TERRÍVEL OBJETO LÚDICO - Narrativa Clásica e Verídica de Horror - Anônimo do Séc. XIX
TERRÍVEL OBJETO
LÚDICO
Anônimo do séc. XIX
É
mesmo aqui, na casa do subdelegado do polícia, e sob a pressão do um fato
sumamente horroroso, que lhe faço estas duas linhas, e peço que lhe dê a
publicidade devida como um acontecimento ainda virgem na história da espécie
humana.
Chegava
do nosso sítio a esta povoação, quando vi que, na porta do subdelegado, se
agrupava uma multidão de povo (por ser hoje dia de feira) e, por espírito de
curiosidade, aproximei-me também. Entrando na casa, vi sobre a mesa uma criança
morta, tendo a mão direita decepada pela junta e arrancadas à ponta de faca
todas as unhas dos pés.
Junto
a essa infeliz criatura, acham-se o pai e mãe que, transidos de dor e afogados
em pranto, contavam, entre soluços e gemidos do coração, o seguinte fato.
Dizia
a desditosa mãe:
—
Há quatro ou cinco dias, notava eu que no sítio Riacho Seco, onde moramos,
aparecia, alta noite, um vulto, que rondava a pequena casinha em que habitamos,
sem porta alguma, por nossa demasiada pobreza.
“Disso
fiz saber a meu marido, dizendo-lhe mais que, no sítio, só falava de um
lobisomem que pegava as crianças. Ele me dissuadia dessa ilusão ou bruxaria,
mas eu, ainda dominada desse preconceito, tinha a cautela de dormir no meio de quatro
filhinhos que tenho, de menor idade, armando por cima da cama a redinha em que
dormia essa malfadada criança ainda pagã, com dez meses de nascida.
“Na
noite de quinta-feira para sexta, que foi ontem, dormíamos a todo sono,
enfadados do trabalho do dia, ficando meu marido com um banco no cupiá e eu na
cama, entre minhas filhas, como era de costume. Foi quando, depois de meia
noite, senti que, dentro do ranchinho, havia pisadas e um grande alarido de
cães anunciava novidade no sítio. Levantei-me espavorida e, no meio da confusão
e do terror, ouvi o vagido de uma criança, que se perdia no espaço, e como que,
comprimida, lhe afogavam o choro!
“Acudiu-me
a pavorosa ideia do lobisomem e, apalpando institivamente a cama, nela achei
todas as minhas filhas, que dormiam o sono da inocência.
“Dirigi-me,
imediatamente, à redinha e, não achando ali meu querido filhinho, dei um grito
de espanto. Louca, corri ao banco em que dormia meu marido e, acordando-o,
corremos ao acaso, eu e ele, na escuridão da noite, sem direção certa.
“Não
poupamos diligência alguma: aqui e ali, por entre os primeiros raios da Lua,
que começava a despontar, me parecia ver a fúria conduzindo a vítima, e em meus
ouvidos ressoava a canto o choro agonizante do inocente!
“Assim,
maquinalmente, vagamos o resto da noite, em pranto acerbo, cruzando veredas e
penetrando bosques sem nada encontrarmos, além do medonho estampido do trovão,
e o fuzilar do relâmpago por entre uma nuvem preta que rapidamente cobriu todo
o firmamento, até que, amanhecendo o dia, auxiliados por alguns moradores da
mais próxima vizinhança, tomamos a direção de umas pisadas, que se dirigiam a
uma gruta pouco distante. Ali, no fundo dela, achamos ontem, sexta-feira, a
malfadada criança, morta e nesse estado: sem a mão direita, que a cortaram, sem
todas as unhas dos pés e com uma contusão na nuca, que parecia haver-lhe
quebrado o crânio!
“Nesse
estado, nós a enterramos, ontem mesmo, perto de nossa casa; hoje, porém, mais
bem aconselhados, desenterremo-la e a trouxemos para ser presente à justiça e à
cogitação humana”.
Depois
do minuciosa indagação que lhe fiz, para ver se descobria o enigma e o mistério
com que estava envolto semelhante acontecimento tão bárbaro e desumano, disse,
ainda, essa pobre mulher:
—
Tenho algumas suspeitas do um sujeito de nome Antônio José, morador na
vizinhança do sítio, que três vezes foi, à minha casa, indagar quando pretendia
eu batizar aquela criança, chegando até a perguntar se já estava batizada de
palavras! E, finalmente, indo na quinta-feira, e me vendo coser uma camisinha
do menino, me perguntou se eu o ia batizar no domingo seguinte. Respondendo-lhe
que sim, retirou-se ele, tendo na noite desse dia lugar o acontecimento que
acabo de referir.
Toda
essa história foi confirmada pelo próprio marido, que estava presente, a quem o
subdelegado fez o auto, e procedeu ao corpo de delito direto.
Tratava
o subdelegado de dar providências no empenho de mandar prender o indiciado,
quando aqui chegou o monstro disfarçado, como que espreitando a impressão que
causaria tão inaudito fato! Foi imediatamente preso e está no tronco.
Uma
conspiração geral se desenvolveu contra ele que, carrancudo e melancólico, não
dava uma palavra em defesa. Maneava a cabeça de vez em quando e, a longo
espaços, deixava escapar um suspiro, mergulhado em meditação profunda. Parece
que a consciência lhe está dilacerando as entranhas e comprimindo-lhe o coração
de fera. Se é que o tem!
Convém
dizer que o sujeito vive unicamente de jogo, do qual faz a sua profissão. E por
aqui se diz: quem tem mão de menino pagão não parte carta para perder!
Fato ocorrido em Laje
do Canhoto (hoje São José da Laje/AL) em 1866. Fonte: “O Publicador”/PB, edição
de 4 de maio de 1866.
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