”, refletia Tasrro, ao despertar cedo naquele cálido
dia de verão, excepcionalmente quente para os padrões de Úistandei, e às
vésperas do Feriado da Promessa Divina, surpreendido pelo toque do telec.
“Não
é cedo demais para isso?”
Mesmo
achando a hora inoportuna, apanhou o aparelho da mesinha de cabeceira, disposto
como despertador, e converteu-o para a forma de tablete.
“Ramara
Orinmuam Mazze’’, lia-se na tela.
A
face de Tasrro iluminou-se. Sua vez na guarda compartilhada. Hora de buscar o
filho, Bilo!
Atendeu
a ligação, tão empolgado que quase se esqueceu da mulher intragável com quem
tinha de lidar:
—
Ramara?
Mas,
naquela ocasião, não era ela quem falava do outro lado da linha. Em vez disso,
uma voz masculina falou:
—
Tasrro?
—
Gaeir? — Franziu as sobrancelhas, aturdido.
Era
o atual marido da ex-mulher. Aliás, podia ouvir a voz dela ao fundo, berrando,
certamente em virtude dos impasses cotidianos que às vezes aparecem. Afinal,
berrar era o agir natural de Ramara, a mulher mais escandalosa que já
conhecera.
—
Por que está me ligando? Aconteceu alguma coisa aí?
Sua
voz denotava forte preocupação:
—
Cheguei de viagem ontem. Sim. Aconteceu. Aconteceu uma coisa muito, muito
séria.
— O
quê?!
— É
melhor você vir aqui e ouvir o que a Ramara tem para falar. Lamento dizer, mas
é algo chocante demais para ser dito numa ligação. — Acrescentou com veemência,
antes de desligar: — Venha logo, por favor! Precisamos de você aqui!
Tasrro
ficou intrigado e, ao mesmo tempo, apreensivo. Sentindo como se estivesse
tateando no escuro numa sala entulhada, esperando tocar em qualquer objeto, sem
saber ao certo em quê, mas podendo, com isso, se machucar.
No
primeiro andar da Esfera Central, terminou o desjejum, e foi correndo se
vestir.
Abriu
o guarda-roupa e escolheu as primeiras vestes que viu penduradas. Ausentou-se
do quarto, contornou a lateral do corredor circundante, à esquerda, e cruzou o
passadiço que lhe dava acesso à Espinha Dorsal, por onde percorria o elevador.
Desceu
do terceiro andar da Esfera Central à Esfera Sul, em direção ao andar térreo.
Atravessou
o saguão e o corredor que o ligava ao hall, saindo da residência pela porta
dianteira. Como toda construção daquele estilo, consistia num amontoado de
casas com formato esférico, interligadas por um cilindro gigante, composto
internamente por um elevador e uma escadaria que o serpenteava nas paredes,
abarcando diversas salas, próprias para serem utilizadas como estabelecimentos
comerciais.
O
galecão acinzentado-brilhante de Ramara ficava a algumas quadras de distância.
Tempos atrás, havia sido alvo de todo tipo de publicidade. A cena de um dos
crimes mais emblemáticos da história milenar da pacata Úistandei, onde uma
criança, enquanto os genitores dormiam, fora raptada durante a noite por uma
estranha figura encapuzada que tirara proveito de uma festa à fantasia na
vizinhança para invadir a vóiller. Uma estação depois, acabou sendo encontrada
morta nas matas de difícil acesso do Hemisfério Sul, lar da maioria dos
seguidores de Adrag.
A
região era mais vulnerável à presença do Inimigo devido à sua latitude
meridional, estando mais próxima do Abismo dos Tentáculos Agourentos, o
verdadeiro lugar dele. Desse modo, a
instalação de câmeras e drones para monitoramento era uma tarefa quase
impossível. E mesmo após a Segunda Guerra Intergaláctica, já que alguns de seus
seguidores, absolutamente frustrados com a derrota, estavam muito relutantes em
abandonar a região. Faziam de tudo para ressuscitar seu mestre, sem sucesso,
bloqueando o espaço com os robôs de ataque que haviam fabricado durante o conflito.
Consequentemente, todos levaram a crer que seriam necessários mais uns anos até
os exércitos e as missões hitaístas terminarem a “limpeza”.
Na
época do caso da criança morta, a polícia contratada seguiu o rastro do
criminoso pelas filmagens externas e internas do galecão e dos lugares
monitorados pelos quais o criminoso passou sobrevoando na nave, mas, mesmo com
muita labuta, não conseguiu capturá-lo, desencadeando em sérios problemas
financeiros. Além disso, centenas de outras polícias também tentaram e
falharam, perdendo a oportunidade de lucrar com a resolução do caso.
Durante
os anos seguintes, os habitantes de Úistandei passaram a trancar a porta de
casa todos os dias, por precaução, até que o caso caiu no esquecimento dos
leigos e a vóiller segura, que todos conheciam, continuou mostrando-se pacata.
A
residência em questão acabara sendo vendida pelos pais da criança morta, que
passaram a associar o lugar ao pesadelo que vivenciaram. Gaeir, um psiquiatra
forense de renome, adquirira a propriedade, devido à sua paixão por estudar a
mentalidade de criminosos. Queria ter a experiência de reconstruir mentalmente
a cena do crime todos os dias, o que Tasrro achava muito bizarro.
Foi
recebido pelo atual marido da ex-mulher na entrada principal, assim que chegou
ao galecão, encontrando Ramara desabada de joelhos no assoalho, chorando alto,
sem parar.
— O
que aconteceu?! — indagou, erguendo um pouco a voz.
Obteve
a resposta no segundo seguinte. À frente da ex-esposa, havia um papel
manuseado. E, ao lado, um envelope aberto com o selo do Corvo-Correio.
Engoliu
em seco.
Inclinou-se
e apanhou o papel do chão. Numa caligrafia apressada e grande, lia-se:
Seu filho está comigo. 3
000 guings para o resgate.
Outubicker: Joesnabucro
Binexundra Tollar
OBS.: se chamar uma polícia, eu vou matá-lo.
Seus
olhos saltaram de repente.
—
Pelas Lágrimas de Hita, quem escreveu isso?! — perguntou, atordoado, virando o
papel para o lado oposto à procura do remetente. — Cadê meu filho?!
— O
remetente é anônimo — atalhou Gaeir. — Naturalmente.
Tasrro
agitou o papel no ar, exasperado.
—
Mas como?! Quando?! Quando isso aconteceu?! Como vocês puderam permitir uma
coisa dessas?! Faltou responsabilidade da parte de vocês, não é?!
—
Não faltou nada… não faltou... — A voz
chorosa e entrecortada de Ramara soou abafada do chão.
—
Alguém entrou aqui durante a noite — respondeu Gaeir sombriamente, pegando o
papel de volta e guardando-o dobrado no bolso. — Estávamos dormindo. Entrou no
nosso quarto, pegou Bilo do berço e deu uma injeção nele, provavelmente para
não despertar e começar a chorar, o que teria nos acordado. Vimos hoje de manhã
nas câmeras, assim que nos levantamos, e percebemos que ele tinha sumido. Mas
não dá para saber quem é, claro. O sujeito se cobria com um capuz.
—
Aquele mesmo caso… se repetindo! — horrorizou-se Tasrro, trazendo-o à
lembrança.
—
Pois é… — Gaeir soltou um suspiro pesado. — É isso que me preocupa… Será que é
a mesma pessoa?
—
Homem ou mulher?
—
Assim como naquele caso, não deu para saber também. O capuz era folgado nele.
—
Posso ver?
Erguendo
o telec em sua direção, Gaeir lhe mostrou as filmagens internas e externas da
residência.
A
descrição feita pôde ser confirmada. Assim como no caso anterior, o criminoso
partiu numa nave com a criança.
Tasrro
desesperou-se.
—
Deuses, parece ser a mesma pessoa mesmo! Parece até que é o mesmo... O que
vamos fazer agora?! Preciso do meu filho vivo, preciso dele!...
—
Dar o dinheiro a ele, óbvio! — Ramara levantou a cabeça do chão, de repente,
exibindo uma expressão raivosa no rosto banhado por lágrimas. — Você queria o
quê? Que corrêssemos o risco de contatar nossa seguradora para chamar uma
polícia?!
— E
onde vamos arranjar três mil guings?!
A
mulher soltou uma risada artificial e sarcástica.
—
Idiota, esqueceu de quem você é sobrinho?!
A
imagem dos tios, Castrovis e Marla, materializou-se em sua mente.
Respirou
fundo, tentando ficar calmo.
De
fato, era a única saída.
—
Deuses, será que eles já estão acordados? É fim de semana…
—
Vamos tentar, pelo menos! — falou Ramara, apreensiva, enquanto se levantava.
Compareceram
ao galecão verde-esmeralda com tons rosados e azulados, a três quadras dali. A
campainha soou várias vezes e não obtiveram resposta.
Pararam
um tempo, desanimados, recostando-se na área exterior da gigante Esfera Sul,
que se erguia a partir do subsolo, com sua base achatada, assim como o cume.
Ramara
deslizou, lentamente, pela parede, até cair sentada no chão.
—
Hita tenha misericórdia de nós! — Tasrro chorava intensamente. — Quero meu
filho de volta, quero ele de volta agora!…
O
rosto risonho de Bilo, com as icônicas bochechas rosadas, lhe veio à mente.
Lágrimas
inúteis brotaram dos olhos daquele pai desolado, marcadas pelo profundo
desespero e pavor.
O tempo
se arrastava.
Na
rua em frente, avistaram um homem alto, de ombros largos e andar ereto,
trajando uma camisa sem mangas e uma bermuda esportiva.
Mesmo
de longe, Tasrro o reconheceu. Era Janoer, fundador e CEO da sua seguradora, a
Clenay. Estava voltando para casa, logo à frente, no fim de uma de suas
corridas matinais.
Uma
ideia finalmente lhe ocorreu.
—
Ei, ele pode nos ajudar!
—
Quem? O Janoer? — Ramara pôs-se de pé.
—
Sim! Com certeza tem muito mais intimidade com meus tios do que eu! Pode ligar
para eles abrirem a porta, se a gente contar o que aconteceu.
Ela
e o marido concordaram.
Os
três retomaram o caminho pelo jardim.
À beira da calçada, Janoer, o genro querido de
Castrovis e Marla, ao ouvir passos no gramado do sogro e da sogra, correu os olhos
mais adiante.
—
Tasrro! Que bom ver você, rapaz! — exclamou, fazendo aproximação. — Companhia
um tanto inusitada, hein? Pela cara de vocês, acredito que tenham uma boa razão
para isso.
— E
temos! — apressou-se a dizer, arfante.
Com
a ajuda de Ramara e Gaeir, Tasrro contou o motivo da visita.
Uma
sensação de pavor obscureceu o brilho nos olhos de Janoer.
—
Vou ligar para eles agora, não se preocupem! — Acionou o telec no pulso e o
converteu para a forma de tablete, levando-o ao ouvido. — Nesse minuto!
Durante
a ligação que se seguiu, Janoer foi direto ao ponto, introduzindo o assunto de
forma clara e precisa, como o bom orador que era. Ao fim da chamada, voltou-se
para as visitas.
—
Eles vão receber vocês lá na porta! Estão descendo. Rápido! — Ele os empurrou
devagar. — Se apressem!
Agradeceram
muito a ele, e o seguiram pela dianteira da propriedade.
Castrovis
e Marla abriram a porta do galecão verde-esmeralda com tons rosados e azulados.
—
Pelos Deuses, que horrível! Que horrível! — A matriarca estava claramente
apavorada.
—
Já depositamos o dinheiro! — adiantou-se o patriarca, a voz trêmula. — Vão! Vão
lá! Deem logo o dinheiro a ele!
Ramara
acessou rapidamente o Outubicker no telec. Soltou um suspiro:
—
Depositei…
***
Ficaram
quase permanentemente em silêncio, impacientes, aguardando, cabisbaixos, o
retorno do sequestrador, que combinara de deixar a criança no galecão de Gaeir.
Tasrro
bem que tentou puxar assunto com a ex-esposa, no que dizia respeito ao filho. O
temperamento dela podia ser um empecilho para qualquer demonstração de amizade
ou simpatia, mas, afinal, estavam juntos naquela empreitada. Pai e mãe,
cúmplices na difícil missão de educar um novo ser humano, e prepará-lo para a
vida.
Ramara,
no entanto, permaneceu impassível e agia como se o ex-marido estivesse falando
sozinho.
Vasculhando
suas lembranças, Tasrro desconhecia por completo outra ocasião em que ela
parecesse mais abalada.
Anoiteceu.
Vários dias se passaram — dias sombrios que se arrastavam, como se impedissem
que as horas avançassem em seu curso natural. Mas a espera, que pareceu
infinita, não foi vã. Sabiam que demoraria, pois o sequestrador certamente
estava no Hemisfério Sul, fora do alcance das zonas de monitoramento.
A
primeira noite do Feriado da Promessa Divina, que marcava a reconciliação entre
os Deuses e as suas singelas criaturas, renovou as esperanças. Reuniram-se
todos no galecão de Gaeir, sem cerimônia, sem presentes, sem nada — sem dúvida,
na pior noite de Feriado da Promessa Divina de suas vidas.
Conforme
o esperado, no entanto, durante as horas derradeiras daquele dia para lá de
soturno, um corvo pousou na caixa do Corvo-Correio, trazendo uma encomenda, e
seguido por outros atrás.
As
muitas lágrimas cessaram.
A
luz arroxeada se acendeu, e tornou a minguar quando a encomenda foi retirada.
Era
uma grande caixa, empacotada como se fosse um presente. Sobre ela, uma carta
havia sido pregada. Lia-se, em tinta vermelha:
Meu presente do Feriado da
Promessa Divina!
Desesperados,
e sem saber no que pensar, desembrulharam a caixa com ferocidade e a abriram.
Seguiram-se
gritos de horror.
Dentro
havia um cadáver. O cadáver do pequeno Bilo.
***
O último acontecimento havia sido a gota
d’água. O caso foi levado da seguradora Clenay para a polícia Segura-te, que
deu início às investigações na manhã seguinte, após ser convocada uma reunião
em cada um dos Conselhos de Patriarcas e Matriarcas do Grande Parque, repleto
de esculturas meticulosamente polidas, a maioria homenageando figuras históricas,
para comunicar às pessoas sobre o crime e o perigo iminente à espreita. Tudo
dava uma sensação de que o Feriado da Promessa Divina tivera de ser cancelado.
Com
isso, a segurança em Úistandei foi reforçada, e Tasrro, Ramara e Gaeir, depois
de um tempo, chamados ao gabinete de Dambron e do avô, Seu Eddard, sob a
vigilância de robôs.
—
Que brincadeira foi essa?! — bradou Tasrro estonteado.
—
É, que brincadeira foi essa?! — reiterou Ramara, às lágrimas, achando que
enlouqueceria.
—
“Não dá mais!’’, eu pensei comigo mesmo — disse Gaeir seriamente. — Temos que
levar isso para uma polícia!
—
Fizeram muito bem — aprovou Seu Eddard.
—
Seguimos o rastro do criminoso pelas filmagens dos drones — anunciou Dambron
calmamente. — Mas não conseguimos rastrear todo o seu percurso: ele viajou para
o Hemisfério Sul, como já era esperado. Mas nossas investigações não foram em
vão. Rastreamos a conta do Outubicker, que o criminoso nos forneceu naquela
carta, anunciando o sequestro.
— E
o que vocês descobriram? — indagou Tasrro, arfando de ansiedade. — Ah, se eu
pego esse filho da puta! Que ele apodreça na cadeia! Que apodreça! Que
apodreça!!… — Borrifos de lágrimas saltaram de seus olhos.
O
rosto risonho do filho, com as icônicas bochechas rosadas, reapareceu,
torturando a sua mente da pior maneira possível.
Nunca mais vou poder vê-lo
de novo… Nunca mais…
Os
dois policiais deixaram o ar escapar, pesarosos.
—
Descobrimos que se trata da conta de um prisioneiro de origem tatilanthesa, um
psiquiatra forense — assim como você, Gaeir —, detido por acobertar criminosos
em troca de cobaias para experimentos psiquiátricos. Investigamos tudo sobre
ele, o telec que ele usava, tudo — explicou Seu Eddard, e fez uma pausa. — Ou
seja, se o sujeito está preso, o acesso à sua conta permanece proibido, o que
nos levou à seguinte conclusão: alguém teve acesso à conta dele e a usou para
não se identificar para a polícia.
— A
conta dele foi hackeada?!
Seu
Eddard suspirou.
—
Aí que está o X da questão, Senhor Gaeir. O software de segurança confirma que
a conta dele não foi hackeada. Tivemos que descobrir como o criminoso conseguiu
esse feito, se tinha alguma ligação com esse prisioneiro… algo nessa linha.
Tasrro,
Ramara e Gaeir absorveram aquelas palavras em reflexão e retribuíram o entendimento.
—
Acabou que ouvimos relatos de outros casos semelhantes. Agora que tudo foi
levado ao conhecimento do público — continuou Seu Eddard —, aquele caso
anterior também está sendo relembrado: o vídeo do criminoso raptando a criança,
que viralizou tempos atrás, está sendo revisto em massa agora. É interessante
observar, olhando bem, que, tanto o do caso Bilo quanto o do caso da criança
desaparecida e morta, o vídeo é, na verdade, o mesmo. Não, Senhor Gaeir?
O
homem piscou, com um olhar desconfiado.
— O
que está insinuando?
—
Que o senhor fez uma montagem. Crianças, quando muito pequenas, são muito
parecidas, não? E pessoas são dificilmente identificadas debaixo dos lençóis,
não são? Pegou esse vídeo antigo da internet e juntou com o das filmagens
exteriores do mesmo galecão. Os drones puderam registrar também: você fingindo
raptar a criança viva, quando ela já estava morta. Viajando para fora das zonas de monitoramento
e depois voltando sem o capuz. Ordenando, ainda, que os corvos fossem buscar o
cadáver da criança de volta no horário previsto, para dar ao caso um toque
artístico, com um requinte de crueldade! Típico da mentalidade criminosa que
você se aventura em estudar e tanto o fascina!
Gaeir
gargalhou.
—
Isso é ridículo! Fantástico! Fantástico! E quem matou a criança, então? Vai
dizer que fui eu agora?!
—
Não, não foi você. — Seu Eddard abriu um sorriso, um sorriso triunfante. — Foi
sua esposa, é claro. A mulher que, se utilizando de um excelente bode
expiatório, que lhe possibilitou um bom dinheiro, ainda por cima, você tentou
acobertar, acobertar em troca de cobaia para experimentos psiquiátricos, assim
como fazem os seus amigos daquela sociedade clandestina de psiquiatras
forenses, de ajuda mútua e contínua, não é?!
Sua
última fala desconcertou Gaeir por completo.
—
Foi um acidente doméstico! — Ramara se levantou de uma vez, desatando a chorar.
— Eu juro! Não foi minha culpa!
—
Acidente doméstico, é? — Dambron riu com
escárnio. — E o que diz das filmagens
externas do seu galecão, às quais tivemos acesso agora, quando fomos reforçar a
segurança da vóiller? Que mostram você se referindo à criança como um “fardo’’
de que estava disposta a se livrar?!
Tasrro
saltou da cadeira, estarrecido.
—
Então é verdade isso?!
Seu
Eddard silenciou por um momento e disse, lamentando:
—
Receio que sim.
—
Não, Tasrro! — gritou Ramara. — É mentira! É mentira!
—
Então, vamos ver o que as filmagens internas do seu galecão têm a nos dizer…
Não adianta tentar apagar, nosso contrato nos garante o acesso, ouviu?
Por
um momento, Ramara pareceu aflita.
Seu
Eddard sorriu, irônico, ao constatar.
—
Nesse caso, vejo que sua consciência não está tão limpa como diz…
A
mulher desarmou completamente. Chovia lágrimas de seus olhos.
—
Mas eu não queria ter feito isso!… Eu juro!…
Talvez
até quisesse, mas o Tempo era o pai de todas as consequências. Prosseguia sua
longa viagem, sempre linear: sem poder parar ou voltar atrás.
Glossário:
Vóiller:
cidade-condomínio, com uma parte urbana e uma parte rural em volta.
Astodeise:
Estrela que rege o sistema astodeisiano, do qual o planeta Hitorgânia faz
parte.
Revisão:
Rodrigo César Dias.
[1]
Este conto está
presente no segundo volume da revista Porão do Terror, e teve sua versão
mais antiga reunida na antologia A Morte Serve A Ceia, organizada por
Adam Mattos, em parceria com a Editora Magnólia.
Desconfiei desde o primeiro momento do casal... Ótimo conto!
ResponderExcluirMuito obrigado! Eu (Alexandre Braga) agradeço.
ExcluirNós agradecemos a sua colaboração, amigo!
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