A CASA DOS GATOS - Conto de Terror - Felipe Nera
A CASA DOS GATOS
Felipe Nera
“Rua
Coronel Francisco, nº 153. Abri uma fresta da porta de entrada para ver, mais
uma noite, aquele mesmo gato cinzento e rajado que aparecia no meu portão todo
santo dia ao anoitecer já havia algumas semanas. Como de costume, ao me ver,
ele imediatamente abaixou seu corpo numa posição de bote e começou a balançar
sua cauda, suas pupilas se dilatando para me olharem melhor no escuro, como se
vissem um rato ou um inseto a ser caçado; e eu, como sempre, o encarei bravo de
volta, com as sobrancelhas franzidas através da brecha no batente.
Estávamos
na nossa já rotineira silenciosa troca de insultos quando algo me fez dar um
pequeno salto de susto; do outro lado da estreita rua em pedra bruta, no meio
do habitual escuro que fazia naquela via. Outro par de olhos avermelhados,
redondos e brilhantes ia de um lado para outro pouco acima da calçada; era
outro gato, este preto, reparei melhor quando apertei a vista, e ele esticava
seu pescoço fino em todas as direções ao redor de seu corpo, também como se
estivesse procurando a melhor forma de me atacar. Fiquei alguns momentos lá,
parado, vendo com os olhos escancarados os felinos me predando, não conseguindo
esconder meu espanto. E bati a porta rápido, para depois trancá-la.”
“Eu
estava profundamente incomodado. Por diversas vezes naquelas semanas já havia
pegado aquele gato gordo cinzento me espionando, através das grades no portão
ou de cima de algum muro, como se esperasse o melhor momento para dar seu bote
mais certeiro possível em mim. E ele ficava cada dia mais astuto e ousado. Uma
noite, até mesmo peguei o desgraçado tentando esgueirar-se na miúda pela janela
do quintal dos fundos, nunca mais deixei nenhuma janela aberta depois disso. O
mais estranho é que tudo começou depois que aquele cara matou aquela minha
vizinha e depois ateou fogo em si mesmo aqui na rua. Já imaginei de tudo, que
esse gato cinzento era daquele homem e, agora, levava a vida como um vira-lata;
ou ainda que o animal veio atraído pelo cheiro do corpo apodrecendo. Só sei que
nunca o havia visto antes e, desde que apareceu, não consegui mais ficar em paz
nem por um segundo sequer.
E
aparecia todas as noites, sem falta, sem falta. Mesmo durante o dia, quando eu
ia para o trabalho, sentia que aquela sensação de espreita me seguia. Em todos
os lugares, era como se ele estivesse escondido, seus olhos amarelados no canto
dos meus, pronto para pular em mim e executar seja lá o que estivesse
planejando, talvez arranhar meus olhos, talvez mirar na minha garganta.
Ouvi
muito durante a vida que gatos eram animais traiçoeiros, que roubariam comida
da mesa e do fogão se tivessem a chance e escolhem a casa que querem morar, não
seus donos; mas não era sobre isso. Era diferente, eu sabia: aquele gato
planejava mais que apenas arranhar minha cara ou pular em meu pescoço, ele
queria algo de mim, ele queria que eu olhasse nos olhos dele até entender que
estava me desafiando a olhá-lo de volta, que ele confirmava estar debochado da
minha cara, da minha vida solitária e modesta. Que ele queria a casa toda só
para ele, que ele queria ainda mais que isso.
E
tudo só piorava. Naquela noite, depois de ver o outro felino na rua, me lembro
de andar pela casa sem rumo, sentando em cadeiras e no sofá só para me levantar
de novo, entrar nos cômodos para ficar parado no escuro sem motivo também,
apenas tentando ser racional naquele momento. Eu não conseguia, não podia nem
mesmo pensar. Tudo que se passava na minha mente era quando iria acontecer,
quando eles finalmente invadiriam para me atacar a garganta, arranhar meus
olhos, cobrar o que eles tanto queriam de mim.
Acho
que foi no dia seguinte mesmo, mal havia entardecido e apanhei os dois mais um
terceiro novo, já nos fundos de casa. Deixei tudo trancado e tentei ignorá-los,
mas eles passaram a noite toda arranhando a porta de alumínio e pulando em sua
maçaneta, tanto que não consegui dormir, tanto que me levantei e fui empurrar a
mesa da cozinha e algumas cadeiras contra a porta, pois pensei que iriam
arrombá-la.
Os
dias continuaram se passando lentamente, e cada vez mais e mais gatos
apareciam, e agora eles ficavam ao redor da casa vinte e quatro horas, de
amanhecer a amanhecer. Pareciam se dividir em turnos para sempre ter vários
deles vigiando a residência, e já haviam tomado conta da pequena garagem do
portão, além do quintal dos fundos todo. Eu já havia usado os móveis para
embarricar as portas por dentro e desmontado uma cômoda para pregar suas tábuas
de madeira nas janelas, mas ainda assim não fiquei em paz.
É
claro, a esta altura eu já não saía de casa, nem para ir para o trabalho, nem
ao mercado, nem nada. Eu sabia... eu simplesmente sabia que se desse uma só
brecha para eles agora... os gatos invadiriam e tomariam tudo o que é meu. Eu
não deixaria, eu não aceitava. Trabalhei a vida toda para conquistar o que
conquistei, aguentei cada um daqueles anos malditos e solitários tentando ser
alguém nessa vida, e não deixaria ninguém tira isso de mim, nem se fossem todos
os gatos do mundo, nem se fosse o próprio Diabo, nem se fosse eu mesmo
aparecendo na minha frente.
Eu
só ficava lá, sentado no chão, no escuro. As minhas mãos constantemente
trêmulas segurando uma faca, longa e afiada. Eu não comia mais, eu não dormia
mais. Só estava sempre preparado para a emboscada definitiva. Os gatos, que já
deveriam ser mais de trinta, pareceram perceber que eu não sairia mais e, certa
noite, se puseram a miar ininterruptamente, no telhado, nos fundos e na frente
da casa, parecia dentro dos meus ouvidos. O coro dos infernos começou ao
anoitecer, e eu tentei não deixar me afetar por ele, mas era simplesmente
impossível; pela madrugada, meus olhos vermelhos e exaustos, vagos e vidrados
em direção ao chão, finalmente não aguentaram mais me anestesiar. Ri baixo e
sarcástico primeiro, mas logo me levantei e já estava indo em direção à entrada
gargalhando alto e maníaco; a faca em mãos. Não aguentava mais os sons dos
miados; não sabia o que estava fazendo, minha mente não estava mais ali. Eu só
era guiado pela minha própria risada desesperada.
Os
felinos da garagem se afugentaram e cessaram levemente os grunhidos quando
joguei para o lado todos os móveis que seguravam a porta de entrada, e eu a
destranquei em um único segundo antes de respirar fundo por outro; e levantei a
lâmina no ar, rosnando mais selvagemente que eles miavam, abrindo a porta de
supetão e me atirando para fora da casa, pronto para fazer qualquer coisa
contra aqueles gatos.
Mas,
de repente, no meio da minha fúria descontrolada, senti uma calmaria passar
pelo meu corpo, como se eu tivesse caído no sono profundo por um único segundo.
Quando me dei conta, estava na sala de entrada da minha casa mais uma vez, de
costas para a porta, como se acabasse de entrar. Fiquei confuso por um momento,
mas os gatos miavam novamente na minha porta, e isso trouxe minha ira à tona
novamente. Apertei o cabo da faca e me apressei pela porta mais uma vez, mas o
mesmo aconteceu de novo, e me vi parado, suando frio, sobre o piso claro. Os
gatos miavam desesperadamente agora. Eu não conseguia mais nem mesmo rir.
Tentei sair mais uma vez, devagar, mas não conseguia. Não estava conseguindo
sair da minha casa. Meu rosto estava voltado para baixo, meu suor e minha
saliva pingavam no chão. Minha respiração estava pesada, mas eu não sentia o
ar, eu não sentia o meu pulmão; minha mão estava na maçaneta, e a outra soltou
a faca para girar a chave. Eu abri a porta quando larguei meu corpo para a
gravidade derrubar, deixando todos os gatos entrarem.
E
os bichos entraram todos, em ondas de pelos; logo já subiram nos móveis e se
espalharam pelo cômodo, me cercaram por todos os lados. Prepararam o bote por
um segundo, e pularam de uma vez só em mim, de todas as direções. Eu apenas
continuei parado, caído pela exaustão; fechei os olhos e deixei que me
atacassem.
Mas
nada aconteceu. Alguns segundos se passaram e eu abri aos poucos as pálpebras,
e foi quando percebi. Os felinos corriam ao meu redor, saltavam na direção do
meu pescoço, tentavam brincar com as minhas roupas. Mas suas patinhas com unhas
pontiagudas atravessavam meu corpo e suas mordidas manhosas e brincalhonas não
pegavam nada mais que o ar; os bichos pulavam para passar reto pelo meu peito,
como se eu fosse algo que não estava lá, que só eles estavam vendo. Como se
eles só estivessem brincando comigo depois de tanto tempo de querer. Como se eu
nem mesmo existisse.
Eu
continuei no piso frio, confuso, mas logo reparei algo: os malditos pareciam
estar diminuindo em número, na sala. Me levantei e fui, vagaroso e cambaleante,
na direção em que estavam indo, mais para o centro da casa. Para o banheiro, e
os gatos se amontoavam, miadeiros, na porta fechada. Mas por que ela estava
fechada? Eu nunca a deixo fechada... pensando bem, acho que já faz dias que não
vou ao banheiro. Já não sabia mais a última vez que havia comido ou bebido
qualquer coisa também, ou dormido, ou respirado. Minha mente parecia já saber o
que o me aguardava do outro lado quando ergui meu braço fracamente em direção à
maçaneta, a ideia suavemente inundando meus neurônios que não estavam mais ali.
A
porta se abriu com força, empurrada pelo tsunami de gatos, e eu vi, por um
único instante, meu próprio cadáver levemente decomposto deitado numa poça de
sangue, atravessado no chão do box do chuveiro e, mais rápido que um estalar de
dedos, ele foi tomado por inúmeros gatos que o cobriam e o mordiam vorazmente,
arrancando nacos de carne e músculos um pouco ressecados dos meus ossos,
pulando de um lado para outro, devorando meu rosto e lambendo o sangue no chão.
Parecia um cardume de piranhas, e eu continuava parado, ao batente, sem nem
mesmo conseguir reagir, os bichos brigando pelas minhas partes mais carnudas.
Nem
uma hora depois, não havia sobrado mais nada. E eu disse nada. Os malditos
devoraram até mesmo os meus ossos, a última gota do meu sangue. Eles não
queriam só a casa, afinal. Mas, no fim de tudo, eles a tomaram de mim, também.
Todos esses gatos passaram a viver aqui depois disso, e eu também permaneci. Às
vezes acho que foram eles que me prenderam aqui, só para ter um brinquedo, um
boneco para treinar. Mas é quando aquele primeiro gato cinzento, gordo e rajado
aparece para só ficar me encarando, sentado em um canto escuro, é que eu tenho
certeza.
Eles
não deixam mais ninguém se aproximar da casa, sussurram baixinho seus planos
diabólicos nas madrugadas e, além de pássaros e ratos, às vezes trazem dedos e
outros pedaços de corpos humanos para se alimentarem aqui. Eu não sei de onde
eles estão tirando isso, nem de onde vieram, ou o porquê de estarem fazendo
isso e serem tantos. Mas, se tiver alguém por aí ouvindo, eu ainda estou preso
na casa dos gatos, Rua Coronel Francisco, número cento e cinquenta e três.
Sigam a página do autor Felipe Nera no Instagram: @felipe_nera
Muito bom, o conto!!
ResponderExcluirMuito obrigado, de verdade! Este conto é o segundo capítulo da série gratuita que estou lançando pelo Wattpad, "A Estranha Rua Coronel Francisco". Te convido a ver essa série, se gostou do conto :)
ExcluirConto com uma forte influecia de Edgar Allan poe.
ResponderExcluirDevo te dizer um parabéns. Voce tem talento para criar contos. continue assim.
Muito obrigado pelas palavras de apoio!! Não poderia ter ficado mais lisonjeado com a comparação :)
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