A HISTÓRIA DE LI JI - Conto Clássico Fantástico - Gan Bao
A HISTÓRIA DE LI JI
Gan Bao
(? - 336)
Havia,
na região dos antigos reinos de Dongyue e Minzhong, uma montanha chamada
Yongling, cuja base media várias dezenas de léguas. No flanco noroeste da
montanha encravava-se uma caverna habitada por uma enorme serpente, de cerca de
dez pés de cumprimento por cinquenta polegadas de espessura.
O
povo da região habituara-se a temê-la: a víbora havia matado vários governadores
de Dongye e outros tantos prefeitos de diversas cidades subordinadas àquela
província.
Conquanto
os habitantes dessem-lhe em sacrifício bois e cordeiros, a cobra não lhes
concedia descanso algum. Certo dia, por meio um sonho enviado a algum habitante,
ou por instrução encaminhada a uma feiticeira, a serpente exprimiu o desejo de
devorar virgens de doze ou treze anos de idade. O governador e os prefeitos ficaram
chocados com tal revelação, mas, como persistiam os desastres causados pela
nefanda influência da serpente, serviram-se das filhas de escravos domésticos
ou de réus condenados para alimentar a cobra. Deixavam a vítima na abertura da
gruta, a tempo para o sacrifício, na primeira semana do oitavo mês lunar,
quando a serpente saía para devorá-la. E isto se repetiu por vários anos e nove
garotas já haviam sido sacrificadas.
Naquele
tempo, estiveram à procura de uma nova virgem para a oferenda anual, mas não
encontraram candidata ao holocausto. Um certo senhor, chamado Li Dan, do
condado de Jiangle, tinha seis filhas e nenhum filho varão. Sua filha mais
nova, de nome Ji, decidiu acudir ao chamado:
—
Meus pais são desventurados. Só têm seis filhas e nenhum filho; e ter filhas é
como nada ter — disse Ji. — Além disso, como filha, não tenho os méritos de uma
Ti Wong[1],
que salvou os seus pais. Já que não posso proporcionar alimentos ao meu pai e à
minha mãe, e em vão gasto as roupas e consumo os alimentos que eles me dão,
minha vida não beneficia ninguém, e é melhor que eu morra o quanto antes. Se
meus pais me venderem, poderão obter algum recurso com que se alimentarem. Não
é mesmo uma ótima ideia?
Mas
os seus carinhosos pais a amavam tanto que não permitiram que ela se oferecesse
para ser imolada. Apesar disto, Ji partiu secretamente, e os seus pais nada
puderam fazer para impedir a sua fuga.
Ji
conseguiu uma boa espada e um cão caçador serpentes. Chegado o dia do
sacrifício, na primeira semana do oitavo mês lunar, ela se dirigiu ao templo e
se sentou em seu interior, com a espada escondida sob as vestes e o cão entre
as mãos. Deitou na boca da caverna uma generosa porção de pasteizinhos fritos
de arroz cozido, coberta com uma calda de mel e cereais tostados. Então, a
serpente saiu. Sua cabeça era tão grande quanto um depósito de grãos e os seus
olhos pareciam-se dois espelhos de dois pés de diâmetros. Quando sentiu o cheiro dos pasteizinhos, a
cobra pôs-se a devorá-los primeiro.
Então Ji soltou o cão, que imediatamente mordeu a serpente. Depois, atacando
por trás, Ji aplicou vários e profundos cortes no dorso da serpente. E foram tão
dolorosos os golpes aplicados que a cobra escapuliu da caverna e rumou para o
pátio do templo, onde morreu.
Ji
adentrou a caverna para uma espiadela e encontrou o esqueleto das noves
mocinhas. Retirou os ossos da gruta e, com uma mistura de pena e ira, disse:
—O
quão tímidas e fracas eram vocês! A serpente as devorou. Que coisa mais triste
e lamentável!
Tendo
dito isto, Ji voltou para casa com passo firme e tranquilo.
Quando
soube da façanha, o príncipe Yue pediu a mão de Ji em casamento e nomeou o seu
pai prefeito de Jiangle. Também honrou a mãe de Ji e as suas irmãs com
presentes. Desde então, Dongye não voltou a sofrer os malefícios de espíritos
malignos ou de entes monstruosos. Cantigas sobre as proezas de Li Ji sobrevivem
até os nossos dias.
Versão em português de
Paulo Soriano.
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