HISTÓRIA DE UM MORTO - Conto Clássico Sobrenatural - Ernesto Castro


 

HISTÓRIA DE UM MORTO

Ernesto Castro

(Séc. XIX)

 

Servindo de Prólogo

 

Numa belíssima tarde, fui com um amigo passear ao cemitério.

Abrimos o portão e entramos nessa tétrica morada, em que a igualdade impera com a sua fria realidade, mostrando aos olhos do observador o que é a vida senão um composto de ambição, gozos materiais, orgulho, glória e fumo.

Depois de termos dado alguns passos por entre as sepulturas, encontramos uma mandíbula humana, ainda possuindo dentadura, tão linda e tão perfeita, que, sem querer, fomos atraídos para ela.

O meu amigo e eu ficamos de cócoras e começamos a admirar essa linha de dentes tão uniformes.

— De quem seriam estes belos dentes? — interroga-me o meu amigo.

— Ora, como posso to dizer, se também estou impaciente por saber de quem poderiam ser.

— Mas seriam dalguma bonita, dalgum cativo ou dalgum figurão?

— De mulher, com certeza, não foram, em vista do tamanho dos dentes; de cativo também não, mas podem ter sido de algum figurão orgulhoso.

— E por que essa é tua suposição?

— Por uma razão mui clara: a lei da compensação.

— Como a lei da compensação?

— Pois não sabes que um tudo governa essa lei?

 — Nalguns casos; mas, que seja uma lei, duvido.

— Não duvides; em toda a vida do homem governa sempre essa fatal lei.

— Ora, por caridade, deixa-te disso; pois não vemos tanta gente gozando verdadeira felicidade imerecida — ou, antes, mais própria — para sofrer grandes infelicidades?

— Pobre amigo! Como passas na terra sem observar os homens!

— Palavra! Não to entendo! Explica-me o teu pensamento?

 — Vou te explicar. És da escola desses que pensam que a felicidade está em possuir-se ouro, ou uma posição brilhante na escala social, não?

— Conforme. Quando o homem deixa o caminho da honra para seguir o trilho tortuoso em busca do ouro, não pode e nem deve ter a felicidade, porque a sua consciência o está sempre acusando. E assim é o homem que galga posição brilhante, fraqueando o caráter pelo servilismo.

— Muito bem! Mas se eu te disser que raros e mui raros são aqueles que, possuindo o ouro ou uma linda posição, não abusam da cega fortuna para mais tarde virem a sofrer das injustiças que praticaram — o que dirás?

— Que és um pessimista.

 — Não, não sou um pessimista. Quanto mais o homem gozar da felicidade, mais sofrerá de infelicidades. Quer um exemplo?

— Ora, deixa de exemplos e de maçada de filosofia, que eu não nasci para ela — interrompe-me o meu amigo.

Ah, leitor! E é exato: eu, sem querer, também lhe estava amolando com a minha filosofomania.

Perdão.

Levantamos da linda posição em que tínhamos estado e seguimos para diante.

Fomos assentar na soleira da igrejinha, que se acha colocada no alto do cemitério.

Que linda paisagem que desfrutávamos desse lugar!

O Sol, no ocaso, mandava os seus últimos beijos dourados aos cumes das colinas e fazia destacar na penumbra o aveludado dos arvoredos.

Pequenas e leves nuvens alaranjadas, avermelhadas, purpurinas e cor de pérola volitavam no horizonte, descrevendo curvas caprichosas.

Na macia grama das várzeas pastavam os animais, dando uma suavidade de tons nessa poética paisagem que se desenrolava aos nossos olhos.

A cigarra entoava seu monótono canto na relva do vale, que fazia o meu amigo e eu abismarmo-nos em uma funda melancolia.

 O crepúsculo começava.

Os trabalhadores deixavam os seus diurnos afazeres e soltavam alegres ruídos, que vinham reboar onde estávamos, fazendo sobressair ainda mais o silêncio dessa morada dos finados!

Nós sofríamos sensações doridas!

E essas belezas da paisagem, refletindo na cidade dos mortos, tinham o poder da atração de uma voragem!

Convidei o meu amigo para sairmos desse misterioso lugar

Aceitou.

Quando chegamos perto da mandíbula, paramos como se ela tivesse desconhecido ímã.

— E se ela for esta noite contar a sua história para nós? — disse eu para o meu amigo.

— Estás doido?!

 — Pois acreditas em almas de outro mundo?

— Não; mas não se deve brincar com essas coisas.

 — Mas, se ela fosse, as nossas dúvidas terminavam sobre a verdadeira figura que ela fez neste mundo.

— Deixa de brinquedos. Vamos.

E o meu amigo arrastou-me dali.

Quando saímos do cemitério, o sino fazia soar Ave-Maria.

Eram dez horas quando entrei em casa.

Depois de ler até às onze O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, deitei-me e logo conciliei o sono.

 

I.

 

Fui despertado com as pancadas do relógio que vibravam meia-noite.

O meu quarto achava-se iluminado por uma luz azulada, que esbatia uma tétrica e horrenda claridade, desenhando os objetos com formas fantásticas.

Levanto a cabeça do travesseiro para procurar o foco desse clarão.

Meus cabelos se eriçaram de maneira tal que o corpo começou a estremecer tanto como se tivesse um contato com as correntes de uma máquina elétrica.

Era um fato sobrenatural o que eu estava presenciando!

A mandíbula, que o meu amigo e eu tínhamos admirado no cemitério, achava-se a alguns passos de minha cama! Os seus lindos dentes sendo banhados dessa horrível luz, o que ainda fazia sobressair muito mais a sua uniformidade!

E, coisa notável, o foco dessa irradiação partia desse queixo!

Quando ia encarar esse novo condutor de luz, já o quarto estava em completa escuridão.

E não eram passados dois minutos quando a claridade tornou a aparecer mais intensa.

E, em lugar do misterioso osso, achava-se uma caveira coando, por todas as suas cavidades, a horrível luz!

 

 



 Oh, como era terribilíssima de se vê-la!

A fantástica reverberação tornou a sumir-se.

Passado um minuto, reapareceu.

Não era mais a caveira que se achava a alguns passos da minha cama: era um perfeito esqueleto, jorrando, por todas as suas cavidades, grossos raios de um fogo azul-claro!

E o que me admirava era de querer fechar os olhos e não poder!

O esqueleto deu de andar para o meu leito.

As suas ossadas faziam uns horríveis corridos, como se fossem grandes guizos de colossais cascavéis!

Era medonho o quadro!

Parecia-me que estava sonhando e não presenciando uma realidade tão sobrenatural!

Pelo desaparecimento da intensa luz, o fantástico quadro sumiu-se.

O meu cérebro começava a tornar-se um caos por ver tão misterioso espetáculo! As artérias batiam com tal força como se quisessem arrebentar! A laringe achava-se tão ressequida que nem deixava sair o menor som! Os olhos desmesuradamente abertos representavam-me quererem saltar das órbitas! E o corpo, finalmente, sofria convulsões terríveis de suportar-se!

Era o suplício de Tântalo!

A luz tornou a aparecer.

Mas, desta vez, era o lampião que a dava e não o fogo fantástico.

E, em lugar do horrendo esqueleto, estava um bonito homem, possuindo, pouco mais ou menos, quarenta a quarenta e cinco anos.

 — Não se assuste comigo. Queria saber quem eu era, vim lhe satisfazer a curiosidade — disse-me o fantasma, com uma voz que nada tinha de horrível, e mostrando os dentes superiores tão formosos como os inferiores.

E sentou-se em uma cadeira junto à mesa em que trabalho, dando as costas ao lampião.

— Quer ouvir a minha história, senhor curioso?

Fiz-lhe com a cabeça um sinal afirmativo.

E o fantasma, com voz simpática, começou assim a sua história:

 

II.

 

—Tive uma educação descurada.

“Meus pais não souberam dar-me exemplos de moral.

“Cresci na pobreza e com a cabeça cheia de quimeras.

 “E, quando vi que, para gozar o mundo, era preciso ouro e muito ouro, não lutei com a consciência: atirei-me com sofreguidão no caminho do vício para chegar logo ao objetivo que almejava.

“Pratiquei ações repugnantes no jogo, e desgracei pais de família, que eram arrastados nesse vício devorador!

“Precisava ser rico, havia de ser! Custasse o que custasse!

“Desgraçado do homem sem moral!” — suspirou o fantasma. E continuou:

“— Passado algum tempo, possuía regular fortuna, amassada quase toda com lágrimas!”

E esse ente sobrenatural inclinou a fronte, e por alguns segundos ficou em mutismo.

O mocho, no telhado, gemia... gemia como um moribundo que está nas vascas de uma morte dolorida!

O vento, correndo pela rua com vertiginosa velocidade, bramia furioso como assaltado por desconhecido inimigo!

E o lampião, derramando raios de amarelenta claridade, fazia sobressair as corretas formas desse misterioso fantasma.

Depois de alguns momentos, disse com voz que vibrava como metal:

 

III.

 

— Já a sociedade cortejava-me com o seu melhor sorriso e não se importava da maneira por que tinha sido feita a minha fortuna.

 “Alguns ricos imbecis já me haviam oferecido as mãos de suas filhas, como mercadores que só visam ao lucro como suprema felicidade.

“Eu as rejeitei, porque nenhuma delas trazia a fortuna que ambicionava.

“Comecei a galantear a mulher de um velho de fortuna sofrível.

“Daí a três meses, o leito do pobre homem era manchado pelo adultério!

“E, passado um ano, o mísero marido expirava de uma dose de veneno receitada por mim e propinada pela própria mulher!

“Ficou ela herdeira de uma fortuna de quinhentos contos de réis.

“Seis meses depois desse crime, recebia à face de Deus vivo a esposa cúmplice!

“Remorsos não possuía, porque a moral era um mito para mim — o homem material na plenitude da palavra!”

 

IV.

 

Eu já escutava esse misterioso personagem sem medo algum.

Estava impacientíssimo por ver o fim dessa história, que possuía para mim notável interesse. Adivinhou-me o pensamento.

— Sim, senhor curioso, é uma história moral que estou vos contando.

Não fiquei admirado de ele pressentir o meu pensamento, em vista do modo tão sobrenatural com que veio contar a sua história.

— Depois de achar-me com essa lindíssima fortuna — continuou ele —, mais o gozo material apossou-se do meu pensamento: desgracei donzelas, usando da máscara da hipocrisia... Outras que relutavam contra os meus sensuais prazeres, comprava-as, dos próprios progenitores, que as vendiam, em vista da pobreza dos seus albergues e do punhado de ouro que eu lhes atirava.

“Era o terrível gozo do materialista, que não podia ter remorsos desses infames prazeres.

“E, no entanto, eu afivelava a máscara do hipócrita, para poder achar grande prazer no papel que representava ante a sociedade quando a via elogiar-me pelo meu bonito caráter!

“Mísera humanidade! Como vos cega os raios do ouro!

“Inteligência, probidade e todas as virtudes são espezinhadas pelo homem de ouro!

“Como ainda custará para essa humanidade alcançar a sua perfectibilidade!...”

E o fantasma tornou a cair no silêncio.

O mocho, no telhado, continuava a soltar os feios gemidos!

 O vento ainda corria na rua, bramindo com dobrada fúria!

E o lampião, meio apagado, despendia fraca luz, fazendo os objetos refletirem esquisitas sombras!

O duende continuou assim a sua história:

 

V.

 

— Como achava tolo quando alguém me dizia que tinha medo de praticar ações que a consciência depois o acusasse.

“Ria-me bastante desses prejuízos, que sempre encontrava em muitos homens.”

Nessa ocasião, o misterioso personagem levantou-se.

O lampião bruxuleava tênue claridade.

 

VI.

 

— Achava-me em um banquete, contentíssimo — continuou o meu historiador —, quando fui acometido por um ataque apoplético.

“O homem que havia desfrutado o mundo, sob a forma do materialismo, passava à outra vida, fulminado por esse ataque.

“Começava o castigo...”

E o fantasma disse isso com uma voz tão cavernosa e sumida, que o encarei profundamente, e formulei estas palavras:

— Que castigo?

— O castigo da compensação.

— Depois de morto?! — disse-lhe, ansiado por saber os segredos d’além-túmulo.

— Sim. Depois de morto ia sofrer o que não havia acreditado jamais: a vida do espírito.

Quando ouvi essas palavras articuladas por esses lábios, sem querer sentei-me na cama, como se tivesse sido tocado por mola oculta.

Enfim! Ia saber o futuro da outra vida!

Portanto, interroguei o duende com uma comoção violentíssima:

— Então, o espiritismo é uma ciência exata?

— É. E eu, o homem dos gozos materiais, ia sofrer mais do que aqueles espíritos que havia feito padecerem debaixo das minhas garras.

“A minha fortuna foi roubada à metade e a outra caiu às mãos da nação por falta de herdeiros.

“E o meu corpo foi atirado em uma mera sepultura e, depois de muitos anos, os seus ossos andavam jogados a esmo pelo cemitério.”

 — E como pôde reencarnar nesses ossos que estavam assim dispersos?

 — Por força que não nos é dado descobrir.

— E, também, é vedado dizer-me como ouviu as minhas palavras no cemitério?

— Isso posso-vos contar. Na ocasião que vós e o vosso amigo ficaram de cócoras, observando o que havia sido a minha mandíbula, o meu espírito, que passava naquele momento por esse lugar, foi atraído ali por força invisível a escutar o que vós e o vosso amigo diziam.

 — E por que trouxestes aquela luz azulada?

— Em razão de vir aderente aos ossos a terra impregnada de fósforo gasoso, e, entrando neste quarto escuro, desenvolveu o vapor luminoso.

— E por que chegastes aos pedaços?

— Basta, senhor curioso, não posso mais tardar. Adeus...

E estendeu-me a mão. Quando lhe dei a minha, não pude deixar de soltar um grito pela frieza e forte aperto dessa destra, que me arrochava os dedos como se fosse um torno!

 

*

 

Seria sonho ou realidade isso tudo que escrevi? Se foi sonho, é que as páginas de Allan Kardec, conjuntamente com a minha visita ao cemitério, imperaram-me na imaginação para ter essa ficção. E, se realidade, tornei-me, sem querer, um bom médium; e, portanto, com bons auspícios de ir para o Hospício de Pedro II. Abrenuntio!

 

Fonte: “Jornal das Famílias”/RJ, edição de abril de 1878.  

Foram feitas breves adaptações textuais.

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