CABEÇA DE MULA - Conto de Horror - Mauren Guedes Müller
CABEÇA DE MULA
Mauren Guedes Müller
O
Padre Alcides desligou o telefone e se vestiu, a contragosto, mas apressado.
Sabia que a questão era urgente. Vestiu uma capa por cima da batina, pegou o
guarda-chuva e saiu.
Enquanto
dirigia o carro pelas ruas estreitas daquela pequena cidade, pensava no que ouviria
quando chegasse na casa de Pedro. O jovem parecia bastante perturbado. Mesmo
assim, o Padre Alcides não sairia de casa no meio da noite, debaixo daquela
chuva torrencial, se não fosse a grande amizade que nutria com Mariana, a mãe
do garoto, sua paroquiana há muito tempo – o receio em desgostá-la era o que o
movia, muito, muito mais do que a preocupação com a mente abalada do rapaz.
Pedro
tivera uma educação muito rígida. Repressiva, até. Não que seu pai tivesse
prestado para tanto. O marido de Mariana era um homem pusilânime, um fraco,
quase um covarde. Mas a mãe, seguindo os conselhos do padre, esforçara-se para
torná-lo um homem puro e livre de vícios. Porém, desde o dia em que o pai de
Pedro morrera, há mais ou menos um mês, o garoto estava bastante transtornado.
Praticamente não falava, comia muito pouco, quase não saía do sobrado em que
morava com a mãe. Quando o pai de Pedro fora vítima de um ataque cardíaco, o
jovem estava sozinho em casa com ele. O padre desconfiava que o rapaz se
sentisse culpado, de alguma forma. Ou que tivesse ficado traumatizado com
aquela situação horrível.
Quando
bateu na porta, esperava que quem viesse abrir fosse Mariana. A mãe de Pedro
era uma mulher ainda bastante. bonita. Tinha pele muito clara, como porcelana,
cabelos cor de trigo e olhos muito azuis. Quando usava um véu para ir à igreja,
o padre a achava parecida com uma imagem de santa. E ele sabia que fora assim
que Pedro se acostumara a vê-la: como uma santa. A personificação da pureza. O
jovem havia inclusive composto poemas para sua mãe, onde a comparava com as
mártires da Igreja, e o padre acreditava que ele só não a colocava no mesmo
patamar da Virgem Maria por não se considerar digno de ser filho de Nossa
Senhora. Mas quem abriu a porta foi o próprio Pedro. O padre o olhou com
interesse. O jovem tinha o olhar perdido, e lhe pareceu que tremia
ligeiramente, mas seus gestos eram calmos e estudados. O rapaz o convidou para
entrar e lhe pediu que se sentasse.
—
Pois bem — disse o Padre Alcides, ao se acomodar. — Vim o mais rápido que pude.
De que precisas?
—
Preciso que o senhor me ouça, padre — respondeu o jovem. —Em confissão.
—
Certo, meu jovem. Mas não poderias ter esperado até amanhã e ido à igreja?
Súbito,
o rapaz tomou-lhe as mãos.
—
Não, padre. Eu não aguentaria esperar até amanhã. Eu precisava falar com o
senhor hoje. Agora.
Alguma
coisa na atitude do rapaz o inquietou. O padre olhou em volta.
—
Onde está a tua mãe? —perguntou.
—
No quarto. Dormindo.
—
Ela não sabe que tu me telefonaste?
—
Não faz ideia, padre. — Suspirou. — Mas eu precisava, eu precisava muito
conversar com o senhor hoje, e não queria que ela soubesse.
O
padre o encarou com severidade e retirou as mãos das dele.
—
Não deverias esconder coisa alguma da tua mãe — disse.
—
Oh, padre, mas eu não poderia lhe contar! Não quero vê-la sofrer de novo, como
sofreu quando teve de me castigar.
—
Quando teve de te castigar?
—Sim,
padre. Aquela vez, quando eu tinha onze anos. O senhor lembra?
O
padre engoliu em seco. Sim, lembrava. Ele ajudara a infligir-lhe o castigo.
Mas
Pedro sabia que o que incomodava o padre não era qualquer espécie de sofrimento
causado por aquele castigo, fosse o que lhe causara no paciente, fosse o que
teria causado em sua mãe — se ela realmente tivesse sofrido com suas dores. O
que incomodava o padre era a causa do castigo. Era a menção a um assunto que
tanto o padre quanto sua mãe evitavam ao máximo, como se a simples ideia os
aterrorizasse e lhes trouxesse a ameaça dos mais terríveis castigos.
O
garoto tímido e reprimido, que nunca assistia televisão e não tinha amiguinhos
na escola, que não fazia ideia de como se fazia sexo e nunca ouvira a palavra
masturbação, fora flagrado por sua mãe quando os hormônios da pré-adolescência
o levaram a descobrir novas sensações a partir da exploração do próprio corpo.
Horrorizada,
a mãe chamara o padre. Primeiro, uma surra com um cinto de couro. Depois, um
banho de água gelada, “para tirar a sujeira do corpo”. Então, haviam-no
esfregado com sabão até esfolarem sua pele. Por fim, haviam-lhe amarrado as
mãos às costas por uma semana. Uma semana inteira, na qual ele não saíra de seu
quarto, nem para ir à escola. Uma semana comendo como bicho, enfiando o rosto
num prato. Uma semana sem ir ao banheiro, urinando e defecando nas próprias
roupas, e sem higiene o padre dissera: “se a alma é impura, que o corpo então
também apodreça.”
Ao
cabo dessa semana horrível, haviam-lhe perguntado se jurava que jamais tornaria
a cometer tal pecado. E o menino, embora ainda não fosse capaz de entender
afinal de contas que pecado havia cometido, jurara por sua vida e por sua alma —
juraria qualquer coisa para se livrar das aflições que lhe estavam impondo.
—E
qual é o seu pecado desta vez, meu jovem?
Pedro baixou os olhos.
—
Eu fiz de novo, padre. A mesma coisa.
O
padre se levantou, furioso.
—
Mas como? Não bastaram os castigos que eu e sua mãe lhe demos?
O
jovem levantou o rosto e o encarou. O padre notou uma ligeira chama de ódio
naquele olhar.
—
Aqueles que poderiam ter me matado, Padre Alcides?
—
Pois é pena que não o tivessem matado! Antes morto do que pecador, meu filho!
Desta
vez o jovem se levantou.
—
Não me chame de “meu filho”, padre. Guarde seus cuidados pastorais para as
outras ovelhas de seu rebanho.
—
O quê?
—
O fato é que eu me cansei de tudo isso, padre. Cansei, quero ser normal, quero
ser igual aos outros.
—
E não te preocupas com o fato de que os outros são almas perdidas?
Pedro
deu uma gargalhada.
—
Almas perdidas, padre? O que o senhor sabe sobre almas perdidas? Pois eu lhe
digo que uma alma só se perde quando o corpo deixa de se encontrar.
O
padre pegou o guarda-chuva.
—
Não sei por que me chamaste a esta hora da noite, garoto, mas estou vendo que
não é para uma confissão arrependida. Pensa bem esta noite, e vai me procurar
amanhã pela manhã. Aí, eu te passo uma penitência.
Pedro
sentou-se. De repente, pareceu acalmar-se. Olhou-o de soslaio, sem encará-lo.
—
Mas o senhor não está curioso, padre? — perguntou,
falando devagar. — Se não estou arrependido, não quer saber por que eu o chamei
aqui, no meio da noite?
—
Amanhã tu me contas.
Pedro
suspirou.
—
Está bem. Amanhã, o senhor pergunta para a minha mãe e ela lhe conta.
O
padre já estava com a mão na maçaneta da porta, mas subitamente paralisou-se.
Voltou-se lentamente e olhou para o jovem, cujo olhar ostentava um ar de
desafio. Respirou fundo.
—
Está bem — disse. — Conta-me por que tu me chamaste agora.
—
Calma, padre. Tudo a seu tempo. Sente-se, por favor.
O
padre obedeceu.
—
Agora, espere aí, que eu vou chamar a minha mãe.
—-
Chamá-la? Mas por quê? Tu mesmo disseste que não era bom acordá-la...
—
Mudei de ideia, padre. Espere aí.
Levantou-se,
com gestos calculados, e subiu a escada que conduzia aos quartos no andar de
cima da casa.
O
padre se sentia desconfortável na cadeira. A casa permanecia num silêncio
desolador. À medida que o jovem demorava para voltar, o padre foi-se sentindo
cada vez mais angustiado. Um suor frio começou a escorrer de seu corpo. Sentia
o ar pesado, opressivo. Quinze minutos. Vinte. O padre começou a sentir seu
coração cada vez mais acelerado, sua cabeça começou a latejar. Meia hora. Quarenta
minutos. Certo, era demais. Levantou-se para ir embora.
Súbito,
um pressentimento...
Pegou
o guarda-chuva e subiu as escadas que levavam ao segundo andar, procurando não
fazer barulho. Prendeu a respiração. Esgueirou-se, encostando-se às paredes, até
chegar à porta do quarto. Estava aberta. A luz estava acesa.
Foi
então que viu, sobre a cama algo que fez seu estômago se revirar e uma golfada
de vômito subir-lhe à garganta, para ser imediatamente engolida, num reflexo
que havia aprendido e automatizado durante longos anos fazendo encomendações.
Entrou,
devagar, deixando cair o guarda-chuva. O corpo de Mariana jazia, completamente
nu, sobre uma poça de sangue que empapava os lençóis. Mas não estava completo.
Faltava-lhe a cabeça. Permaneceu estático por alguns segundos, horrorizado,
agoniado, quando ouviu uma voz por trás de si:
—
Dizem que uma mulher que dorme com um padre se transforma na mula-sem-cabeça.
Voltou-se.
Era Pedro. Nem chegou a ver a janela aberta, denunciando que ele saíra do
quarto por ali e voltara a entrar na casa pela porta do andar de baixo. Não
estava em condições de raciocinar tanto assim. Mas foi capaz de perceber que
nas mãos do jovem havia um machado ensanguentado.
— O que dizes? — perguntou, trêmulo.
—
O que digo? — esbravejou o rapaz. —O
senhor sabe muito bem o que eu estou dizendo! O senhor e essa cadela hipócrita!
Por que não podiam ouvir falar em sexo? Por que não queriam que eu chegasse nem
perto das garotas? Porque estavam atirando para cima de mim o nojo que tinham
de si mesmos!
—
Não sei do que estás falando — balbuciou o padre, enquanto recuava, tentando
pôr-se longe do alcance do machado que o rapaz empunhava ameaçadoramente.
—
Ah, o senhor não sabe? Pois então eu vou lhe contar! No dia em que meu pai teve
um ataque do coração, eu estava sozinho em casa, com ele. Então, como eu não
sabia o que fazer, fui buscar minha mãe. Ela tinha dito que ia à igreja. Só que
eu fui à igreja e não a encontrei, padre. Então, fui procurá-la na sua casa,
porque eu sabia que ela costumava ir à casa paroquial para conversar com o
senhor. Só que, quando cheguei lá, por algum motivo, em vez de bater na porta,
resolvi espiar por uma fresta na janela. E foi aí que vi o senhor em cima dela,
resfolegando como um animal, e ela se contorcendo como uma meretriz, padre! Foi
aí que eu entendi tudo!
O
padre arregalou os olhos e o encarou, sem palavras.
—
Primeiro, fiquei completamente desnorteado. Espero que o senhor seja capaz de
entender que, nesse momento, meu mundo desabou. Tudo aquilo que o senhor e ela
tinham me ensinado a vida inteira ruiu por terra. Voltei para casa, sentindo-me
como se estivesse num sonho, num pesadelo. Então, quando cheguei, meu pai já
estava morto. Aí, padre — encarou-o com sarcasmo —, eu cuspi no cadáver daquele
frouxo infeliz. E me refestelei ali mesmo, diante dele. Eu me masturbei, padre,
diante do meu pai morto. Depois, quando caí em mim e vi o tamanho do meu
desatino, o tamanho da porcaria que eu tinha feito... Resolvi acabar com vocês
dois.
Dito
isto, avançou, brandindo o machado.
O
padre se desviou do golpe, num reflexo. Então, o instinto de sobrevivência o
trouxe de volta a si, como se houvesse despertado de um transe. Atirou-se no
chão, pegou o guarda-chuva e investiu contra o rapaz de inopino. Como não
esperava um contra-ataque, o jovem deixou o machado cair. Rapidamente, o padre
o pegou, e conseguiu cravá-lo no crânio do rapaz, que tombou, pesadamente,
enquanto o sangue esguichava da ferida, já sem reação — embora seus olhos muito
arregalados parecessem continuar chispando fagulhas de ódio e de ressentimento.
O
Padre Alcides respirou fundo e olhou em volta. Sentia-se absurdamente frio e
insensível. Por outro lado, não conseguia raciocinar direito. Mas achou que
tinha condições de resolver aquela situação. Pensou em chamar a polícia, mas aí
teria muita coisa para explicar, e não queria revelar seus segredos. Não
naquela cidade, onde seus paroquianos o crucificariam. Isso para não falar no
Bispo da Diocese.
Precisava
de um álibi...
Retirou
o machado da cabeça do rapaz, procurando não olhar para a massa ensanguentada
que saiu de dentro de seu crânio junto com a lâmina. Limpou cuidadosamente as
impressões digitais da arma. Provavelmente encontrariam impressões suas na
casa, mas todo mundo sabia que ele a frequentava. Saiu dali e entrou no carro.
Dirigiu para fora da cidade, foi à casa de uma tia sua, e a convenceu a dizer a
quem quer que perguntasse que ele chegara na tarde anterior. Ela não discutiu:
sabia que seu sobrinho cometia lá os seus pecados, mas ela também tinha seus
segredos, e não queria que o marido soubesse deles. E o padre não estava preso
ao segredo de confissão: descobrira as escapadelas da tia por acaso, ao chegar
para visitá-la no meio de uma tarde, e por ter espiado por uma fresta da janela
— bem como o jovem Pedro descobrira seus próprios pecados.
No
dia seguinte, resolveu voltar à sua cidade. Dirigia devagar, cautelosamente.
Não queria ser parado pela polícia rodoviária. Tudo o que queria era distância
da polícia. Justamente por isso, escolheu viajar ao meio-dia, quando sabia que
os policiais estavam mais interessados em seu almoço do que em fiscalizar os
carros que transitavam pela estrada.
Porém,
à medida que o sol esquentava o interior de seu carro, começou a sentir um
cheiro estranho — estranho e vagamente familiar, que foi-se tornando mais
intenso...
Já estava a ponto de identificar a que
lembranças o odor desagradável o remetia quando, para seu azar, ao passar por
um posto da polícia, um guarda rodoviário lhe fez sinal para que parasse. Estacionou,
a contragosto, abriu o vidro e, enquanto procurava os documentos que o policial
lhe pedia, este fez uma careta.
—
O que o senhor leva aí? — perguntou.
—
Hem? Não levo nada.
—
Padre... Por acaso o senhor está levando algum produto alimentício?
O
padre já estava indignado por ter sido parado, e irritou-se ainda mais.
—
Ora, mas é claro que não! — disse.
—
O senhor sabe que não pode transportar certas mercadorias sem cumprir com
certas exigências legais...
—
Por favor, rapaz, eu sou um sacerdote! Não estou levando nenhuma mercadoria.
O
homem aspirou novamente o cheiro estranho.
—
Tudo bem. Mas será que o senhor poderia abrir o porta-malas?
O padre desceu do carro, contrariado, e
aproximou-se do porta-malas.
Quando
foi usar a chave para abri-lo, percebeu que não seria necessário. Estava
destrancado. Então, lembrou-se de que, há alguns dias, quando fora visitar
Mariana, perdera — ou lhe haviam sido roubadas — todas as suas chaves,
inclusive a do carro. Como tinha cópias de todas, não dera importância. Afinal,
achara que, se estivesse perdida dentro da casa, mais cedo ou mais tarde
apareceria.
Ao perceber-lhe a hesitação, o guarda
rodoviário tomou a iniciativa de abrir o porta-malas. Primeiro, o padre
empalideceu e se paralisou completamente. Depois, sentiu uma tontura e não pôde
controlar uma golfada de vômito que parecia contida há muito tempo.
Dentro
do porta-malas, com os olhos e a boca abertos, apoplética e branca como cera, a
cabeça loura de Mariana já começava a apodrecer...
Nota da autora:
esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, ideias
ou opiniões; qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera
coincidência.
essa história é boa
ResponderExcluirUau. Bem macabra e sinistra. Que padre era esse...
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