MORPHELLA - Conto de Terror - Rogério Silvério de Farias
MORPHELLA
Rogério Silvério de Farias
Tenho
e tive muitos amigos estranhos e excêntricos. A maioria deles já morreu. Também
como eles eu sou estranho e excêntrico. Quase todos foram vítimas de mortes
violentas, boa parte deles se suicidou e deles só me restam estranhas e amargas
lembranças. Terei eu o mesmo fim e a mesma sina desses infortunados? Somente os
deuses do céu e do inferno saberão dizer!...
Ainda
hoje me lembro de um desses estranhos amigos. Z. Era o nome dele. Antes de morrerem
esses amigos sempre acabavam me contando histórias reais e sobrenaturais
vividas por eles, e Z. me contou esta. Mas deixem-me contar como tudo
começou...
Trovões
e raios caíam sobre a cidade onde estava a casa do meu amigo Z. Era um fim de
semana e eu tinha ido visitá-lo, quando a noite chegou e com ele um temporal!
Resolvi que ficaria ali na casa de meu amigo até o dia seguinte. Meu amigo Z.
tem problemas de saúde e alguns problemas mentais também. Mora sozinho, seus
pais e parentes já morreram todos, em acidentes horríveis. Quase não tinha vida
social, sobrevivia do aluguel de imóveis deixados por seus pais e parentes, que
deixaram tais patrimônios como herança a esse meu solitário amigo excêntrico.
Z.
é o que eu chamaria de “poeta louco”. Vivia rodeado de livros, escrevia versos
que lembravam o estilo de Lord Byron. Não havia casado, era um celibatário
convicto. Obviamente, tivera um grande amor na vida, e como sempre acontece com
todos nós, esse amor acabou afundando sua pobre alma no mar negro da desilusão.
Ele agora andava muito amargo, pálido e magro, mas entre goles de conhaque e
café, ele me contou a história de seu grande e misterioso amor...
Contou-me
que uma noite a solidão lhe apertara tanto, que ele resolveu sair pela noite,
sob a luz estranha de uma grande e misteriosa lua cheia. Era verão e ele entrou
no riacho de águas rasas e mansas, para refrescar-se. Banhou-se nas águas
tépidas e depois se deitou nu na beira do riacho, na grama.
Começou
a ter sensações estranhas, e surgiram-lhe fantasias amorosas tão ardentes, que
acabou adormecendo e sonhando os sonhos mais loucos, em delírios oníricos
carnais alucinantes!
Ocorreu
uma coisa extraordinária, então. Z. estava num estado tão estranho que ele não
sabia mais discernir a realidade da fantasia. Parecia estar no limiar de dois
mundos, o real e o fantasioso... A fronteira final entre o universo natural e o
sobrenatural, dir-se-ia!
Então,
como que surgida do nada ou das penumbras da mata, uma linda e nua mulher de
feições exóticas e pálidas se aproximou dele. Começaram a conversar e a partir
de então todas as noites ele ia se encontrar com essa estranha mulher, cujo nome
ela lhe dissera ser “Morphella”. Apaixonaram-se perdidamente a ponto de
realizar atos amorosos ao luar, em êxtases delirantes.
Seguiram-se
noites maravilhosas, mas pouco a pouco lhe ocorria uma estranha transformação
que perduraria por muito tempo na breve vida de meu amigo Z. Aquela mulher
estranha e exótica que surgia sempre ao seu encontro no meio da noite, em
locais ermos ou na orla da floresta, parecia estar sugando as energias de meu
amigo, pois ele ficava dia após dia cada vez mais magro, fraco, pálido e
enfermiço.
Então
uma noite aconteceu uma coisa extraordinária e assustadora que deixou meu
excêntrico amigo Z. apavorado a ponto de fugir para sua casa aos berros no meio
da noite, deixando para sempre aquela estranha mulher que surgia no silêncio da
mata. Em toda paixão, em todo amor doentio, mais cedo ou mais tarde, acabam
acontecendo conflitos, e então o amor vira o que é, uma coisa enfermiça e
ilusória: a paixão!... E naquela noite maldita quando meu amigo insistira em
saber um pouco mais sobre Morphella, ela subitamente teve um ataque de ira e os
dois brigaram feio. Ela lhe arranhou o rosto como uma gata furiosa das sombras,
ele a esbofeteou num acesso de cólera. Foi aí que aconteceu a coisa
extraordinária, a coisa apavorante, inacreditável que pôs meu amigo no rol das
pessoas perturbadas para sempre! Morphella, irada, olhou melancolicamente para
a lua cheia e gritou de um modo grotesco, seus olhos começaram a ficar
amarelos, seus caninos começaram a alongar-se, uma sanha lupina desenhou-se no
seu semblante, e aí seu corpo todo pareceu explodir numa fumaça ocre e
fedorenta, foi como uma desintegração atômica ou molecular, uma
desmaterialização explosiva e catinguenta ou algo assim.
Meu
amigo saiu correndo noite afora, até entrar em sua casa e se trancar. Nunca
mais viu Morphella, exceto em seus sonhos mais dantescos.
Como
ele sabe que sou um estudioso esporádico de fatos ocultos e sobrenaturais,
perguntou-me na ocasião o que eu achava, e então lhe disse, após um gole de
conhaque:
—
Meu amigo, tome cuidado. Você mexeu com uma Lâmia ou Súcubo. Essas mulheres
sobrenaturais sugam toda a energia sexual ou libido dos homens, deixando-os
totalmente enfermiços e solitários, à mercê de um destino funesto. São mulheres
infernais nascidas do coito entre espíritos infernais, que perambulam em
silêncio nas trevas de lugares ermos e sombrios, como florestas, desertos ou
casas abandonadas. Simplesmente você se apaixonou por um ser sobrenatural que
fica vadiando nas noites e nos sonhos mais profundos e proibidos dos homens!
Aquela a quem você chamava de Morphella era uma lâmia, uma vampira ou um
súcubo...ou algo ainda pior! Sua namorada era um ente das sombras!
Nunca
mais vi M. Nunca mais. Dois meses depois de ele ter me contado este relato,
recebi a notícia de que ele havia se enforcado numa velha árvore seca e
retorcida. Encontraram seu corpo em adiantado estado de decomposição, e entre
os dedos de sua mão crispada fortemente, havia um pedaço de papel todo
amarrotado com algo escrito. Era um poema em prosa:
“Te
amo, minha querida Morphella.
Girarão
as rodas cruéis das múltiplas existências.
Aqui,
na luz do céu ou nas sombras do inferno.
Eternamente
te amo, Morphella, meu amor das sombras”.
Texto integrante da revista bilíngue (português e espanhol) “Relatos Fantásticos”, vol. II. Para acessá-la na íntegra, clique aqui.
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