A CARONA - Conto de Terror - Giulianno Liberalli
A CARONA
Giulianno
Liberalli
Comecinho de madrugada... Eu estava dirigindo a caminho de
casa depois de um dia cheio no trabalho, não queria nada além de um banho
relaxante e um pouco de café antes de ir dormir. Café tira o sono de vocês?
Para mim é melhor do que aspirina. Alguns quilômetros antes do túnel por onde
passo normalmente eu avistei uma moça pedindo carona. Não foi sua beleza ou o
que estava usando que me chamou a atenção, foi o seu olhar triste, vazio e
perdido... Ali tive certeza de que era uma aparição sobrenatural.
Desculpem, eu ainda não me apresentei. Que educação a minha.
Meu nome é Raul Coelho, não sou psicopata de estrada e tenho tretas com
assuntos sobrenaturais há um bom tempo, ajudei alguns amigos com problemas nada
convencionais. Não dá dinheiro resolver essas paradas e eu também não cobro, pois
o ramo está lotado de enganadores e é o tipo de gente que eu detesto. Quando
surge uma questão eu resolvo por ser o certo a fazer.
Voltando ao lance da moça fantasma no meu caminho. Parei o
carro perto de onde ela estava e aguardei, não demorou e ela veio na minha
direção. Para aqueles que não estão habituados com o sobrenatural esse tipo de
experiência pode fazer as suas almas correrem para fora do corpo, literalmente,
quando a ficha cai em algumas ocasiões. Ela se aproximou do carro e, no
instante em que eu pisquei, estava sentada do meu lado no carona.
Ela usava uma blusa de cor salmão e uma calça marrom, o
cabelo negro tinha algumas pequenas folhas presas, o rosto arranhado e as
pontas dos seus dedos estavam enegrecidos, machucados, as unhas eram lascas
vermelhas. O olhar que lançava em minha direção era um misto de confusão e
medo, talvez nem soubesse que estava morta e aquele local teria sido o último
que viu em vida.
— Olá, meu nome é Raul. Posso saber o seu?
Silêncio. Seu olhar alternava entre meu rosto e a estrada na
nossa frente.
— Talvez seja melhor eu seguir em frente, certo?
Mais silêncio. Entretanto, seu olhar se fixou na estrada
depois que eu disse aquilo e entendi que o objetivo dela era que eu seguisse,
ainda bem que era madrugada e ninguém passou naquele trecho para me ver falando
sozinho no carro, pensariam que eu estava chapado, fumando ou algo parecido.
— Ok, querida. Vamos ver o que você quer.
Começamos a andar, ela não me dava nenhum sinal além de
olhar fixamente para a frente. Só aceitei entrar nessa treta por ter certeza de
que ela não queria me fazer mal e, caso ela mudasse de ideia, eu não seria uma
presa fácil. À medida que andávamos tentei puxar mais conversa, para ver se
conseguia alguma reação dela.
— Não costumo dar carona, ainda mais para pessoas na sua
situação, sabe? Seria legal se eu entendesse o motivo pelo qual você estava ali
atrás, no meio do nada.
E nada de resposta. Nem uma olhada para o lado.
— Depois que passarmos o túnel logo estarei na minha casa,
se estiver pensando em ir comigo para lá peço que desista da ideia. Ainda mais
por estar uma bagunça. Vida de solteiro...
Zero. Nada arrancava reação dela, entramos no túnel e tive
que ficar mais atento, pois tinha trechos em reforma. Para a minha sorte o
pessoal já tinha partido, não varavam a noite trabalhando. Como último recurso
achei melhor extrapolar, eu não queria chegar em casa com uma aparição a
tiracolo.
— Você é bonita. Deve
ter muitos admiradores...
Estávamos no meio do túnel e meu coração quase saiu pela
boca quando ela soltou um grito que era um misto de dor e raiva pouco antes de
desaparecer. Com o susto pisei fundo no freio, o carro cantou pneu e parei
alguns metros depois. Um outro carro surgiu e parou um pouco na frente, um
senhor desceu e correu até mim.
— Rapaz! O que houve? Você está bem? Essa freada ecoou pelo
túnel todo.
— Estou bem, obrigado. Foi algum bicho que passou correndo
aqui. — Respondi tentando me acalmar e recuperando o fôlego. — Quase me fez
perder o controle.
— Verdade. Já vi ratazanas imensas correndo pelos cantos
desse túnel. Precisa de ajuda?
— Não, não. Estou bem, já vou.
— Tudo certo então.
Se aquele senhor fizesse a menor ideia do que aconteceu
comigo não teria parado o carro para me oferecer ajuda. Fui para casa, tomei
banho e me deitei ainda impressionado pelo que a minha carona tinha feito.
Aparições só reagem assim por causa de algum gatilho disparado por emoções como
medo, tristeza ou, a mais forte, raiva.
No dia seguinte trabalhei com os eventos da noite na cabeça.
O que ela queria ali? Pedindo carona no meio do nada? Nem era uma Mulher de
Branco. Procurei nos sites de notícia e não havia nada sobre acidentes naquela
região, em casos assim eles se comportam como vivos por um bom tempo.
Na volta para casa fiquei olhando o local e nada, nem traço.
Encostei o carro no mesmo lugar onde havia pegado a moça e fiquei olhando ao
redor. Não havia indícios da ocorrência de um acidente recente. Estava diante
de um mistério e minha mente fervia, uma das poucas certezas que eu tinha era a
de que ela precisava de ajuda.
Durante outras duas noites passei pelo mesmo local sem
sucesso. Lembrei do horário. Provavelmente ela estava presa a um tempo
específico, como aqueles que perturbam por volta das três da manhã e se vocês tivessem
ideia de quantos deles fazem isso só dormiriam com as luzes acesas.
Na noite seguinte enrolei mais um tempo em um bar e peguei o
carro calculando passar pelo lugar na mesma hora da primeira noite. Foi
certeiro. Me aproximando eu a avistei, estava parada no acostamento fazendo
gesto de carona. Como da primeira vez eu parei e ela veio para o carro, dessa
vez fiquei em silêncio.
Segui o meu caminho e o comportamento dela era o mesmo, o
olhar fixo para a frente. Evitei falar para pegar o máximo de reações que ela
poderia exibir, a expressão imóvel até entrarmos no túnel. Como eu falava muito
da primeira vez algum momento passou despercebido e, logo em seguida, o grito
de Banshee dela ecoou de novo.
Eu estava um pouco mais preparado e o impacto não foi tão
grande, mesmo assim doeu. Era algo a nível de dor na alma, como poucas vezes eu
havia escutado, e ela sumiu logo depois que gritou. Diminuí, mas não parei,
naquele horário o túnel era muito deserto e pessoas esquisitas costumavam
transitar dentro dele.
O cenário começou a clarear para mim. O horário da carona, o
local, o grito de ódio e o sumiço dentro do túnel. Eu estava perto de ter todas
as peças e precisaria de mais uma noite para resolver, isso se eu estivesse
certo é claro.
Noite seguinte, mesmo horário. Para minha sorte era um
trecho pouco movimentado e quase deserto, assim não precisava me preocupar com
plateia. Lá estava ela, bela e fantasmagórica, se eu não acertasse agora ficaria
complicado. Ela entrou no carro e seguimos, dessa vez falei de forma mais
direta.
— Olha, eu acredito que estou quase entendendo o que quer
com essas caronas. Você precisa de mim para resolver alguma coisa, só que tem
que me ajudar. Tem algo no túnel que está te incomodando, me mostre.
A expressão dela suavizou depois que falei, como se as
minhas palavras tivessem tocado em algum ponto chave. Entramos no túnel, dessa
vez diminuí a velocidade olhando a pista e a moça. Perto do local onde ela
gritava e desaparecia eu parei, liguei o alerta, olhei para ela e desci do
carro.
— Muito bem, vamos ver.
Um carro passou, fingi estar procurando problemas no pneu.
Como o pessoal da região conhece a fama do túnel, nem pararam para falar
comigo. A moça se movia do meu lado, fui devagar até o ponto dos
desaparecimentos, nesse instante ela parou e ficou olhando fixamente para um
ponto na parede, perto dos reparos da obra.
— É por aqui, moça? — Perguntei enquanto andava ao redor
apontando para a parede. Me aproximei e ela ficou mais agitada quando minha mão
encostou em uma placa de concreto. — Acho que estou esquentando.
Reparando com calma na placa percebi que a massa ao redor
dela não era antiga, já estava seca, mas há pouco tempo. Voltei para o carro e
peguei a chave de roda, fui até a placa e comecei a raspar a massa ao redor. Escutei
um murmúrio que ganhava força à medida em que meu trabalho avançava, a moça ficava
mais agitada.
Para minha sorte aquele lugar não tinha câmeras de segurança
e na madrugada se passasse mais de um carro por hora era um engarrafamento.
Terminei rápido, assim que consegui fazer um buraco na massa um cheiro
putrefato escapou como se fosse gás represado. Usei a chave como alavanca e puxei
a placa. Ela caiu revelando algo que eu imaginava ver, porém não deu para
segurar as lágrimas diante de uma cena tão brutal.
O corpo dela estava lá dentro em avançado grau de
decomposição, eram as suas roupas rasgadas, o cabelo com folhas, as unhas
machucadas tentando remover a placa que nem se moveram. Seu assassinato havia
sido brutal. Levei uns instantes para me recompor, quando a vi estava olhando
para o quadrado na parede e para seu corpo violado. Seu rosto era uma máscara
de fúria.
— O que houve? Quem fez isso com você? Onde está ou onde
estão?
Ela me encarou pela última vez, seu olhar ficou na minha
mente por semanas depois. Começou a se mover pelo túnel ficando mais e mais
transparente até sumir por completo. Eu tinha uma ideia de qual seria o próximo
passo dela. Fiquei com o pepino de chamar a polícia, mas tenho um amigo na
delegacia, liguei para ele e aguardei a sua chegada.
Ele chegou junto com a perícia, eu estava encostado no carro
aguardando. Ele me cumprimentou com a amabilidade de sempre, o bom delegado
Mathias, polido como uma serra.
— Cacete. Eu sabia que receber uma ligação sua no meio da
madrugada me traria dor de cabeça, Raul. Pode me explicar que diabos aconteceu
aqui? Deve ser uma daquelas, um quadrado na parede com o cadáver de uma moça em
decomposição. Ah, eu vou adorar.
O Delegado Mathias me conhece há anos. Eu ajudei o cara em
algumas paradas estranhas, desde então ele deixa minha barra limpa quando estou
envolvido. Depois que relato a minha história nós pesquisamos por mulheres
desaparecidas na região, não tardamos a encontrar a moça.
Geane era o seu nome, ela foi dada como desaparecida depois
de uma festa dois meses atrás em um condomínio próximo, segundo o texto o namorado
disse que eles brigaram e ela foi embora a pé em plena madrugada. Nunca mais a
viram depois. O resto deduzimos juntando as peças. Pegaram Geane enquanto pedia
carona para ir embora, a violentaram e fecharam-na dentro da parede do túnel. O
que os canalhas não imaginaram é que ela acordaria presa lá dentro e tentaria
sair destruindo os dedos no processo.
A coitada morreu em agonia. Ninguém ouviu nada por causa do
trânsito. Nossos suspeitos eram os funcionários da empreiteira que estava
reparando o túnel na época ou malandros que aproveitaram o espaço de obras
depois que pegaram.
— Bom, Raul, vai ser complicado identificar os caras. O
estado do corpo deve dificultar o trabalho da perícia. Devem ter sumido depois
disso.
— Eu não me preocuparia. Algo me diz que em breve saberão
quem foi. Ele ou eles.
— Do que está falando, Raul?
— Só uma sensação. Estou liberado? Esse exercício acabou
comigo.
Mathias me liberou e fui para casa. No dia seguinte o caso
repercutiu na mídia, o namorado foi localizado e intimado a depor. Batizaram de
O Caso da Moça do Túnel. Dois dias depois estava em uma padaria tomando um café
quando li no celular uma manchete esclarecedora, mas nada surpreendente:
“TRÊS AMIGOS SÃO ENCONTRADOS MORTOS DE MANEIRA MISTERIOSA NA
MESMA NOITE.”
A notícia contava o estranho acontecimento das mortes de três
ex-funcionários de uma empreiteira local, todos foram assassinados de formas
horríveis, bizarras, e na mesma noite. A ligação entre eles? Trabalharam na
reforma daquele túnel.
— Parece que você pode descansar em paz agora, Geane. — Fiz
um gesto de brinde com a xícara de café, o atendente da padaria me olhou de
forma engraçada. Então lembrei do canalha do namoradinho dela. — Ah, Geane. É
mesmo! Ainda não terminou, não é, moça? Nós o veremos nas próximas manchetes
logo, logo, estou certo? Tenha bons sonhos, rapaz.
Ilustração:
Rodrigo Rosa.
Gostei, me deu medo.
ResponderExcluirMuito obrigado, Joanne. Que bom que gostou!
ExcluirJuro que eu fui ler o conto achando que era mais uma versão da moça de branco pedindo carona na estrada, que te leva até cemitério etc... Foi surpreendente, do início ao fim. Chocante, tenebroso, arrepiante. A gente fica preso na leitura. Parabéns!
ResponderExcluirUau. Fico muito grato pelas palavras e, mais ainda, pelos elogios. Grande abraço!
ExcluirMuito bom, Giuiianno, também tive, inicialmente, a mesma impressão que o Anônimo, e a ilustração do Rodrigo reforçou isso, mas a trama foi se revelando mais emocionante, com essa visão inusitada. Parabéns!
ResponderExcluirObrigado, Roberto! A ilustração do Rodrigo acabou dando essa impressão mesmo, de que seria a história da moça que leva os homens até o cemitério, e o lance acaba sendo outro. Muito legal. Grato por suas palavras, eu fiquei super feliz. Abraços!
ExcluirMaravilhas de comentários. Como administrador do sítio, sinto-me feliz!
ExcluirOlá, muito bom o conto, foi um final inesperado, mas de forma positiva! Me prendeu o começo ao fim. Confesso que achei que seria mais uma história de fantasma cliche, mas estava enganada.
ResponderExcluirParabéns!!!
Oi! Muito obrigado mesmo pelos seus elogios. Surpreender o leitor é o essencial em uma narrativa como essa e fico feliz por você ter se sentido assim. Objetivo alcançado! Grande abraço.
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