A CRIANÇA QUE CHORAVA - Conto Clássico Sobrenatural - Guibert of Nogent
A CRIANÇA QUE
CHORAVA
Guibert of Nogent
(c. 1055 – 1124)
Numa
noite de domingo de verão, depois das matinas, a minha mãe deitou-se na sua estreita
cama e se pôs a adormecer. Então, pareceu-lhe que a sua alma deixava o corpo, malgrado
ela ainda tivesse consciência do que estava acontecendo.
Parecia
que era conduzida por uma espécie de corredor e, passado este, chegou à beira
de um abismo profundo. Subitamente, desse abismo saltaram criaturas de
fantasmagórica aparência, com vermes nos cabelos, que pareciam querer agarrá-la
e puxá-la para si.
Ela
já estava muito assustada, quando, de repente, por detrás dela, uma voz gritou:
—Não
toqueis nela!
Ao
som daquela voz de comando, as criaturas caíram de volta no abismo. Devo observar
que, enquanto era conduzida ao longo do corredor, ela rezava a Deus para que
lhe fosse permitido retornar ao seu corpo.
Depois
de ter sido salva das criaturas do poço, parou à beirada do precipício e, de
repente, viu o meu pai, que conservava o aspecto que tinha quando jovem.
Olhando-o
atentamente, perguntou-lhe, aos prantos, se era Evrard (como era ele chamado
quando jovem), mas ele negou.
É
evidente que não surpreende que um espírito não responda ao nome que lhe foi
dado quando vivo estava, pois o espírito só pode responder de acordo com a sua
natureza espiritual. Além disso, é impossível acreditar que os espíritos se
conheçam apenas pelos seus nomes mortais; fosse assim, não conheceríamos
ninguém no mundo vindouro, exceto aqueles que já nos são próximos em vida. É
desnecessário, portanto, que os Espíritos tenham nomes, pois toda a sua
consciência é de natureza espiritual interna.
Embora
o espectro não respondesse ao nome pelo qual a minha mãe o chamava, ela sentia
que ele se tratava realmente de seu marido. Perguntou-lhe onde estava alojado.
Ele deu-lhe a entender que o lugar não era longe dali e que era obrigado a ali
permanecer. Quando ela lhe perguntou como estava, ele revelou-lhe o braço e o
flanco; ambos estavam tão dilacerados e feridos que ela ficou horrorizada e
espantada. No mesmo lugar, apareceu uma criancinha, e esta chorava com tanta
angústia que minha mãe ficou muito perturbada com tal visão. E tão aflita ficou
com o choro da criança, que perguntou ao espírito:
—Meu
senhor, como podes suportar esta criança e o seu choro?
A sua resposta foi a seguinte:
—
Quanto a isto, não tenho escolha. Tenho de suportá-lo.
Agora,
o seguinte significado pode ser atribuído à criança chorando e às feridas no
braço e no flanco do espírito.
Quando
o meu pai era jovem, foi impedido de fazer amor com a minha mãe, em virtude de um
feitiço maligno que certas pessoas lançaram sobre ele. Ao mesmo tempo, recebeu o
perverso conselho de que, porquanto jovem, deveria constatar se ainda era capaz
de ter relações sexuais com outras mulheres. Jovem como era, seguiu este
conselho e, tendo cometido o pecado de deitar-se com uma ou outra mulher
imoral, gerou uma criança que morreu antes de ser batizada. As feridas no braço
e no flanco significavam a quebra dos seus votos matrimoniais; o choro daquela vozinha
perturbada era a prova da condenação daquela criança ilegítima. Este — ó Senhor
e Fonte de Bondade Abundante — era o castigo para a alma do pecador.
Minha
mãe compreendeu o significado dos gritos da criança (cuja breve existência
mortal ela já conhecia) pela maneira precisa como a aparição correspondia ao
que ela sabia serem os fatos. E, não tendo dúvidas quanto a isso, entregou-se a
prestar auxílio ao meu pai. Medida por medida, ela se encarregou de criar uma
criancinha cujos pais haviam morrido quando esta tinha apenas alguns meses de
vida. Mas como o Maligno abomina tanto as boas intenções quanto as ações leais,
o bebê causou tantos problemas à minha mãe e à sua casa, com os seus gritos e
choros incessantes durante a noite, que ninguém, no mesmo espaço confinado, conseguia
dormir. De dia, aliás, a criança era calma e bem-comportada, brincando e
dormindo alternadamente. Ouvi as amas, que minha mãe empregava, dizerem que,
todas as noites, tinham de sacudir constantemente o chocalho do bebê, de tão
irrequieto que ele ficava. Não que a criança fosse, em si mesma, malcomportada,
senão porque assim se tornara devido à astúcia do Diabo; e, quanto a este, nem
mesmo os cuidados amorosos de uma mulher conseguiriam expulsá-lo completamente.
Com tudo isto, a minha digna mãe muito sofria e atormentava-se sumamente. E, enquanto
os gritos estridentes da criança se prolongavam, não tinha a minha mãe como
aliviar-se da dor de cabeça, nem podia esperar um sono que lhe trouxesse algum
conforto, já que ela era continuamente perturbada pela fúria da criança.
Contudo,
malgrado passasse todas as noites sem dormir, nunca dava a impressão de estar
cansada quando se tratava das suas orações noturnas. Estava convencida de que o
seu sofrimento tinha por objetivo aliviar os problemas do marido, dos quais se
apercebera na sua visão. Suportava de bom grado tais aflições porque
acreditava, corretamente, que, participando do sofrimento dele, diminuía o
tormento da outra. Nunca fechou a porta à criança, nunca se preocupou menos com
ela. Na verdade, quanto mais se apercebia de que o Demônio tentava
perversamente minar a sua resolução, mais se resignava a qualquer perturbação e
incômodo. Na verdade, quanto mais sentia a influência perturbadora do Diabo
sobre o comportamento da criança, mais convencida ficava de que estava a
contrariar o seu controle perverso sobre o espírito do marido.
Versão em português de
Paulo Soriano.
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